Especial | O mel do melhor 30/07/2021 - 12:40

O mel do melhor
 

Antologias reúnem textos que muitas vezes são o primeiro momento de revelação literária para um futuro leitor — mas elas têm prazo de validade

 

Marcio Renato dos Santos

 

No início de agosto, a editora Reformatório promove — por meio de lives — o lançamento de Geração 2010: O Sertão É o Mundo, antologia que reúne 25 autores brasileiros contemporâneos. Organizada pelo escritor e doutorando na Universidade Livre de Berlim Fred Di Giacomo, a publicação é uma espécie de continuidade de outras duas reuniões de textos literários, Geração 90: Manuscritos de Computador (2001) e Geração 90: Os Transgressores (2003), ambas organizadas por Nelson de Oliveira, ainda hoje discutidas. Mas esta nova iniciativa tem (e nem poderia ser diferente) as suas peculiaridades.

Fred Di Giacomo selecionou escritoras e escritores nascidos fora de capitais que, segundo ele, anteriormente dominaram a cena literária do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre. Outro critério do antologista: a repercussão da obra do autor deve ter acontecido a partir de 2010, independentemente da idade — para exemplificar, Giacomo cita Maria Valéria Rezende (ela publicou, por exemplo, o romance Vasto Mundo em 2001, mas passou a ser reconhecida com prêmios na última década). Por fim, Giacomo tinha a meta de que pelos menos a metade de Geração 2010: O Sertão É o Mundo fosse ocupada por mulheres — foram escolhidas 13 autoras e 12 autores.

"Além de território, tempo e espaço, equidade de gênero, procurei autores que tivessem qualidade literária. Sei que é um conceito subjetivo, mas busquei nomes que estavam fazendo um bom trabalho, além de abrir espaço para indígenas e o imaginário LGBTQIA+", diz o organizador da antologia que reúne, entre outros, Ailton Krenak, Débora Ferraz (vencedora do Prêmio Sesc 2014 na categoria romance), Itamar Vieira Junior (autor do premiado romance Torto Arado), Krishna Monteiro, Mariana Basílio (vencedora do Prêmio Biblioteca Digital 2020, da BPP, categoria poesia), Micheliny Verunschk (vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2015 na categoria melhor romance de autor estreante acima de 40 anos), Nara Vidal e Raimundo Neto (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2018, da BPP, categoria conto).

 

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Fred Di Giacomo, escritor e organizador da antologia Geração 2010: O Sertão É o Mundo. Foto: Acervo pessoal.

 

Outra Geração 2010

Nelson de Oliveira avisa que começou a organizar uma antologia da Geração 2010. Ele colecionou obras literárias brasileiras publicadas durante a década passada e agora realiza a seleção. A exemplo do que fez nos dois livros da Geração 90, e também em Geração Zero Zero: Fricções em Rede (2011), vai escolher autores que têm mais de uma obra publicada. Por enquanto apenas dois nomes estão, como Oliveira faz questão de salientar, "garantidíssimos": Aline Bei e Rafael Sperling. "A literatura deles me arrebatou", confessa o autor, entre outros livros, do romance Subsolo Infinito (2000).

A futura antologia da Geração 2010, que Oliveira prepara, ainda não encontrou editora. "Não contatei nenhum editor. Vou fazer isso quando terminar a seleção", informa. Ele organizou outras duas antologias: Fractais Tropicais (2018) e Mundo-vertigem (2020) — esta assinada como Luiz Bras, um dos pseudônimos do escritor paulista. A primeira, de acordo com Oliveira, reuniu “o melhor da ficção científica brasileira”, enquanto a segunda selecionou “o melhor da ficção fantástica brasileira contemporânea”.

Em 2017, assinando como Luiz Bras, Oliveira também organizou a antologia Hiperconexões: Realidade Expandida, com poemas sobre o que ele define como revolução pós-humana (tecnociência e biotecnologia). Essas as três iniciativas, os livros das Geração 90, o da 2000 (Zero Zero) e o da 2010 são, para ele, antologias-manifestos, ou seja, indicam um programa político-literário. "É nesse sentido que o formato antologia tem valor para mim. Não importa se o recorte é cronológico, geracional ou temático. Aprecio apenas as propostas que expressam uma verdade artística e filosófica", afirma.

 

"É nesse sentido que o formato antologia tem valor para mim. Não importa se o recorte é cronológico, geracional ou temático. Aprecio apenas as propostas que expressam uma verdade artística e filosófica"

 

Coleção de flores

A professora da UFMG Sabrina Sedlmayer explica que a modalidade textual denominada antologia possui longa tradição e faz parte da formação educacional e cultural do leitor do Ocidente. Tanto em grego, anthologias, como em latim, florilegium, as denominações possuem o mesmo significado: trata-se de uma “coleção de flores”, uma guirlanda capaz de oferecer exemplos representativos de um determinado período, temática ou autoria.

Professor aposentado da UERJ, visitante sênior na Unifesp, o antologista Ítalo Moriconi acredita que a maior importância de uma antologia é servir como porta introdutória a um universo literário. "Há antologias de vários tipos, como, por exemplo, as temáticas, em contraste com as antologias abrangentes, abarcando períodos históricos ou gêneros específicos. São instrumentos de ensino tanto fora quanto dentro do sistema escolar", analisa, acrescentando que, para muitas pessoas, a leitura de uma antologia é o primeiro momento de revelação literária.

 

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Ítalo Moriconi. Foto: Renato Velasco/divulgação

 

Dialogando com Moriconi, o professor da UFRGS Luís Augusto Fischer diz que a antologia bem feita cria um patamar de conversa letrada e estabelece um cânone. "Uma antologia seleciona e, muito mais importante, dá a ver, ou melhor, dá a ler. Isso num sentido geral, pensando no leitor genérico", teoriza. Fischer tem a convicção de que, considerando o sistema de ensino como um meio decisivo para formar leitores, as antologias crescem ainda mais de importância, "porque elas podem definir o gosto de uma época, de uma região".

 

Recortes de cada presente

O crítico literário e professor da Unicamp Alcir Pécora compreende uma antologia como resultado do esforço de construir algum tipo de amostra textual relevante para alguém ou para um grupo social no âmbito de sua área de interesse. "Pode significar também uma forma de dar publicidade a determinado conjunto de obras que ainda não têm reconhecimento público", observa.

Pécora afirma que esse tipo de publicação coloca o arquivo do passado (próximo ou distante) a serviço de uma interpretação do presente, construindo ou organizando uma tradição. "Mais raramente, a antologia pretende delinear algum tipo de ação futura ou de política cultural, mas em geral se esgota no gesto de valorização da amostra no presente", argumenta.

A exemplo de Pécora, Luiz Ruffato também analisa que as antologias são funcionais, principalmente, no período em que são publicadas. "Elas são importantes num determinado momento, por reunir um grupo de escritores, por gênero, geração ou região, afirmando esse conteúdo. Mas ao longo do tempo, a antologia perde o sentido, e é para perder mesmo o sentido", afirma Ruffato, autor de 10 livros e responsável pela organização de 20 antologias publicadas no Brasil, entre as quais 48 Contos Paranaenses (viabilizada pela Biblioteca Pública do Paraná em 2014), e quatro em outros países.

25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (2004) e Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (2005) foram as duas primeiras antologias que Ruffato organizou. As obras surgiram a partir da percepção do escritor de que naquele contexto, início do século XXI, a visibilidade literária ainda era majoritariamente masculina, apesar da inquestionável e vasta ficção produzida por mulheres. Posteriormente, ele selecionou textos para as antologias Entre Nós — Contos Sobre Homossexualidade (2007) e Questão de Pele — Contos Sobre Preconceito Racial (2009), entre outros títulos. "As antologias que organizei, de modo geral, têm a finalidade de despertar debate político, de temas e autores", comenta.

 

Critérios e credenciais

Explicar a diferença entre antologia e coletânea, para Luís Augusto Fischer, não é tarefa fácil. "Mas creio que o termo coletânea tende a ser usado para a obra de um autor apenas, ao passo que antologia implica muitas obras. Mas nem isso é uma distinção estável", diz o professor da UFRGS.

Sabrina Sedlmayer acrescenta que, inclusive no mercado editorial, há certo embaraço entre os dois termos. "Ambos dizem respeito a um conjunto de textos recolhidos. No campo teórico e crítico, utiliza-se o termo coletânea para intitular livros que contêm ensaios e artigos de pesquisadores variados, textos diferentes. E, quase nunca, o termo antologia", comenta a estudiosa da UFMG, lembrando que há coletâneas de prosa e de poesia que poderiam ser chamadas de antologias, mas a editora ou o organizador preferiu usar coletânea — ou seleta.

Ítalo Moriconi acredita que toda antologia é coletânea, mas nem toda coletânea é antologia. Em literatura, o professor aposentado da UERJ argumenta, coletânea é qualquer reunião de textos ou trechos de textos, mesmo um livro de contos ou de poemas de um autor pode ser uma simples coletânea, sem maior organicidade interna.

"Já a antologia pressupõe um trabalho de seleção. Trata-se de uma coletânea do tipo seleta, ou seja, a antologia reúne textos escolhidos, selecionados, em função de um critério qualquer. Os critérios norteadores de uma seleção antológica são os da representatividade e da superioridade qualitativa", esclarece Moriconi.

Sabrina Sedlmayer, citando Kant, lembra que “escolher é julgar”. E para escolher, a professora da UFMG enfatiza, deve-se conhecer: "As boas antologias, a meu ver, são as capazes de trazer e recuperar uma memória coletiva, um bloco de enunciados não hegemônico. Com polifonia e dialogismo".

Ela ressalta que o nome do crítico / autor que empreende a seleção é um dado importante na elaboração e no resultado de uma antologia. "Porque, além de demonstrar, pela amostragem oferecida, um conhecimento sólido sobre o assunto, deve articular esse saber com o recorte escolhido, distanciamento e rigor", diz.

 

Reavaliar sempre

De Contos Brasileiros (1922), organizada por Alberto de Oliveira e Jorge Jobim, a primeira antologia brasileira de contos, até publicações recentes, há inúmeras opções disponíveis no país. Flávio Moreira da Costa (1942-2019), Eliane Robert Moraes, Ítalo Moriconi, Luiz Ruffato, Nelson de Oliveira e Alcir Pécora são alguns dos mais respeitados antologistas do Brasil — leia mais em Estante Antológica.

Ítalo Moriconi observa que as antologias envelhecem e precisam ser substituídas por novas, uma vez que a passagem do tempo provoca transformações nas preferências do público leitor e na crítica. "O século XIX era visto de um jeito em 1940, mas em 2021 ele é percebido de outra maneira. Houve revalorização de autores, como Luiz Gama (1830-1882) e Maria Firmina dos Reis (1822-1917)", comenta o antologista, que recomenda — aos interessados no assunto — consultar antologias antigas para confrontar o gosto de uma determinada época com o da nossa.

Sabrina Sedlmayer lembra que toda antologia traz uma inevitável tensão: a impossibilidade de uma escolha totalizadora e objetiva, junto à necessidade, mesmo que precária e contingente, de se efetuar uma amostra representativa exemplar, capaz de vencer distâncias culturais, espaciais e territoriais. Mas, diante do irremediável, a professora da UFMG cita uma frase de Cecília Meireles a favor do gênero: "Melhor uma notícia breve ao silêncio completo".

 

Marcio Renato dos Santos é jornalista, mestre em Estudos Literários pela UFPR e autor, entre outros, dos livros de contos A Certeza das Coisas Impossíveis (2018) e A Cor do Presente (2019). Nasceu e vive em Curitiba.