NICOLAU | Transparências 13/06/2024 - 16:36

O Cândido 151, do mês de junho, seleciona o primoroso texto “Transparências”, do poeta mexicano Octavio Paz. “Com autorização expressa do próprio autor, por telefone, desde a Cidade do México, os textos aqui publicados, inéditos em língua portuguesa, fazem parte do livro Teatro de Signos”, conforme registro do jornal de agosto∕setembro, de 1991, traduzidos por Karin Cristina Beeck.

Na publicação ainda constam depoimentos de Haroldo de Campos, Celso Lafer e José Olivio Jiménez sobre Paz. Octavio Paz (1914-1998) foi poeta e ensaísta. Com 17 anos, publicou seus primeiros poemas na revista Barandal, e ao longo de sua carreira escreveu mais de 20 livros de poesia e diversos ensaios de literatura, arte, cultura e política.

Em 1938, fundou no México a revista Taller, um dos principais veículos de divulgação de uma nova geração de escritores, além de duas outras revistas influentes no mundo da arte, a Plural (1971) e a Vuelta (1976).

Em 1990, ganhou o prêmio Nobel de Literatura, com O Labirinto da Solidão. Recebeu ao longo de sua carreira o Prêmio Xavier Villaurrutia em 1957 para O Arco e a Lira, o Prêmio Internacional de Poesia em Bruxelas, Bélgica em 1963, o Prêmio Nacional de Ciência e Artes em Linguística e Literatura, o Prêmio Jerusalém, Prêmio Nacional de Literatura Mexicana, entre outros.

 

*Publicamos todas as edições do Jornal Nicolau em sua versão original, inclusive com o acordo ortográfico vigente na época e a biografia dos autores(as).

 

Transparências 

I Creio que o fragmento é a forma que melhor reflete esta realidade em movimento que vivemos e que somos. Mais que uma semente, o fragmento é uma partícula errante que só se define diante de outras partículas: não é nada se não é uma relação. Um livro, um texto, é um tecido de relações.

II Em teu castelo de diamante tua imagem se destroça e se refaz, infatigável.

III Poesia e amor são atos semelhantes. A experiência poética e a amorosa nos abrem as portas de um instante elétrico. Ali o tempo não é uma sucessão: somente há um sempre que é também um aqui e um agora. Caem os muros da prisão mental; espaço e tempo se abraçam, se entretecem e se desdobra a nossos pés o tapete vivente, uma vegetação que nos cobre com mil dedos de erva, que nos desnuda com mil olhos de água. O poema, como o amor, é um ato em que nascer e morrer, esses dois extremos contraditórios que nos dilaceram e fazem de tal modo precária a condição humana, pactuam e se fundem. Amar é morrer, disseram nossos místicos; mas também, e por isso mesmo, é nascer. René Char escreve: “O poema é o amor realizado do desejo que permanece desejo”.

IV Transparência, reflexo, olhar que não olha, como fugir, como romper os portões de ferro invisíveis, contra quem levantar a mão? Amor sem rosto, multidão sem rosto, horizonte sem rosto. Perdemos a alma e logo o corpo e a cara. Somos um olhar ávido, mas já não há nada para olhar. Alguém nos olha. Vamos de nenhum lado a nenhuma parte.

V A água é feminina ou a mulher é movimento das ondas, rio noturno, praia do amanhecer tatuada pelo vento? Se os homens somos uma metáfora do universo, o semelhante é a metáfora por excelência, o ponto de encontro de todas as forças e a semente de todas as formas. O semelhante é, outra vez, tempo reconquistado, tempo antes do tempo.

VI Paradoxo do erotismo: no ato amoroso possuímos o corpo da mulher como uma totalidade que se fragmenta: simultaneamente, cada fragmento — um olho, um pedaço de rosto, um lóbulo, o esplendor de um músculo, a sombra do cabelo sobre um ombro, os lábios — alude aos outros e, de certo modo, contém a totalidade.

 

nicolau

 

VII Os corpos são hieróglifos sensíveis. Cada corpo é uma metáfora erótica e o significado de todas estas metáforas é sempre o mesmo: a morte.

VIII A poesia moderna é uma tentativa de abolir todas as significações porque ela mesma se pressente como significado último da vida e do homem. Por isto é, a um tempo, destruição e criação da linguagem. Destruição das palavras e dos significados, reino do silêncio; mas, igualmente, palavra em busca da palavra.

IX Não há mito, não há fábula recriadora do mundo e, numa palavra, não há poesia, o que temos é apenas um rito. A poesia é liturgia: os instantes centrais do homem — desde o nascimento até a morte — a prefigura e a consagra num rito. O poema é uma cerimônia fúnebre: a máscara solar do poeta esconde um rosto devorado pela morte. Forma é vida. A falta de forma do mundo moderno é ausência de verdadeira vida. Em nossos dias a missão do poeta consiste em convocar os antigos poderes, reviver a liturgia verbal, dizer a palavra da vida.

X O poeta inocente é um mito, mas é um mito que funda a poesia. O poeta real sabe que as palavras e as coisas não são o mesmo e por isto, para restabelecer uma precária unidade entre os homens, nomeia as coisas com imagens, ritmos, símbolos e comparações. As palavras não são as coisas: são as pontes que estendemos entre elas e nós. O poeta é a consciência das palavras, quer dizer, a nostalgia da realidade real das coisas. Certo, as palavras também foram coisas antes de ser nomes de coisas. Foram usadas no mito do poeta inocente, isto é, antes da linguagem. As opacas palavras do poeta real evocam a fala de antes da linguagem, o entrevisto acordo paradisíaco. Fala inocente: silêncio em que nada se diz porque tudo está dito, tudo se está dizendo. A linguagem do poeta se alimenta deste silêncio que é fala inocente.

XI Cortar o cordão umbilical, matar bem a Mãe: crime que o poeta moderno cometeu por todos. Toca ao novo poeta descobrir a Mulher.

XII A atração entre sílabas e palavras não é diferente à dos astros e à dos corpos. A antiga noção de analogia reaparece: a natureza é linguagem e esta, por sua parte, é o espelho daquela. Recuperar a linguagem natural é voltar à natureza, antes da queda e da história: a poesia é o testemunho da inocência original.

XIII “O ser ama ocultar-se”: a poesia se propõe a fazê-lo reaparecer. De alguma maneira, em algum momento privilegiado, a realidade escondida se levanta de sua tumba de lugares comuns e coincide com o homem. Neste momento paradisíaco, por primeira e única vez, um instante e para sempre, somos de verdade. Arrasado pelo humor e recriado pela imaginação, o mundo não se apresenta como um “horizonte de utensílios” mas sim como um campo magnético. Tudo está vivo: tudo fala ou faz signos; os objetos e as palavras se unem ou se separam conforme certas evocações misteriosas.

XIV Cada carícia dura um século, para o deus e para o homem.

XV A ressurreição dos corpos afasta o trabalho como valor supremo de nossa civilização.

XVI Música e pão, leite e vinho, amor e sonho: grátis.

XVII Cai a noite. Sol.

Nicolau

tradução: Karin Cristina Beeck

Com autorização expressa do próprio autor, por telefone, desde a Cidade do México∕México, os textos aqui publicados, inéditos em língua portuguesa, fazem parte do livro Teatro de Signos (Espiral∕ Editorial Fundamentos, Caracas∕Venezuela).

 

 

 

entre a pedra e a flor

Octavio Paz, 77, nasceu na Cidade do México∕México. É hoje a figura de maior influência na poesia e no pensamento crítico-poético hispano-americano. Esteve associado em seus primeiros anos à revista "Taller" e ao movimento surrealista, que considera o grande impulso, neste século, para a liberação total do espírito. A nota mais singular desta voz de acento vigoroso e original pode ser o grau de intuição sensível, ao mesmo tempo que de genuína qualidade poética. Assim, Paz revela no verso os problemas existenciais mais fundos do ser humano em sua dupla dimensão pessoal e histórica (a angústia da temporalidade, a essencial heterogeneidade do ser, a dificuldade da comunicação, o alheamento do homem contemporâneo, o intento de salvação por meio de um erotismo francamente assumido...). Para este escritor, que considera nossa decadência atual intimamente ligada a uma crise de linguagem, a poesia é um dos elementos que nos leva com exasperante intensidade ao encontro da estação mais violenta: a do amor. Entre seus inúmeros livros, merecem registro O Arco e a Lira, O Labirinto da Solidão, Corrente Alterna, Blanco, O Mono Gramático. Poeta solitário e solidário, tanto quanto da lucidez e do delírio: eis aqui uma série de termos com freqüência empregados para descrevê-lo nesta luta interior com a esfinge, que nem sempre se reduz a um exercício puramente dialético, senão a um mais ambicioso propósito de integração plena com o mistério, o qual se reflete no seu imaginário de uma forma libérrima e brilhante e nunca gratuita. Prêmio Nobel de Literatura em 1990, Octavio Paz reside atualmente na Cidade do México.

 

quatro vozes para don octavio

Ensaísta incisivo. Octavio Paz tem contribuído esclarecedoramente para o conhecimento da alma mexicana (O Labirinto da Solidão), de alguns temas da poesia contemporânea em línguas hispânicas (As Pêras do Olmo, Quadrívio) e das mais variadas e universais questões (Corrente Alterna). A solidez de conteúdo e dicção são únicos na obra deste mexicano mas allá de tudo o que atrase o futuro.

(José Olivio Jiménez in Antología de la poesía hispanoamericana contemporánea: 1914- 1970)

 

Nesta tensão entre o poético e o político se radica, conseqüentemente, não só a tarefa, mas também a aporia do nosso tempo, e Octavio Paz, tentando encaminhar uma solução para este dilema, realizou uma façanha, digna de um descendente dos Conquistadores e do 68 projeto utópico que encarnaram — a visão do paraíso, cuja formulação e desempenho só podem suscitar a melhor admiração.

(Celso Lafer in O Poeta, a Palavra e a Máscara)

 

A posição de Octavio Paz, no quadro da atual literatura hispano-americana, traz a marca da singularidade. Se quisermos referir um nome, no campo da poesia, que possa corresponder, em ousadia formal, aos de Borges, Cortázar ou Lezama Lima no da prosa, teremos necessariamente que mencionar o do poeta mexicano e cidadão do mundo, nascido em 1914. Realmente, Octavio Paz, cuja obra começa a ser produzida a partir da primeira metade da década de 30, representa, no âmbito de uma literatura poética em que vinha, aos poucos, prevalecendo a superafetação retórica e a indulgência sentimental tardo-nerudianas, a tentativa quase isolada de delineamento de uma zona de rigor, de constante questionamento criativo da medula da linguagem.

(Haroldo de Campos in Signos em Rotação)