REPORTAGEM | O vampiro vegetariano 10/06/2025 - 12:55
Por Gabriel Faria
Apesar da fama que os morcegos carregam de se alimentar do sangue de outras criaturas, este comportamento não é tão comum quanto se faz pensar. Dentre as 1400 espécies do mamífero encontradas pelo mundo, apenas três delas são hematófagas – ou seja, se alimentam de sangue.
A grande maioria desses animais come exclusivamente insetos ou frutinhas. Pois é. Pode parecer anticlimático, mas boa parte dos bichinhos que inspiraram todo o imaginário vampiresco são totalmente vegetarianos.
Esse também é o caso do vampiro mais emblemático de Curitiba. O escritor Dalton Trevisan, que estaria completando seu primeiro centenário neste mês de junho, optou pela dieta vegetariana por muitos anos da sua vida.
Famoso por seus contos viscerais, Trevisan retratou aquele lado da vida social que pouco se fala. Contou histórias cheias de erotismo, infidelidade e predadores sexuais que espreitam pelas ruas escuras da capital paranaense. Sua obra rasgou o véu que cobria a pacata e provinciana Curitiba da metade do século XX e mostrou o que se escondia nos becos, ruelas e dentro das casas.
No dia a dia, Dalton se recusava a dar entrevistas e fazia o que podia para não ser reconhecido nas ruas – desde se disfarçar com boné e óculos escuros, até negar sua identidade. Por conta desse comportamento, o título de sua obra mais conhecida, O Vampiro de Curitiba (1965), passou a ser usado como apelido para o autor.
Não sabemos o que motivou sua escolha pelo vegetarianismo. Talvez estivesse antenado nas tendências da juventude hippie dos anos 1970, que fez brotar buffets vegetarianos próximos às universidades. Talvez, como alguns apontam, era apenas uma história que inventava sobre si mesmo para enganar jornalistas. Ou talvez só não gostava de carne.
Seja qual for a razão, os relatos das pessoas que encontraram e serviram Dalton em suas andanças no centro de Curitiba apontam para isso: o Vampiro era vegetariano.
O escritor morou, até 2021, em uma casa no cruzamento da Rua Ubaldino do Amaral com a Amintas de Barros, no bairro Alto da Glória. Era sua fortaleza vampiresca, de onde saía todos os dias para caminhar pelo centro da cidade. Quase sempre, parava nos mesmos destinos.
Além do castelo
Um dos lugares mais visitados por Trevisan era o restaurante Verão Natural, vegetariano que funcionou na Rua João Negrão, próximo ao prédio histórico da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Desde sua inauguração, em 1979, até o encerramento, em 2022, o Vampiro almoçou lá todos os dias.
A casa era um buffet com saladas e pratos quentes, que abria de domingo a sexta-feira. Toda a véspera do fim de semana, o escritor preparava uma marmita para que pudesse almoçar no sábado.
"O restaurante abria às 11h30 e assim que a porta pantográfica subia, o Vampiro entrava, cumprimentava minha mãe que estava no caixa e invariavelmente sentava na mesma mesa discreta num canto, quase embaixo da escada", comenta Maringas Maciel, sobrinho do fundador do restaurante, em uma publicação em seu perfil do Facebook.
Certa vez, Dalton chegou ao restaurante e se deparou com um casal sentado em sua mesa. Não disse nada. Apenas ficou parado no meio do salão. Suzana Maciel, mãe de Maringas, percebeu a situação e pediu de forma gentil que os ocupantes trocassem de mesa. Com os lugares vazios, o escritor se sentou e seguiu com sua rotina.
Nos anos 1990, um repórter resolveu seguir o Vampiro e documentar seu dia a dia. Receoso, o contista foi até o caixa e advertiu Suzana que estava sendo seguido por um jornalista. Orientou-a a dizer que não o conhecia, caso alguém fizesse perguntas a seu respeito. Se não, nunca mais iria ao restaurante.
O repórter não chegou a abordar Suzana, e Dalton continuou almoçando lá todos os dias. Durante este período, nunca revelou sua identidade a ninguém.
Pasteizinhos
Assim como o conde Drácula, do romance homônimo de Bram Stocker, Trevisan vagava durante o dia sob outra identidade. Usava outro nome, colocava boné e óculos escuros. Mas diferente do mais famoso dos vampiros, que saía pelas ruas de Londres atrás de suas vítimas, o escritor tinha um objetivo muito menos maligno: comprar mini pastéis.
Seu destino era o Pastel Quente, mais tarde rebatizado de Roxinho, lanchonete que funcionava a duas quadras de sua casa, entre 1994 e 2009. O empresário Márcio Brasil, antigo proprietário, conta que o escritor fazia os pedidos por telefone com outro nome, perguntava quanto tempo levaria para ficar pronto, e depois ia até lá para os buscar. Sempre com o boné e os óculos escuros.
Assim como no Verão Natural, Dalton nunca revelou sua identidade a ninguém da lanchonete. Foram estudantes universitários que frequentavam o lugar que contaram a Márcio que aquele senhor era o Vampiro de Curitiba. "Ele não dava espaço para conversa. Como o bar estava sempre lotado, ele ligava, pegava o pedido, pagava e ia embora", lembra o empresário. "Ele era bem discreto mesmo. Mas, pelo menos uma vez por semana, fazia uma compra com a gente".
Ao contrário da passagem de Drácula por Londres, onde se espalhou como uma praga e aterrorizou a população, Trevisan foi mais discreto. Quando a lanchonete passou por uma reforma em 2002 e começou a receber mais clientes, o escritor parou de frequentar.
A reclusão de Dalton
Depois de sua morte, em dezembro do ano passado, muito se especulou sobre sua vida e seus hábitos. Em uma matéria publicada no jornal O Globo, um dia após seu falecimento, é dito que sua fama de recluso sempre foi rechaçada por amigos próximos. A reportagem afirma que o contista costumava espalhar pistas falsas sobre sua rotina, o que torna impossível saber se realmente almoçava todos os dias no mesmo lugar.
Se tudo não passou de um trote para enganar aqueles que tentassem investigar sua vida, Trevisan se comprometeu com o personagem até o fim. Se era receptivo com amigos próximos, fez o que estava ao seu alcance para não chamar a atenção de desconhecidos. "Eu acho que ele era discreto mesmo. Ele morava a duas quadras do bar e se camuflava para ir lá. Minha sobrinha trabalhou na Livraria do Chain e disse que era o mesmo esquema: ele ligava, pedia para separar os livros, passava lá e pegava", conta Márcio Brasil.
Sobre o vegetarianismo, talvez nunca tenhamos uma resposta concreta. Mas, ao que tudo indica, essa realmente era uma de suas preferências. Como todo o vampiro, Dalton nos deixa com mais dúvidas do que certezas.
Gabriel Faria é formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como repórter cultural na área de gastronomia e nas horas vagas curte música, cinema e literatura.