ESPECIAL | A virada no jogo ou (De onda em onda) 29/02/2024 - 14:00

Na esteira do k-pop e dos doramas, o número de livros coreanos no Brasil tem aumentado a cada ano, com ampliação de leitores e novos gêneros

 

Luiz Felipe Cunha

 

“Deem-nos mais literatura coreana em português!”, apelou o tradutor e crítico Boris Schnaiderman (1917-2016) no prefácio do livro Contos Contemporâneos Coreanos, publicado pela editora Landy em 2009, quando a quantidade de livros coreanos lançados no Brasil dava para contar nos dedos de uma mão. De lá para cá, o país asiático ganhou terreno e se consolidou como um dos players mais influentes do mundo. Vieram os aparelhos eletrônicos, depois o cinema, e mais recente, as músicas e as séries de TV. E segundo o que os números apontam, chegou a vez da literatura.

Só nos dois últimos anos foram publicados 58 livros de autores coreanos no Brasil, entre romances, contos, ensaios, HQs e graphic novels. Sem dizer que na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro, obras coreanas foram destaques nas vendas, ficando no Top 10 dos mais vendidos nos estandes das editoras Rocco e Intrínseca.

Para a tradutora e coordenadora do Curso de Letras-Coreano na Universidade de São Paulo (USP), Yun Jung Im, essa abertura do mercado editorial brasileiro às obras coreanas está ligada ao hallyu, a onda coreana que se espalhou pelo mundo nos últimos anos.

Dando um breve contexto para esse movimento: no final dos anos 1980, a Coreia do Sul passou por uma crise cambial ferrenha, que fez pessoas dormirem na rua e causou demissões em massa. “O jogo virou na década seguinte quando empresas de capital de risco atiraram para todos os lados na tentativa de sair da crise. Uma das indústrias que esses empresários se voltaram foi a indústria do entretenimento”, explica Jung.

Não coincidentemente, foi nesse período que começaram a surgir as primeiras bandas de k-pop, e os filmes e as novelas começaram a ser exportadas para outros países em “ondas”: primeiro na Ásia, depois na Rússia, Oriente Médio, Estados Unidos, Europa e, mais recentemente, na América Latina. Observando o sucesso desses movimentos, o governo viu uma bela oportunidade de investimento.

“A maioria das pessoas chegam à literatura coreana por meio desses outros produtos. Elas ouvem as músicas e querem saber da vida dos idols, assistem às séries e querem se parecer com os personagens, querem comer as comidas que aparecem em determinadas cenas, isso cria um interesse. E a literatura acaba sendo um desses interesses de consumo”, explica Ji Yun Kim, pesquisadora e especialista em Língua e Literatura Coreana pela USP.

No entanto, tanto Jung quanto Ji são reticentes ao afirmar que a maioria desses livros trazidos atualmente para o Brasil é que se convencionou a chamar de healing literature, ou literatura de cura, uma espécie de autoajuda camuflada de ficção. “Esse tipo de literatura é mais fácil e é voltada para um público juvenil. O sucesso dessas obras se dá porque, talvez, a gente esteja vivendo em tempos em que o mundo tá precisando de consolo, mais do que reflexão de altos temas”, afirma Yun Jung. Dentro dessa tendência destacam-se obras como o recém-lançado Amêndoas, da autora Won-pyung Sohn (Rocco, 2023) e Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, de Hwang Bo-Reum (Intrínseca, 2023). “No fim, é o mercado que manda, é o que o público brasileiro quer ler, e as agências de cultura coreana entenderam isso”, conclui a tradutora.

A pesquisadora Ji Yun explica que mais de 80% dos livros coreanos publicados no Brasil partem da LTI Korea – Instituto Coreano de Tradução Literária –, vinculada ao Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da República da Coreia, que subsidia traduções literárias. “As editoras ganham o apoio financeiro deste instituto governamental que está fazendo todo o trabalho financeiro ao redor do mundo. No Brasil, o mercado de tradução é ruim para os tradutores, então os coreanos estão fazendo esse trabalho com apoio do governo coreano”, diz.

 

Han Kang, autora de Atos Humanos (2021) e A Vegetariana (2016), livro vencedor The International Booker Prize
Han Kang, autora de Atos Humanos (2021) e A Vegetariana (2016), livro vencedor The International Booker Prize. Foto: divulgação

 

 

Esses institutos surgiram em resposta ao sucesso da hallyu pelo mundo, com o objetivo de dar um suporte às altas demandas. No início, agências com a LTI promoviam uma lista com nomes de autores e autoras considerados importantes e que representam a autêntica literatura do país. Os tradutores só podiam traduzir os autores presentes nesta lista, que contava com nomes como o escritor clássico Kim Si-seup (1435–1493) e a contemporânea Han Kang, que hoje talvez seja a autora coreana mais conhecida no Brasil e no mundo. Com o passar do tempo, a LTI foi cedendo ao mercado e essa lista perdeu o propósito. O que temos atualmente, como já dito, são os livros com uma pegada mais juvenil, com toques de autoajuda.

 

O boom das autoras coreanas
 

Há um consenso entre as fontes entrevistadas que a literatura coreana contemporânea é dominada pelas mulheres. E um dos nomes mais importantes é o de Han Kang, que obteve sucesso internacional com o livro A Vegetariana. Embora publicado originalmente em 2007, chegou no Brasil em 2013, pela editora Devir, com tradução da professora Yun Jung Im, mas não gerou muita comoção na época. Foi só em 2016, quando a autora foi traduzida nos Estados Unidos e ganhou o prestigiado Man Booker Prize é que a coisa mudou de cenário. Aqui no Brasil (com nova tradução e edição da editora Todavia) foi o primeiro contato de muitos leitores com uma obra coreana. O livro abriu portas para novas autoras entrarem no Brasil, como Min Jin Lee, com o livro Pachinko (Intrínseca, 2020) e Cho Nam-Jo, com o seu Kim Jiyoung, Nascida em 1982 (Intrínseca, 2022), entre muitas outras.

 

Cho Nam-Joo é autora do livro Kim Jiyoung, Nascida em1982, que teve grande impacto nos debates sobre desigualdade e discriminação de gênero no seu país. Foto: divulgação
Cho Nam-Joo é autora do livro Kim Jiyoung, Nascida em1982, que teve grande impacto nos debates sobre desigualdade e discriminação de gênero no seu país. Foto: divulgação

 

Embora esses livros tenham chegado no Brasil nos últimos anos, a maioria dessas autoras vêm produzindo literatura desde a década de 1990, que representa um período de abertura de mercado da Coreia e de plena democracia no país, o que culminou, naturalmente, no surgimento desse movimento expressivo de autoras mulheres. “A literatura feminina na Coreia realmente tá bem forte. Já faz, digamos, duas décadas. E está em consonância com a migração dos macrotemas para microtemas, as micronarrativas”, explica Yun Jung. Ela cita, por exemplo, o livro Kim Jiyoung, Nascida em 1982, que acompanha a personagem que dá nome ao livro em vários períodos da sua vida e ressalta como o machismo presente na sociedade perpassa a história do país. O livro narra pequenos acontecimentos cotidianos da personagem, que somados dão uma dimensão maior sobre a mensagem que a autora quer passar.

Outro fator essencial é que a Coreia se atentou para alguns movimentos feministas que acontecem pelo mundo, como a quarta onda feminista e o #MeToo. A pesquisadora Ji Yun também cita um acontecimento impactante para a sociedade coreana, quando em 2016, uma jovem mulher foi morta a facadas, sem motivo nenhum, por um homem em um banheiro próximo a uma estação de metrô. A tragédia gerou comoção nacional e protestos por vários dias seguidos. “A arte sempre é a área mais sensível a reagir a esses assuntos sobre as pessoas mais marginalizadas que não tinham voz. Então, a literatura começou a reagir e surgiram muitas outras escritoras”, complementa.

Ji Yun também destaca que esses fatores sociopolíticos, como a abertura do país para o mundo e a plena democracia que o país atingiu após um período de grande tensão devido à Ditadura Militar na Coreia, fizeram essas mulheres não se preocuparem tanto com o fator social da literatura ou com uma grande mensagem educacional, e passaram a se importar com a literatura em si, em questões estéticas. “Talvez antes de 1990, esse tipo de preocupação poderia ser considerado como algo muito luxuoso. Mas aí começaram a aparecer as escritoras que adotaram esse estilo mais sentimental, mais contemplativo e individual sobre a vida cotidiana. Mesmo que trate os assuntos sociais, elas adotam essa linguagem mais sensível, poética, mais contemplativa, mais feminina no sentido convencional”, diz a pesquisadora.

 

Na esteira do k-pop e doramas
 

“No início de 2010 tive o primeiro contato com a cultura coreana por meio do k-pop e do audiovisual (dramas e cinema), já os livros vieram quase uma década depois”, diz Denise Nobre, estudante de Letras, que junto com sua amiga Bruna Giglio, do mesmo curso, criaram o Sarangbang, em 2023, o primeiro podcast no Brasil focado na discussão e difusão da literatura coreana no país.

O nome do podcast é referência aos saranbangs, que eram espaços destinados a discussões de homens intelectuais. “Tradicionalmente, esse nome remete a um cômodo, nas casas tradicionais coreanas, ocupado apenas por homens da alta sociedade da Dinastia Joseon (século 14 a 19), que discutiam literatura, praticavam caligrafia e abordavam diversos assuntos do cotidiano. Então, pensamos: por que não trazer esse espaço para a contemporaneidade de forma virtual por meio de um podcast, convidando todos para participar das discussões conosco?”, explica Bruna.

 

Sarangbang é o primeiro podcast focado na discussão e difusão da literatura coreana no Brasil. Foto: acervo pessoal
Sarangbang é o primeiro podcast focado na discussão e difusão da literatura coreana no Brasil. Foto: acervo pessoal

 

Ao todo já foram mais de 12 episódios em que conversam com tradutores, ilustradores, professores e editores sobre o universo dos livros coreanos. E o que atrai as duas estudantes nesse tipo de literatura em específico é uma certa inovação e incômodo na leitura. “Apesar de muitas vezes abordarem temáticas ‘pesadas’ como traumas históricos, opressão ou tragédias familiares, as narrativas são de uma beleza indiscutível, pois, em geral, há uma escolha de palavras rebuscadas, num estilo que se assemelha a prosa poética”, diz Denise. “Existe uma crítica social que por vezes é entregue numa sutileza quase imperceptível”, complementa.

“Quando leio um livro coreano, é simplesmente impossível eu não sair impactada. Sempre saio diferente e, em certa medida, incomodada, no bom sentido. É uma literatura de paradoxos: é pungente ao mesmo tempo em que acolhe e aproxima; é inovadora e ao mesmo tempo dialoga com sentimentos e fantasmas que já nos habitam há tempos”, diz Bruna.