OUTRAS PALAVRAS | Mulheres amarelas e narrativa de memórias 18/09/2025 - 15:23

Por Isa Honório


O Cândido publica o especial Outras Palavras, uma série de entrevistas realizadas pela equipe do jornal com as escritoras e artistas participantes das mesas redondas do evento "Ocupação Mulheres Arquivadas" — ação em parceria com o Projeto Mulheres Arquivadas e a Biblioteca Pública do Paraná — realizada no mês de março.

A conversa "Mulheres amarelas e narrativa de memórias" teve a presença de Marilia Kubota e Rafaela Tavares Kawasaki, com mediação de tayna miessa. O bate-papo girou em torno da escrita e produção artística de mulheres com ascendência asiática, e a relação desses processos com suas vivências, memórias e culturas.

 

Marilia Kubota
Marilia Kubota

 

Marilia Kubota nasceu em Paranaguá (PR) em 1964, é poeta, jornalista e mestre em Estudos Literários. Publicou Que o só levante e Eu também sou brasileira (crônicas) e a voz dos ares e velas ao vento (poesia), entre outros. Curadora das coletâneas Um girassol nos teus cabelos – Poemas para Marielle Franco, Blasfêmeas: mulheres de palavra e Retratos Japoneses no Brasil. Seus textos circulam em países como Argentina, Portugal, Cuba, México e Estados Unidos.

 

O que a literatura significa para você?

Desde que aprendi a ler, aos 6 anos, tudo.

 

Como é o seu processo de escrita e qual a sua parte prefe­rida?

Escrever (poesia, crônica, conto, romance) acontece. Escrevo quando me sinto provocada. Antes, me sentia provocada pela leitura de livros, por ouvir uma canção, ler poemas. Hoje, um de meus catalisadores de sen­sações é a memória. Catar ideias é uma delícia. O pro­cesso de criar é o melhor. Revisar também é gostoso, mas sou obsessiva. Edito e reviso inúmeras vezes. Sou relapsa para pesquisar, por isso não publiquei narra­tivas longas até hoje.

 

Como mulher amarela, o quê "narrativa de memórias" significa para você?

Quando eu era jovem, não tinha memórias, só trau­mas. Agora, aos 60, com anos de psicanálise, percebo como podem ser reelaboradas através da memória narrativa. Contar histórias ou escrever poemas é mais eficiente do que deitar no divã. Sou amarela, mas também asiática, e há asiáticas marrons e brancas. É bom conhecer histórias de todas as asiáticas, sejam japonesas, coreanas, chinesas, indianas, árabes ou diaspóricas. Nós temos uma vivência em comum, pela ances­tralidade de culturas tradicionais, pelas etnias e resso­nância com outros povos, como negros e indígenas.

 

Qual o maior desafio que você enfrenta na cena literária e editorial?

Publicações, eventos e editoras ainda são um universo dominado por homens brancos heterossexuais de classe média e alta que vivem em grandes centros urbanos. Nos últimos anos, pequenas editoras permitiram ouvir vozes subalternas, como a de Conceição Eva­ris­to. Há editoras como a Mazza, da Maria Mazzarello, que publica autoras negras; Tabla, que divulga autoria árabe; a microeditora Veñas Abiertas, da Karine Bassi, que ganhou um Jabuti com uma coleção do Mulherio das Letras; há a heroica Lamparina, da Tereza Andrade, no Rio de Janeiro; a Lavra, do João Caetano, que publica autores da periferia de São Paulo e publicou meus livros Eu também sou brasileira e a voz dos ares, haicais em parceria com Maria Valéria Rezende e ilustrado com sumiês de Lúcia Hiratsuka; há a Telaranha, aqui em Curitiba, que publicou Assionara Souza e Rollo de Resende.

O surgimento de vozes diversas transforma a cena, mas estereótipos são persistentes. Ainda ouço racismo recreativo quando frequento eventos ou rodas literárias e há casos perversos, como a censura a Jefferson Tenório e a acusação infundada à Lilia Guerra na Flip este ano.

 

Recomende duas autoras amarelas que são inspiração para você e comente sobre a sua escolha.

Não poderia deixar de citar Han Kang, que representa escritoras contemporâneas, não só amarelas. O Nobel é importante para nós que escrevemos, e ela escreve de maneira insuportável para os homens. 
No Brasil, já citei Lúcia Hiratsuka, como parceira, e as pessoas podem se iludir porque ela escreve para crianças. Os livros de Sayuri conta a história do amor de uma menina pela escrita e pela leitura, numa época em que eram atividades clandestinas para imigrantes japoneses e seus filhos. Este livro conta um pedaço de nossa história para as crianças, com poesia e espírito livre de ressentimento. Imagens contam histórias e Lúcia sabe usar texto e imagem para narrar como ninguém. A literatura considerada menor pelo cânone literário e mer­cado editorial atinge milhares de leitores e é imensa!

 

Rafaela Tavares Kawasaki
Rafaela Tavares Kawasaki

 

Rafaela Tavares Kawasaki (Araçatuba (SP), 1987) é autora dos livros Enterrando gatos (Patuá, 2019) e Peixes de aquário (Urutau, 2021), finalista do Prêmio Mix Literário, e Memórias de Água (Telaranha, 2025), realizado por meio da Lei Paulo Gustavo. Integra o coletivo literário Membrana. Seu trabalho Venha ver a revoada – projeto de criação aberta de romance sobre migração brasileira no Japão – é um dos selecionados pelo edital Rumos Itaú Cultural 2023-2024. Identidade, memória, imigração e família são temas de sua obsessão.

 

O que a literatura significa para você? 

Minha relação com a literatura é primariamente a de um ofício. Faz parte de uma ocupação prolongada de investigação e práticas sobre linguagem, narrativas e criação. A literatura é meu trabalho.

 

Como é o seu processo de escrita e qual a sua parte preferida? 

Meu processo de criação é composto por camadas. Cada projeto para mim só começa a ter um significado quando encontro intencionalidades para como vou tra­balhá-lo. Como ela se integra ao meu projeto de escrita como um todo? O que pretendo de experiência estética com a palavra? Quais temáticas vão entrecruzar esse conto, poema, narrativa longa, livro? É a partir disso que inicio pesquisas, composição aprofundada de personagens, exercícios. Esse é um alicerce.

Depois vem a escrita propriamente. Gosto de trabalhar com pedaços do trabalho, costurá-los, expandi-los. Faço muita reescrita, que é uma das etapas que  mais gos­to, porque é o que lapida o projeto até ele chegar a sua forma final. Adoro fazer essa espécie de trabalho de te­celã, de costura que a reescrita permite. Também me interessa muito estudar as personagens para entender seu tom, seu papel na história, quais condições humanas elas refletirão, quando escrevo ficção. E isso acontece um pouco com a poesia, quando lido com a voz lírica como uma construção de personagem. Eu falei de intencionalidades, né? Há também as camadas do inconsciente, das imagens que surgem sem eu provocar, das ideias que me assombram até eu escrever. Acho que meu trabalho é uma mistura dessas duas coisas, o trabalho intencional e o lado cru, sensível que me leva a obsessões com cada projeto.

 

Como mulher amarela, o quê "narrativa de memórias" significa para você?

Para mim significa entrelaçar a pesquisa sobre imigração com a investigação dos mecanismos de lembrar e esquecer, como eles estão profundamente ligados ao que nos torna humanas. Quando pensamos no contexto brasileiro, as pessoas amarelas são filhas, netas e bisnetas de imigrantes que vieram ao Brasil. Se arrastarmos o olhar para um movimento contrário, que desde os anos 1980 passou a fazer parte da vida de muitas pessoas amarelas brasileiras, especificamente as nipo-brasileiras, as narrativas da memória desembocam em outra ligação entre elas e imigração. Muitos nipo-descendentes migraram do Brasil para o Japão. Coincidência ou não, ambos os fluxos migratórios foram motiva­dos por questões econômicas e pelo trabalho. É esse meu próprio contexto familiar e inevitavelmente ele se reflete na minha escrita.

A minha ideia de narrativa de memórias como pessoa amarela envolve escavar memórias sobre trabalho, sobre deslocamentos, sobre a solidão, sobre classe e sobre a relação com idiomas. Por isso, Peixes de Aquário, meu romance, fala sobre esquecimento, trauma, rancor e camadas de afeto entre uma família de imigrantes japoneses que viveram em uma colônia brasileira e trabalharam no campo, com algodão e seda. Por isso, poemas de Memórias de Água lidam com a infância migrante, ser uma mescla entre dois países e também com o trabalho na fábrica. Venha ver a revoada, o romance que estou escrevendo, cruza memórias de gerações de dekasseguis, mas também com a fotografia, a fragmentação familiar, a diáspora pelo trabalho nas fábricas, mas também com as memórias amorosas e do cotidiano migrante.

 

Qual o maior desafio que você enfrenta na cena literária e editorial?

Como falei antes, a literatura para mim é um ofício. Meu maior desafio e de quem trabalha com escrita literária, pelo que vejo com colegas, é a dificuldade de que essa atividade seja tratada como uma atividade profissional, remunerada, reconhecida. Eu estou num lugar confortável este ano porque aprovei dois projetos em editais e consegui uma remuneração justa pela minha escrita. Ainda assim, preciso trabalhar com outra atividade para ter um sustento e estabilidade. Além disso, essa não é a realidade da maioria. E nem sei se vou conseguir recursos com novos projetos no futuro. Sem editais públicos ou privados, nos quais uma quantidade mínima de escritores é contemplada, a remuneração da pessoa autora é muito baixa, quando há remuneração. Sem remuneração, por mais que a pessoa ame a escrita, em longo prazo, o trabalho se torna insustentável. Nesses pontos, a literatura não é um ofício com segurança.

 

Recomende duas autoras amarelas que são inspiração para você e comente sobre a sua escolha. 

Vou recomendar duas autoras que acredito que nesse momento me influenciam bastante. Uma é a Fumiko Hayashi que é uma romancista e contista japonesa com uma obra incrível, que fala muito sobre a situação das pessoas no pós-guerra, sobretudo a das mulheres da classe trabalhadora. Como é que esse contexto afeta suas relações familiares, esperanças sobre um futuro, suas relações amorosas? Ela escreve histórias com uma beleza imensa no que diz respeito ao uso da narrativa para se relacionar com as emoções (de quem lê, das personagens). Seus livros são muito humanos, com uma escrita muito bem trabalhada.

A outra indicação é a Yūko Tsushima. Um dos livros mais bonitos dela, Território de Luz, foi traduzido recentemente pela Rita Kohl. A escrita dela também é belíssima, trata de uma forma muito pungente sobre mater­nidade, solidão e sobre um cotidiano que tem muitas dimensões.

 

tayna miessa
tayna miessa

 

tayna miessa é produtora e multiartista, filha de imigrantes e reside em Curitiba (PR). É militante do Movimento de Mulheres Olga Benário e atua profissionalmente no ramo artístico desde 2017. Foi produtora executiva da peça “Hi, Breasil!”, que levou o Prêmio Especial da 39ª Edição Troféu Gralha Azul em 2019. Em 2023 inicia seu trabalho junto à banda ímã. Foi letrista para o cartaz do curta “Amarela”, de André Hayashi, que concorreu no Festival de Cannes em 2024, e em setembro de 2025 atuou como produtora da Feira Muvuca da 8ª Bienal de Quadrinhos de Curitiba. Como produtora acredita na grandeza do encontro, no poder do povo e na potência transformadora que a arte possui.

 

O que a literatura significa para você? 

A literatura para mim, assim como outras formas de arte, tem um significado muito profundo sobre a questão da memória, sobre o que fica, e sobre o que pode ser. Assim como a memória é um tecido que se transfere entre passado, presente e futuro, a literatura também é isso. Ela é definitiva para nós escolhermos o que vai ficar, quais são as histórias, as palavras escritas que ficam para além de nós. Mas também, ela define o que vai ser e até onde a nossa imaginação pode ir, até onde as histórias podem ir. A literatura é essa ferramenta muito poderosa, de memória e futuro. 

 

Como é o seu processo de criação artística e qual a sua parte preferida? 

O meu processo é geralmente o de tentar. Primeiro faço o rascunho, e acho que o rascunho é um processo que a gente esquece muito, porque dá vontade de ser muito bom da primeira vez. O trabalho artístico é labuta também. O processo que eu geralmente faço é ter uma ideia, um vislumbre do que eu quero fazer, e a partir daí eu destrinchar o que vou fazer mesmo. Eu também visito coisas que façam sentido com a temática: vejo filmes, leio livros, pesquiso poesias. Mas a minha parte favorita é o erro. Ao longo dos anos eu venho percebendo que errar faz parte do processo, e tenho sentido um carinho especialmente pelo erro, pelo rascunho, pelo que  a gente faz de novo, de novo, e de novo. 

 

Como mulher amarela, o quê "narrativa de memórias" significa para você?

Para mim, a narrativa de memórias significa essa brecha de poder falar em primeira pessoa sobre uma história que diz respeito a nós. E também é esse tecer, nesse tecido tão doloroso, que reflete muitas questões da imigração. Porque, pela minha vivência em específico, a minha história está profundamente ligada à história da imigração, tanto pelas minhas antepassadas quanto pelas mulheres na minha família hoje. Então, a narrativa de memórias é essa possibilidade de querer não só viver, mas de pensar em como guardar essas memórias.

 

Qual o maior desafio que você enfrenta na cena cultural?

Uma das maiores dificuldades da cena cultural e literária que temos hoje é a falta de recursos – os trabalhadores da cultura enfrentam as questões do sistema que a gente vive hoje, o capitalismo. Viver no sistema capitalista é muito cruel porque ele vê o trabalho cultural como indigno, não entende como algo produzido para a população, mas sim a favor do lucro, de um mer­cado, para enriquecer pessoas que já são ricas.

Apesar da cultura ser trabalho, às vezes parece mágica. Não se vê a materialidade do preço do papel, do preço de se construir uma pessoa, de pensar algo, de você ler e acumular conhecimento. Tudo isso tem um valor. Acho que um dos grandes desafios é o das pessoas terem trabalhos dignos e receberem de maneira justa pelo seu próprio trabalho. Uma escritora não con­segue receber por todo o trabalho que ela faz, porque é um trabalho ainda invisível para várias pessoas. Muitas de nós, autoras independentes e artistas que estão começando, pessoas que estão pela primeira vez vislumbrando o fazer artístico como uma possibilidade na sua vida, tem essa possibilidade ceifada, porque não se tem os recursos. 

 

Recomende duas autoras amarelas que são inspiração para você e comente sobre a sua escolha. 

A primeira é uma autora que participou da mesa: a Rafaela Tavares Kawasaki, em especial com o livro Memórias de Água. Me inspira muito esse poder da poesia, de colocar as palavras de um jeito que mexa com a gen­te. Elas são colocadas de um jeito que mexe com o nos­so subjetivo, com coisas que eu nem sabia que pode­riam se mover dentro de mim. Eu acho isso muito ins­pirador e muito incrível.

A outra recomendação é Michelle Zauner, autora do livro Aos prantos no mercado. Essa indicação vem em específico, porque na edição brasileira, da editora Fósfo­ro, quem fez a capa é uma artista chamada Ing Lee. A capa está belíssima e eu admiro muito o trabalho dela também. Essa autora é uma inspiração porque ela é multiartista, também é cantora. Nesse livro ela fala de uma maneira muito bonita, muito crua, sobre o processo da morte da mãe dela, e sobre também sobre as camadas de ser uma mulher asiática nos Estados Unidos. É um livro bem intimista e eu acho que se relaciona comigo de uma maneira estranhamente familiar, por mais que esteja longe. Me faz lembrar que nós humanos somos muito parecidos e a gente sente coisas muito parecidas, mesmo com grandes distâncias geográficas.