PENSATA | Vilto Reis 31/05/2021 - 14:30

Às voltas com a tributação

Vilto Reis

 

O que você, leitor deste jornal, faria se limitassem seu acesso à leitura? Ou se restringissem quais livros leria? Ou, pior ainda, se argumentassem que você pertence a uma classe social que não lê? Esta poderia ser a premissa de um livro de ficção científica, uma distopia (quiçá uma obra de terror para quem ama literatura), mas se trata de uma proposta para a nossa realidade.

Caso não esteja inteirado da polêmica discussão sobre a “taxação dos livros”, após proposta do ministro da economia Paulo Guedes, que vem acontecendo nos últimos meses, farei um resumo dos eventos abaixo, atendo-me aos fatos para depois expressar minha opinião e contar minha história como leitor (que contradiz Guedes):

  • Em julho de 2020, o ministro citado entregou ao Congresso Nacional a proposta da reforma tributária;
  • Entre outras coisas, a proposta incluía a criação da Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS), um tributo de 12%, substituindo o PIS e o Cofins;
  • O mercado editorial, isento de PIS e Cofins desde 2004, estaria sujeito ao novo tributo, ainda que sindicatos, condomínios, partidos políticos, entidades beneficentes e templos de quaisquer cultos permanecessem isentos;
  • Em agosto de 2020, os jornais O Globo e Folha de S. Paulo divulgaram um manifesto assinado por oito entidades ligadas ao mercado editorial. O documento ressaltava que, graças à isenção do imposto, “entre 2006 e 2011, o valor médio [do livro] diminuiu 33%, com crescimento de 90 milhões de exemplares vendidos”;
  • No mês seguinte, a International Publishers Association (IPA) pediu em documento oficial que o governo brasileiro desistisse de tributar o livro, ressaltando que “os livros são ativos estratégicos que impulsionam a economia do conhecimento, facilitam a mobilidade social ascendente, bem como o crescimento pessoal, e trazem benefícios sociais, culturais e econômicos generalizados”;
  • Ainda no mesmo mês, no Dia Nacional do Livro, um abaixo-assinado de leitores na internet reuniu mais de 1 milhão de assinaturas contra a proposta;
  • Na mesma época, saiu o resultado da Pesquisa Retratos da Leitura, realizada entre 2015 e 2019. Os dados apontaram que a Classe C é leitora e compradora de livros. Entre os 27 milhões de brasileiros deste grupo, que se autodeclaram leitores, 22% afirmaram que o preço do livro é um ponto sensível ao adquiri-lo;
  • Desconhecedor da pesquisa, o ministro da economia afirmou que o livro é produto de elite e que “[o governo dará] o livro de graça para o mais frágil, para o mais pobre”;
  • Mesmo diante de tantos protestos, em abril de 2021, o ministério da economia seguiu com a proposta, publicando um documento com as principais dúvidas a respeito da reforma tributária, principalmente em relação à CBS;
  • O documento reitera a opinião do ministro Guedes quando é feita a pergunta: “Por que a CBS será cobrada na venda de livros?”. A resposta é direta: “Famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação de livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objeto de políticas focalizadas, assim como é o caso dos medicamentos, da saúde e da educação no âmbito da CBS”;
  • No início de maio de 2021, em audiência pública na Câmara dos Deputados, Paulo Guedes foi questionado por Marcelo Freixo (PSOL/RJ) a respeito de seu projeto de “taxar livros”. Guedes desafiou que alguém provasse que tinha dito que iria taxar livros, pois ele nunca falou em taxação. E, de fato, ele não falou. Desde o início, o projeto é um “tributo”. A CBS não é uma taxa ou imposto, mas uma contribuição com destinação específica (o financiamento da seguridade social). E o que há de relevante em diferenciar estes conceitos? Bom, a constituição garante a proibição de cobrar impostos do livro. Ou seja, classificar a CBS como contribuição permite que não seja um ato inconstitucional por parte do governo. 

Apresentados os fatos, é válido dizer que em nenhum momento o objetivo deste artigo é atacar o ministro Paulo Guedes, mas sim apresentar as informações (todas verificáveis) da forma como está sendo conduzida a proposta da Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS).

Vejamos no que, caso seja aprovada, a proposta acarretará.

 

Consequências do aumento do preço do livro

O mercado editorial no Brasil, em termos financeiros, é quase insignificante se comparado a outros. Veja bem, em 2020, os livros movimentaram R$ 1,74 bilhão. Parece muito? O agronegócio acumulou em 2019, na soma de bens e serviços gerados, R$ 1,55 trilhão ou 21,4% do PIB brasileiro.

Por que trago tantos números? Porque precisamos partir do cenário macro até o micro e tentar entender como “eles” pensam. Quando alguém no ministério da economia analisa o contexto do mercado editorial, supõe-se que levam estes dados em conta, não? Se sim, qual a linha de raciocínio que conduziu a escolha de aplicar esta contribuição aos livros? Tal qual afirmei em outra oportunidade, esta taxação é como cobrar imposto da esmola que os mendigos recebem, crendo que servirá de algo ao estado. 

Ora, se o critério não é financeiro, será que podemos conjeturar que seja ideológico, enviesado pelo preconceito aos pobres? Afinal, o próprio ministro Paulo Guedes, sem saber que estava sendo gravado, em reunião do Conselho de Saúde, afirmou que o problema do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) era que “botou todo mundo” para dentro, inclusive filho de porteiro que tinha zerado em prova. No entanto, em divergência aos fatos mais uma vez, o Fies exige notas mínimas do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) ou no vestibular para aprovar o financiamento do candidato.

Logo, podemos nos perguntar, o que almeja este governo?

As consequências do aumento do preço do livro podem ser devastadoras para a sociedade. Exagero da minha parte? Se conforme a citada Pesquisa Retratos da Leitura, para 22% dos brasileiros, o valor monetário do livro é decisório na hora da compra, quantos leitores perderemos?

É válido dizer que não se tratam apenas de leitores de ficção, mas de temas técnicos, religiosos e de diversos outros saberes. O livro democratiza o conhecimento se estiver acessível. Alguém que se proponha a aprender sobre um tema, pode ler todos os livros da área, assistir a palestras na internet e participar de fóruns de discussão, tornando-se conhecedor do assunto por pura iniciativa e utilização da literatura.

Fora esta visão mais utilitarista, há o fruir das nossas emoções, aquela sensação sublime quando lemos um bom romance ou um poema que nos toca. Como se não bastasse o fato de que boa parte da nossa população não é exposta a esta experiência, ainda dificultaremos o acesso aos que a alcançam?

Na realidade, tal proposta só acontece porque as pessoas por trás dela não leem ficção. Posso afirmar com toda a certeza, pois a literatura contribui para que o ser humano se torne mais empático. A cada livro, temos a vivência de uma outra pessoa, encarando determinados desafios, ou seja, somos conduzidos a sentir o mundo sob a perspectiva dos outros. Este vivenciar possibilita a construção de indivíduos mais capazes de ter um papel influente e colaborativo dentro da sociedade. Em resumo, pessoas com mais empatia. Se os criadores da CBS tivessem lido romances, conheceriam este sentimento e evitariam saquear um setor que batalha para sobreviver.

Caso você esteja se perguntando: mas quem é esta pessoa para falar assim? Vou relatar como um morador de uma Cohab se tornou leitor, mesmo que o ministro tenha dito que famílias de baixa renda não consomem livros não-didáticos.

 

A história de um leitor 

Era comum na escola estadual na qual estudei que, no início do ano, o quadro de docentes não estivesse completo ou que certos professores começassem e desistissem, frente à realidade. Assim, graças à matéria “livre”, alguém teve a ideia de levar os alunos à biblioteca da escola. Nas três estantes que a compunham, com boa parte das prateleiras ocupadas pela Enciclopédia Barsa — tempos pré-Google, início dos anos 2000 —, acabei encontrando mundos. Era permitido pegar dois livros por semana, com prazo de 15 dias para devolvê-los. Deste modo, sempre que eu devolvia à bibliotecária, uma professora que transmitia cansaço e contava os anos para se aposentar, ela arregalava os olhos, perguntando:

— Menino, você leu tudo?

A resposta, além de um sorriso, era se podia pegar mais dois.

Eu nasci, cresci e resido em um conjunto habitacional (uma Cohab) em Blumenau (SC). Sou filho de um pai operário e uma mãe do lar, ambos religiosos, que me impunham a tarefa de ler a bíblia cristã, mas não ligavam que eu lesse “os livros da escola”. Para eles, ler era sinônimo de estudar, logo se orgulhavam de ver eu ali deitado no sofá virando páginas.

Se você estiver se perguntando quais livros eram lidos, bom, principalmente os da Coleção Vaga-Lume, porém não me restringia a esta linha editorial. Títulos como O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida; Zezinho, o Dono da Porquinha Preta, de Vitoria Jair; e Uma História de Futebol, de José Roberto Torero, eram consumidos com a mesma gula que a maioria das crianças têm por doces.

Na pré-adolescência, entretanto, o interesse caiu. A pressão do grupo impõe outras urgências a alguém que vive em um bairro periférico. Ainda mais em uma cultura como a nossa, que debocha da intelectualidade, a qual avalia como “triste” ver alguém pensando sozinho, em prol da valorização de estarmos sempre festando, em grandes grupos de amigos (eu mesmo aprecio encontros e festas, mas com equilíbrio, conciliando o tempo para cada coisa).

Enfim, reencontrei-me com a leitura aos 15 anos, quando um amigo indicou a leitura de A Cabana, de William P. Young. Veja só, um best-seller! Pois é, alvos de frequente ironia em mesas de festivais literários, estes livros são o portal de acesso a não iniciados na leitura. Concordo que muitas pessoas não passam deles, mas inúmeros leitores se abrem a outras possibilidades, como obras clássicas e contemporâneas, brasileiras e estrangeiras, após o contato com um desses livros populares.

A partir daí, comecei a comprar meus próprios livros, frequentando lojas online e caçando promoções. Da autoajuda (que só anos depois, eu entenderia os problemas que o gênero carrega), escalei para a ficção. Neste quesito, os podcasts ajudaram muito. Por volta dos 16 anos de idade, descobri o Nerdcast e, logo em seguida, o Papo na Estante, que falava somente de livros. Lembro bem do fascínio que tive naqueles tempos ao ler As Crônicas de Arthur, de Bernard Cornwell, e ser arrastado para sempre ao caudaloso rio da ficção.

Mesmo com novos mundos que se abriam pela leitura, nunca pensei que deveria/poderia fazer uma faculdade. No bairro em que cresci, de cerca de 8 mil pessoas, se eu conhecia três pessoas que haviam se formado, era muito. Contudo, ao sair de casa para trabalhar no centro da cidade e começar a fazer artes simples no Photoshop, um colega de emprego afirmou que eu deveria cursar design gráfico. Acabei me graduando em Comunicação Social — Publicidade & Propaganda em uma universidade privada. Por isso, a fala do ministro Guedes me incomoda tanto em relação ao Fies. Não fiz uso deste recurso, mas só me formei pelas diversas bolsas que ia ganhando no decorrer da graduação. Mesmo assim, o Fundo de Financiamento Estudantil é a porta para as pessoas desfavorecidas saberem que elas também podem, tal qual eu precisei ouvir de alguém dizer que eu poderia cursar uma graduação.

Foi na faculdade, em uma das semanas de comunicação, que surgiu a ideia de criar um blog literário e o resto é história. Editei um site de literatura por sete anos, fui sócio em editora, organizei antologias, criei revistas literárias e hoje dou aula de escrita criativa — obrigado, professor que faltou na escola e me oportunizou ir à biblioteca.


Liberdade de escolha

Sou um ponto fora da curva? De maneira nenhuma. Basta que peçamos aos legentes deste jornal seus depoimentos de como se tornaram leitores, para nos depararmos com uma série de histórias nostálgicas.

Logo, qual o caminho para termos mais leitores? Seria dificultando o acesso com o aumento do preço do livro? Alguém dirá: “Ah, mas o governo prometeu livros aos pobres”. Com certeza, porém quais livros? Onde fica a liberdade de escolha? O governo ideal teria o slogan "educação acima de tudo", buscaria a partir da nossa história não repetir os erros do passado e facilitaria o acesso ao conhecimento científico e cultural. Infelizmente, estamos a anos-luz disso.

Resta-nos protestar contra esta nova “contribuição”, opomo-nos às atitudes elitistas e cobrar meios de facilitar o acesso da população à cultura em geral. Afinal, a ignorância é uma benção para os governantes, não para nós.

 


Vilto Reis é escritor, roteirista de quadrinhos, professor de escrita criativa e apresentador do podcast de literatura 30:MIN. Publicou o romance Um Gato Chamado Borges (2016), finalista do Prêmio Sesc, e teve contos lançados em diversas revistas online e antologias. Atualmente, mantém um canal no Youtube, ministra oficinas e cursos, faz leituras críticas e mentorias para escritores.