RESENHA | O Catatau de tudo 11/08/2025 - 10:26

Por Fausto Fawcett 

 

É uma carta de navegação semiótica? Um ponto de ma­cumba verbal para o Exu das linguagens híbridas? Uma sânscrita simulação de graffitti aramaico? Um grimorium de gírias evocações, eruditas invocações idiomáticas, conjurações? A caixa preta da Pandora linguística? Um labirinto de palavras encruzilhadas indicando pistas inéditas para o assim chamado pensamento? Uma colagem de palimpsestos abandonados? Uma possibilidade histórica de caráter lisérgico? Um surto de mediunidade barroca? Épica poética inserida na prosa de­lirante inserida na épica poética? Evangelho vulgaróide inspirado numa escritura grotesca? Mergulho no Alfa-Omega do Brasil sonhado, falado, escrito, explorado, inventado, realizado, irrealizado plástico musicado? Enredo que é mote certeiro pro cinema da música verbal? Enredo que já indica a linguagem que vai guiar o enredo? Sim, Catatau é tudo isso e muito mais. Catatau de tudo que é maiúsculo, gigantesco, cósmico, galáctico surfando na língua. De tudo que é minúsculo, miniaturizado e quântico surfando na sujeira semiótica das linguagens, das línguas nada mortas que se insinuam como gírias arcaicas nas conversas atuais. Na promiscuidade dos jargões corporativos, acadêmicos, religiosos, com a falação fragmentada das ruas devidamente entrecortada por barulhos, ruídos, pedaços de músicas e telas, interferências fugidias. Catatau joga com várias técnicas de mentalização, percepção, apreensão refinadas pela escrita sincopada num transe de rap de breque-batuque, revirando do avesso todos os significados. Fusão, fissão, amálgama, conjunção, confusão de palavras-expressões-raciocínios em volúpia de interpenetração, retroalimentação abduzindo todos os saberes ditos oficiais, não oficiais, urbanos, não urbanos, inventados, espirituais, selvagens, sensuais, científicos, religiosos, técnicos, cotidianos. Catatau é um li­vro-escritura que pode ser lido pelo modo normal ou como um I-Ching turbinado, celerado sendo consultado aleatoriamente, aberto em qualquer página pois densidade filosófica sacudida por provocação de experimentação literária é o que não falta em qualquer frase. Digo livro-escritura porque assim que, naquele Ano da Graça de 1975, peguei na livraria Muro o dito cujo nas mãos, passei os olhos pelas suas páginas, pela sua capa hieroglífica, pela citação de história natural, pela linha cartesiana transformada em ondulação lisérgica, assim que passei os olhos escaneando aquele acontecimento literário senti que não estava apenas com um livro nas mãos mas com uma espécie de tábua de desmandamentos mentais que me acompanharia por toda a vida. Os livros Laranja Mecânica (Anthony Burgess, 1972), Água Viva (Clarice Lispector, 1973), Fragmentos de Sabonete (Jorge Mautner, 1973), Xadrez de Estrelas (Haroldo de Campos, 1976) e Catatau formaram, para mim, uma poderosa coleção de talismãs literários. Como se fossem lâmpadas que esfregadas liberassem gênios variados revelando, desvelando, escancarando delícias terríveis ocultas no cotidiano dos ambientes humanos. Ambientes mentais, sensoriais, eróticos, sim­bólicos. Catatau mexia/mexe com tudo. É o Catatau de tudo. Anos 70. No meio de uma ditadura adubada por uma Guerra Fria que esquentava as cabeças com a possibilidade de uma aniquilação nuclear os assim chamados artistas refinavam a irreverência criando delírios cheios de lucidez crítica visando escancarar a sensação de Juízo Final que pairava/paira sobre o planeta. Experimentações alucinantes e contundentes, nas artes cênicas, na música, no cinema, nas artes plásticas, na ciên­cia, no entretenimento ocultista, na literatura, na cri­mi­nologia, no terrorismo, nas seitas mais variadas. Le­minski refinou a irreverência no trato literário. Mandou muito bem na pesquisa de burilação pra chegar nessa irreverência. Rigor, paradoxo rigor. Jogo de palavras, pa­lavras jogadas como átomos demoníacos numa fogueira de possibilidades. Fogueira de metáforas, epifanias, metonímias, oxímoros, figuraças de linguagem se chocando em curto-circuito de sinapses provocado pela vertigem de percepção que toma de assalto Descartes imaginado em Pernambuco. Depois das Veredas de Guimarães com suas camadas de linguagens se superpondo e revelando inesperados sertões metafísicos e universais chega a eletrizante costura de ideias-frases-pensamentos-mantras desconcertantes de um Catatau que absorve tudo e tudo é abduzido pelo Catatau de Leminski revelando, esculachando a saturação de linguagens, o acúmulo de imaginários que nos envolve, estimula, perturba, paralisa, intriga, provoca. Depois do Catatau ninguém. Por isso deve-se comemorar muito os cinquenta anos desse livro-escritura, deste livro-criatura, encarnação da suculenta volúpia verbal. Gran­de Leminski.


Fausto Fawcett é um artista multidisciplinar. Transita entre literatura, música e cinema, trabalhando com artistas de diversas áreas como, Fernanda Abreu, grupo Chelpa Ferro e Samuel Rosa (Skank). Par­ticipou da primeira turma de alunos, ao lado de Fernanda Torres, Cazuza e Bebel Gilberto, na Oficina ministrada pelo grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone. Publicou mais de oito livros, com prefácio do cineasta Cacá Diegues e do antropólogo Hermano Vianna. Realizou parcerias com diversos artistas como Arnaldo Antunes, Deborah Colker, Luiz Zerbini, Maria Bethania, Marcelo Dantas, entre outros e outras.

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