PENSATA | Você está indo depressa demais 20/12/2023 - 11:55

Por Guilherme Shibata

 

No auditório da Biblioteca Pública do Paraná, leio o seguinte trecho de um diálogo para cerca de quarenta pessoas em silêncio:

 

“— Você está indo depressa demais. Assim, nunca vai entender, tem que ir devagar. — E tinha razão, claro. Se não detivermos o olhar, nunca veremos nada.”

 

A frase do personagem Auggie Wren ressoa. Repito as palavras dando a devida ênfase. Olhos piscam, indicando que os ouvintes estão pensando — ou imagino que estão. Um parágrafo antes, Paul Auster, personagem narrador desta incrível história chamada O Conto de Natal de Auggie Wren, concordou em conhecer o trabalho artístico de um recém-conhecido chamado Auggie, vendedor de uma tabacaria em Manhattan. Este entregou-lhe sete enormes álbuns fotográficos, organizados em ordem cronológica de janeiro a dezem­bro, e explicou que sua obra consistia em fotografar, do mesmo ângulo, no mesmo horário, todo santo dia, a mesmíssima esquina da cidade de Nova Iorque.

O narrador, cheio de desconfiança e querendo logo se livrar da tarefa, folheia de forma constrangida e desatenta as páginas e páginas de fotografias que mostram sempre a mesma enfadonha cena. É quando Auggie aborda-o com a citada frase: “Você está indo depressa demais...” Sim, estamos, pareço ouvir a resposta das pessoas na minha frente. E por isso estamos aqui, para ler enquanto o mundo lá fora caminha em velocidade 2x.

Acelerar a mensagem de voz no WhatsApp e os vídeos no YouTube talvez seja o sinal mais evidente de como estamos com uma pressa estranha, sem saber exatamente aonde queremos chegar. É óbvio que ninguém precisa apreciar esteticamente a mensagem do vendedor de sofá que, durante cinco minutos, discursa sobre as vantagens de receber o seu produto já impermeabilizado. Mas, sejamos sinceros, depois da primeira acelerada, a dose só aumenta – de 1,25x para 1,5x, e por fim os quase ininteligíveis sons aflitivos do 2x. Assistir a vídeos e séries desta maneira é um interessante sintoma de que, afinal, ansiamos apenas por um entretenimento rápido que nos alivie o tédio. Queremos dizer que, sim, assistimos ao último capítulo da novela, maratonamos a série, escutamos o podcast, estamos por dentro dos assuntos políticos do Brasil e de todas as guerras do calendário e podemos emitir opiniões válidas sobre tudo isso.

Entretanto, o que reúne aquelas pessoas no auditório da biblioteca (e isso eu perguntei a elas), às 18h de uma segunda-feira, depois de um dia de trabalho, é a oportunidade de uma experiência lenta. Ler na presença e companhia de outras pessoas, encontrar um lugar em que seja possível serenar, discutir e mastigar cada palavra de uma narrativa, cada ideia de um autor, é mergulhar no melhor que a literatura sempre nos deu, a oportunidade de pensar sobre a nossa existência, a nossa vidinha miúda. Um exercício dos mais difíceis que a leitura ficcional nos propõe: deixar de olhar para o próprio umbigo e colocar-se na posição de outro ser humano.

Quando Luiz Felipe Leprevost, o diretor da Biblioteca, pediu que eu ministrasse um curso na casa, sentamos e ficamos um tempo pensando nos modelos existentes de palestras, cursos e clubes de leitura. Chegamos à experiência que é a melhor que já tive como professor e formador de leitores – o “Ler junto”. A ideia é simples. Na verdade, era tão simples que, no início, desconfiávamos que pudesse dar certo. Escolher um conto, projetá-lo em uma tela e ler com as pessoas que se interessassem. A opção pelo conto deu-se por uma sugestão minha, pois eu gostaria que as pessoas saíssem do encontro com aquela excelente sensação de algo concretizado. Para que pessoas à procura de fami­liarizar-se com a literatura pudessem ter a satisfação de falar “hoje eu li James Joyce, semana passada eu li Cortázar”. Eu argumentava, ainda, que a cidade já tinha vários grupos de leitura e eu não desejava fazer outro igual. E da minha experiência como professor, lendo diariamente com os meus alunos, eu tinha uma crença absoluta, a qual carrego até hoje, de que a experiência de ler um bom texto ficcional é um dos mais inteligentes entretenimentos inventados pela humanidade. Nenhuma discussão sobre o conto, ou introdução sobre o autor, pode ser melhor ou ter mais força e dar mais prazer do que a leitura e análise detida da obra em si. Por fim, por tratar-se de um lugar público, eu queria que as pessoas pudessem frequentar os encontros o máximo possível. Ao escolher a forma breve do conto, sabia que poderia ter encontros semanais que não dependessem de leitura prévia ou da presença na semana anterior.

 

​ Guilherme Shibata recebe o público do projeto Ler Junto no auditório da BPP
Guilherme Shibata recebe o público do projeto "Ler Junto" no auditório.

Foto: Kraw Penas

 

Assim, combinamos de começar com a leitura de oito contos, um por semana. No primeiro encontro, lemos Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, e reservamos o confortável Auditório da Biblioteca. O público apareceu em número mais que satisfatório, umas sessenta pessoas. Para a segunda data, preparei A Cartomante, de Machado de Assis. Como já imaginávamos um declínio no comparecimento (afinal, ninguém espera que as pessoas desejem sair de casa para ler), reservamos uma salinha acanhada, para umas dez pessoas. Nas minhas antecipações de cenários pessimista/realista, eu me via no oitavo encontro junto ao Leprevost, os dois sozinhos lendo o último conto e apagando a luz.

Mas não foi o que aconteceu, você já deve imaginar. Não usamos a salinha acanhada e nos encontramos por trinta e cinco semanas no confortável Audi­tório (ar-condicionado para os dias frios e quentes do ano de 2023). O projeto ficou em cartaz por duas temporadas, lemos e discutimos grandes autores como: James Joyce, Tchekhov, Conceição Evaristo, Chimamanda Adichie, Tolstói, Milton Hatoum, Poe, Hemingway, Raymond Carver, Kafka, Lucia Berlin, Nelson Rodrigues, entre outros. Nestas noites agradáveis, podíamos conversar sobre algumas peculiaridades técnicas das narrativas. Por exemplo, o comportamento de um narra­dor, sua visão de mundo, como ele constrói o espaço da narrativa, mas sempre com o intuito de compreender melhor o enredo e as ideias do conto, e não pela técnica em si, como pirotecnia. Entretanto, o mais importante nos encontros e na apresentação dos ficcionistas é refletir como aquelas histórias podem nos ajudar a pensar o mundo contemporâneo, nossas ações e escolhas no cotidiano. Como um personagem de ficção pode nos ajudar a compreender uma rejeição amorosa, nossa relação com os pais, as brigas com um irmão, entre outras relações humanas. Lendo juntos, tivemos a chance conversar sobre o medo da morte, a juventude, a velhice, as escolhas que fazemos na vida e como isso altera toda a experiência do que viveremos. No centro de Curitiba visitamos outros países e culturas, imaginamos a vida de mulheres no século XIX e pudemos examinar as diferenças para as personagens e escritoras mulheres do século XXI.

Um dos grandes desafios de se falar sobre literatura para um público geral, não acadêmico, é justamente conseguir apresentar de forma honesta e interessante os autores e formar leitores que possam aproximar-se e descobrir a grande potência de formação humana da literatura. Sem apelar para facilitações ou vulgarizações, mas também sem uma sacralização estéril dos grandes nomes, o principal objetivo do projeto é ajudar as pessoas a lerem mais e melhor ficção de qualidade, serem sensibilizadas, tocadas, mudadas, provocadas e confrontadas em suas certezas pelos textos e suas ideias. Acho que conseguimos isso. Nós nos divertimos, demos boas risadas, aprendemos ouvindo os outros, trocamos sorrisos. Criamos um espaço para que as pessoas pudessem desligar-se de seus afazeres diários, dos estímulos insistentes dos smartphones, dos anúncios publicitários, das músicas de elevador, dos chamados infinitos de um mundo ruidoso e barulhento.     

O Conto de Natal de Auggie Wren foi nossa última leitura do ano e deixou uma forte impressão em mim, e imagino que em todos que estavam lendo comigo. A literatura é exigente, não aceita um leitor distraído. A vida é exigente e cobra caro nossas pequenas e grandes distrações em relação aos outros, ou a nós mesmos. Num mundo diabolicamente configurado para o entretenimento banal, rasteiro, entrar em uma biblioteca e ler é um desafio enorme. Mas é, também, um prazer inigualável. Poder encontrar nos enredos e personagens fiapos de sentido para a nossa humanidade nos traz alguma esperança de que podemos viver de uma forma mais tranquila, ser mais e melhor. Precisamos pensar a nossa existência, a nossa pressa, e para isso, há tempos, inventamos as narrativas, a literatura. E assim, com calma, observando os detalhes de tudo o que pulsa e respira, a gente possa um dia afirmar que “distraídos venceremos”, com o humor e a beleza do poeta.