OUTRAS PALAVRAS | Escritas dissidentes 10/06/2025 - 11:53

O Cândido publica o especial Outras Palavras, uma série de entrevistas realizadas pela equipe do jornal com as escritoras e artistas participantes das mesas redondas do evento "Ocupação Mulheres Arquivadas" — ação em parceria com o Projeto Mulheres Arquivadas e a Biblioteca Pública do Paraná — realizada no mês de março.

A conversa "Escritas dissidentes" teve a presença de Mercuria, Be rgb e Hell, com mediação de Daniele Rosa. O debate girou em torno dos processos de escrita e da produção literária de vozes de pessoas trans e não bináries da literatura em Curitiba.

 

Mercuria
Mercuria

 

Mercuria é artista sapatão não binárie da perfor­mance, escritora, editora, produtora e habilitada em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde se dedicou à pesquisa de arte-ativismos das dissidências de gênero e sexualidade. Escreveu os livros Tudo que fiz, fiz com esse corpo (2023) e devoção (2024), além de ter sua primeira tradução publicada neste ano, Criaturas de Lilith (2025). Faz parte do Cole­tivo Membrana Literária desde 2018 e é cocriadora da Demônia Editora. Suas produções e interesses envol­vem dissidências, destruição, loucura, trauma, insur­gência, natureza, mística, oráculos, poesia e erotismo.

 

O que a literatura significa para você?

A literatura para mim é o chão a partir do qual eu dou o salto: um chão fértil onde eu crio e cuido de mim e de quem me acompanha, saltando para o abismo. É neste salto que se torna possível transformar dor em júbilo. Esse chão-literatura é a realização de um desejo que se dá pelo amor e também pelo combate.

 

Qual a sua parte favorita do seu processo de escrita?

A tentativa de elaborar o sofrimento em linguagem mesmo que ele sempre a transcenda. O momento de abertura em que essa angústia se transmuta no que há de mais precioso e valoroso em mim. Esse processo criativo, mesmo que conflituoso, é uma cura – sem ser um fim em si mesma, mas sim um eterno processo.

 

Cite três autoras contemporâneas importantes na cena literária.

Julia Raiz, Nina Rizzi, Mariana Marino... têm muitas!    

 

Qual o maior desafio que você enfrenta na área da escrita/meio editorial?

O meio editorial ainda está preso na ideia de um escritor, editor ou tradutor uni­versal. Ideia que é agarrada na branquitude colonial e no sistema cisheteropatriarcal. E muito disso é respon­sável pelo desinteresse de diversas pessoas pela lite­ratura: ela não se areja, não encontra espaços para ser porosa para com a vida e o leitor não se vê ali. Nós, que fugimos da imagem que se tem de um autor, so­mos motor de uma literatura que ainda há de ter seu reconhecimento. Mas somos nós que estamos cons­truindo outras possibilidades, porque apenas o poder transformador da escrita não basta. É preciso que, en­quanto trabalhadores do livro e enquanto leitores, se­jamos lides, visites, ouvides.

 

Qual é a principal referência/inspiração no seu trabalho? Explique o por quê.

A feitiçaria, os oráculos e o mistério, porque são eles que permitem a transmutação; a comunidade dissi­dente que eu faço parte, porque somos nós fazendo por nós, desejando por nós, resistindo por nós; e o movimento natural da vida, das coisas que estão ou não no meu controle, mas que alimentam minha escri­ta. De forma curiosa, todas essas inspira­ções refletem uma postura de criação de si, que tam­bém é o que pos­sibilitou minha formação enquanto trabalha­dora do li­vro.

 

Be rgb
Be rgb

 

Be rgb, pronomes elu/ele, escreve, traduz, revisa e oferece as oficinas "esc/ritos, encarnar-se" e "textos, tecidos translúcidos". É integrante do Coletivo Membrana Literária e mora em Curitiba. Pesquisou sobre os estudos feministas da tra­dução e/m queer/cu-ir no doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou a plaque­te with a leer of love (2019), os livros querides monstres (2023), a mística do bestiário não binário (2023) e transmigrações (2024). Traduziu textos de literatura e não ficção do inglês, espanhol e catalão.

 

O que a literatura significa para você?

A literatura é o chão da minha vida. Bem criança, minha família lia para mim uma história por noite, de livros que se organizavam pelas estações do ano; e quan­do aprendi a escrever, dobrava folhas de sulfite e as grampeava, para desenhar na folha esquerda e deixar um poema na página seguinte. Sabe aquelas crianças que preferem ler um livro em um canto a entrosar nas reuniões de família ou nos intervalos do colégio? Até hoje sou essa pessoa, porque a literatura dá sentido para minha vida. Não apenas como leitore, tradutore e revisore, esses lugares tanto de prazer quanto de ofício, mas principalmente como pessoa que escreve. Não consigo elaborar a existência sem o campo imaginativo da literatura convivendo comigo ao longo dos dias. Se fico um dia sem ler uma história ou um poema, sinto um vazio que me dói; se fico alguns dias sem escrever, sinto que afundo nas areias, sem ar. A literatura é minha forma de existir.
 

Qual a sua parte favorita do seu processo de escrita?

Os ritos andarilhos-místicos que convivem com a escrita. Ainda que algumas ideias possam me atravessar durante os dias, é raro que a aridez da vida adulta longe das trilhas, das rochas e do mar me inspirem matéria de escrita. Acabo me levando para as montanhas por uma necessidade tão forte quanto a da literatura, e consequentemente as ideias literárias costumam surgir desses estados de presença na andança, o deslocamento sensorial-espiritual que vibra na carne. O último livro que me ocorreu escrever, e ao qual agora me dedico, surgiu nos caminhos do Anhangava perto do meu aniversário — assim como em outros livros.

 

Cite três autoras contemporâneas importantes na cena literária.

Amara Moira, Alana S. Portero, Akwaeke Emezi (quero citá-le, mesmo sendo pessoa não binária, porque sua prosa é imensa).

 

Qual o maior desafio que você enfrenta na área da escrita/meio editorial?

Acho que o maior desafio que enfrento é que não escrevo nada convencional e que sempre utilizo a linguagem não binária. Não me interessa escrever em conso­nância com tendências formais ou temáticas apenas para atrair engajamento ou repercussão (porque até as dissidências têm os seus clichês). O que me move na escrita é um impulso de criar com autenticidade aquilo que me encarna e que acredito que vale a pena conjurar como arte, e estou pouco me importando para o que vende (ainda que em alguma medida isso seja ruim, porque me impossibilita ainda mais de viver da escrita). Além disso, escrevo usando a linguagem não binária porque acredito que ela dissolve os binarismos machistas e cisgêneros do português brasileiro. É uma questão ética. Nem preciso dizer o que acontece quando você escreve uma literatura esquisita em linguagem não binária, né?

 

Qual é a principal referência/inspiração no seu trabalho? Explique o por quê.

As forças sensíveis. Cresci em família de terreiro, interpretávamos sonhos no café da manhã, e elas sempre estiveram presentes, até quando ousei duvidar delas. Toda manhã, falam pelas cartas de tarô, e ressurgem sempre que desejam, independentemente de qualquer vontade. Tudo que escrevo é uma tentativa de elaborar nossa convivência.

 

Hell
Hell


Hell é uma pessoa não binária, neurodivergente/autista. É poeta e artista da performance, graduande em Artes Visuais na Escola de Música e Belas Artes do Paraná / Universidade Estadual do Paraná (EMBAP/UNESPAR), onde se aprofunda nos estudos em performance e pesquisa a relação performance-loucura. É membro da Valeta Coletiva, cria coletivamente o Dissidrags e a Mostra Sem Futuro. Em 2022, publicou seu primeiro livro individual pela e­ditora Urutau: Ainda mais um ser do capitalismo tardio. Integra o Coletivo Membrana Literária e tem interesse em zines.

 

O que a literatura significa para você?

Literatura é a possibilidade de encontro com outros tempos e distâncias. É um canal para potências necessárias à vida.

 

Qual a sua parte favorita do seu processo de escrita?

É a parte que eu chamo de "escrever na cabeça". Uma ideia incontrolável toma conta do meu pensar e não posso evitar de transformá-las em versos, fico impossibilitade de realizar qualquer outra atividade além de imaginar as linhas e brincar com elas, é só então que as escrevo fisicamente para não esquecê-las.

 

Cite três autoras contemporâneas importantes na cena literária.

Vou dobrar um pouco a pergunta citando também outras áreas da literatura contemporânea: Trava da Fronteira (Andrê) em seu trabalho impecável com slam, zi­nes e roteiros; Mercuria tanto em seu trabalho de escrita quanto com a importância da sua atuação editorial na necessária Demonia Editora, e Emanuela Siqueira com suas destacadas traduções, clubes de lei­tura e zines.
Me refiro a três pessoas próximas, pois acredito na importância de nos inspirarmos nos nossos e de nos rodearmos de afetos inspiradores.

 

Qual o maior desafio que você enfrenta na área da escrita/meio editorial?

O pouco espaço para pessoas verdadeiramente dissidentes, que não sirvam aos desejos do capital.

 

Qual é a principal referência/inspiração no seu trabalho? Explique o por quê.

A minha principal inspiração vem do impacto da vivência no contemporâneo, no ser um corpo em carne viva em contato com esse todo.

 

Daniele Rosa
Daniele Rosa


Daniele Rosa escreve, faz zines e realiza mediação de leitura. Integra os coletivos Membrana Literária e Fanzine Grrrls Lab. Participou de coletâneas, revistas impressas e eletrônicas. Publicou diversos zines e os livros Perpétuo (2021) e café da manhã com arranha-céus (2023).

 

O que a literatura significa para você?

É  reconfigurar o mundo com as palavras.

 

Qual a sua parte favorita do seu processo de escrita?

Tirar um texto que estava na gaveta e trabalhar nele, ver que realmente tem alguma coisa de interessante ali e entender o caminho que se precisa tomar com ele.

 

Cite três autoras contemporâneas importantes na cena literária.

Felizmente, e graças a muita briga, hoje temos muitas pessoas presentes na cena literária. Mulheres cis e trans, mulheres negras, indígenas, amarelas, travestis, pessoas não binárias; que são autorias que fogem da hegemonia literária que desde sempre dominou a cena. Pessoas que estão escrevendo há muito tempo e não encontravam espaço. Nesse contexto, muitas pessoas são importantes. Cito Adelaide Ivánova, Amara Moira e Tatiana Nascimento.

Qual o maior desafio que você enfrenta na área da escrita/meio editorial?

A dificuldade é que as pessoas compreendam que literatura também é trabalho. Escrever é trabalho. Revisar é trabalho. Traduzir é trabalho. Mediar clube de leitura é trabalho. Preparar fala, oficina, mediação de evento literário é trabalho. Ler para escrever resenha é trabalho. E tantas outras funções. Todas exigem pesquisa, estudo constante, dedicação de tempo e energia, domínio de referências, organização logística. São atividades profissionais, ainda que muitas vezes realizadas "com amor". E, na sociedade capitalista em que vivemos, troca-se tempo de trabalho por remuneração — é isso que permite manter uma vida com dignidade. A lógica é simples, ou pelo menos deveria ser.

 

Qual é a principal referência/inspiração no seu trabalho? Explique o por quê.

Ana Cristina Cesar é uma referência incontornável. Converso com os seus poemas, porque estão sempre emer­gindo na minha cabeça ou na minha escrita. A poesia dela é a própria injeção de neorrealismo na veia
 

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