ESPECIAL | Território entre pai e filha 30/03/2023 - 13:39

Violante Saramago fala sobre sua militância, a relação com a família e a passagem recente pelo Brasil
 

Juliana Sehn

Violante dos Reis Saramago Matos se refere a si mesma como “uma esquina entre uma secretária e um operário”. A mãe, Ilda Reis, consagrou-se como uma grande gravadora e artista plástica de Portugal, enquanto o pai, José Saramago, ganhou o primeiro e único Nobel de Literatura de seu idioma. Violante também escreve e pinta, além de ser ativista política. Mas seguiu sua vocação para a Biologia, área que o pai a ajudou a escolher, por ser apaixonada pelo entendimento de fenômenos naturais da vida, a terra e o meio ambiente.

Em entrevista concedida ao Cândido, ela fala, entre outros temas, sobre sua relação com os pais, a prisão durante a ditadura em Portugal e os eventos que a trouxeram para o Brasil durante as comemorações do centenário de Saramago, em novembro de 2022. Também comenta sua passagem pela Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba, onde falou para uma plateia de cerca de 100 pessoas e participou do lançamento do livro Saramagos: 100 Anos de José (Solar do Rosário) — organizado pelos pesquisadores Liana Leão e Érico Vital Brasil. Os registros desse encontro ilustram o conteúdo a seguir.

 

Você não utilizou o sobrenome Saramago por muito tempo. Por que decidiu voltar a usá-lo?

É muito simples, ou pelo menos para mim foi muito simples. Precisava ter uma certa autonomia em relação ao meu pai e à minha mãe, porque o peso do nome deles, o peso da importância deles enquanto duas personalidades muito ligadas à cultura, deixava sempre alguma dúvida sobre aquilo que eu podia ou não podia ser. Em Portugal, nós normalmente usamos o nome e depois o sobrenome do pai. Portanto, fiquei Violante Saramago — sem o Reis, que era da minha mãe. Até que casei e também adotei o sobrenome do marido. Então fiquei Violante Saramago Matos. Mas, de fato, a marca “Saramago” não é um nome comum. Se fosse Reis, eu não teria feito isso, porque Reis há milhares. Mas Saramago não há. Portanto, a identificação era muito rápida, eu continuava a ser a filha de alguém.

Evidentemente, em casa este problema não se colocava. Mas a verdade é que, no geral, as pessoas identificavam muito rapidamente de quem era o Saramago. Então, quando viemos morar na Madeira [região autônoma de Portugal próxima à costa noroeste da África], senti a necessidade e pensei: “Agora vou abandonar o Saramago e ficar Violante Matos”. Durante tempo suficiente, pude construir a minha vida. Pude fazer e dizer aquilo que achava certo, às vezes errando, outras vezes não. Mas a verdade é que fui eu. E é claro que a partir de certa altura isso deixou de ser preciso. Porque a minha vida estava estruturada, digamos assim. Meu caminho estava mais ou menos delineado. E, portanto, voltou o Saramago de uma forma perfeitamente natural. Foi surpresa para muita gente, claro que sim. “Ah, mas Saramago? O que você tem a ver com o Saramago?.” “É meu pai.” [risos] Mas a questão foi só essa, é um problema que resolvi assim. Não quero dizer que seja a única maneira de resolver um problema deste tipo. Provavelmente há pessoas que lidam bastante bem com isso, sem precisar desse artifício.

 

O que levou você a optar por cursar Biologia e o que seus pais pensaram sobre isso?

Não foi uma escolha muito fácil. É uma escolha que decorre do meu gosto pelo entendimento do fenômeno da vida. Meu pai me ajudou bastante a fazer essa escolha, porque eu queria Engenharia Química. Mas, efetivamente, não era carreira para mim, jamais seria engenheira química. E um dia meu pai me convidou para almoçar. Fiquei um bocadinho preocupada porque pensei que tivesse feito algo atrevido, para ele me convidar para comer fora de casa. Sei que combinamos de almoçar e foi nessa conversa toda que acabei por concluir que realmente não era o caminho da Engenharia Química aquilo que poderia escolher. Mas, sim, o caminho da Biologia. No final da conversa, perguntei a ele como tinha percebido isso. “É muito simples”, ele disse. Ele reparava como eu observava e lia os artigos, revistas e livros que tinham a ver com a vida. Portanto, era óbvio que o que eu gostava era a área da Biologia. De fato, a Biologia decorre do gosto pela vida, pela compreensão dos fenômenos naturais e também pela relação das inúmeras espécies entre elas, com o meio ambiente e com a terra.

 

 

Qual foi a sua motivação em participar do livro Saramagos, lançado no ano passado, no Brasil, e que traz  fotos, cartas e textos de amigos e admiradores do seu pai?

Nós estamos há 100 anos do nascimento do meu pai. Estamos praticamente há 25 anos do ano em que ele recebeu o Prêmio Nobel. Estamos a falar de um país que não é o dele, embora fale a língua dele. Nós estamos também a falar de um país com o qual tenho uma grande relação. E é evidente que, de repente, me aparece a hipótese de um projeto de 100 anos. E de um projeto de percurso, de um percurso muito imprevisível. Porque não é nada previsível que uma criança que nasceu nas condições e no meio econômico e social em que ele nasceu tivesse qualquer esperança de sonhar. Mas a verdade é que foi todo um percurso feito e traçado à custa dele. E esta hipótese de poder contribuir um pouco para esta marca é importante — mais do que homenagear, importa a marca que ele deixou. E isso, ainda por cima, também se somou a outros fatores que têm a ver com o fato de não ser uma iniciativa exclusivamente do meio acadêmico, o que para mim também tem muito significado. Porque estou absolutamente convencida de que a escrita do meu pai continuará a ser debatida em fóruns acadêmicos, em cátedras, em clubes de leitura, enfim, entidades profundamente ligadas à literatura. Estou mesmo convencida disso. Ainda há para mim uma coisa diferente, que é o fato de milhões de leitores, sem qualquer vínculo profissional com a literatura, gostarem de ler e lerem. Gostarem de celebrar. Gostarem de discutir sobre os problemas que ele coloca nos livros e discutirem. E isso é de uma importância enorme que ultrapassa o campo meramente literário. Qual é a porcentagem de leitores que não estão ligados à literatura? Que nunca frequentaram uma faculdade de Letras, de Filosofia ou de Direito? Qual é a porcentagem? É grande. Então surgiu a possibilidade de ajudar a contar essa história.

Violante Saramago

 

Qual foi a principal marca que ele deixou na sua vida?

É muito difícil escolher uma única. É difícil por uma razão muito simples: a minha vivência com os meus pais foi muito partilhada. Portanto, se o pai dizia não, a mãe até podia achar que sim, mas dizia não também — o contrário também era verdade. Ou seja, não há, assim, uma coisa que eu tenha buscado no meu pai ou na minha mãe. Não. Tudo se confunde. Mas se tivesse mesmo que eleger uma coisa, diria que é o fato de ele ter me ensinado a pensar. Mais que isso: ensinou que é preciso pensar. Principalmente no sentido de não aceitar tudo conforme se é apresentado.

 

No ano passado, em comemoração ao centenário de Saramago, foram plantadas algumas oliveiras aqui no Brasil, como forma de lembrar o seu pai. O que significam essas oliveiras? Por que elas foram plantadas aqui no Brasil?

Essas oliveiras são, no fundo, a continuação de um projeto que foi concretizado em Azinhaga [local em Portugal onde Saramago nasceu e cresceu]. No dia 16 de novembro, plantou-se a centésima oliveira — foram plantadas 100 oliveiras na rua que leva à Fundação Saramago, rua que também levava à casa de minha bisavó. E em conversa com o Érico e com a Liana surgiu a hipótese de levar, simbolicamente, esse projeto, de modo que coincidisse com a minha ida ao Brasil. Plantamos no Instituto Butantan, em São Paulo, por conta da minha ligação com a Biologia. Depois no Graciosa Country Club, em Curitiba. Portanto, no fundo, estamos a falar de uma continuação de uma iniciativa. Recordo perfeitamente da Azinhaga cheia de oliveiras: um verde acinzentado muito particular, com uma sombra e cheiro característicos. Cresci em uma terra onde haviam milhares dessas. E de repente tudo foi desmatado por razões puramente econômicas. Quando se nasce em meio às oliveiras, se estabelece com elas uma relação de grande afeto. Porque os troncos das oliveiras centenárias são extraordinários, são como uma escultura que expressa esforço e resistência. Quando olho para o tronco parece que estou a ver tudo o que se passa lá dentro em termos de transporte de água. Meu pai tinha ainda mais ligação com as oliveiras, foi um desgosto enorme quando esse abate foi feito. Então, exatamente por isso celebrou-se, em boa hora, essa simbólica homenagem que no fundo tem a ver com a terra e, por fim, acaba por ficar em continuado além-mar em São Paulo e Curitiba.

 

Falando em Curitiba, o que marcou você durante a passagem pela cidade, no final do ano passado?

Foram cinco dias de uma vivência única, tanto em São Paulo quanto em Curitiba. Foi uma coisa muito… Não vou dizer que foi muito bonito porque esteve além, teve a ver com sentimento. Foi muito afetivo, envolvente e, naturalmente, muito marcante. Não tenho dúvida de que aquilo que esteve em jogo, aquilo que esteve em cima da mesa, não era eu, era o meu pai. Isso para mim é claro. Quem foi muito bem recebido em Curitiba, através de minha figura, foi o meu pai. Isso é muito importante, pois reflete o sentimento que as pessoas têm com ele mesmo depois de sua morte.

 

No livro Saramagos há a reprodução de uma carta de seu pai escrita durante o tempo em que você esteve na prisão. No entanto, você não recebeu essa carta na época e apenas soube de sua existência recentemente. Como descobriu e teve acesso ao material?

Não me estranha que não tenha recebido essa carta naquela época, pois normalmente as correspondências para dentro da cadeia eram bastante restritas. Desse modo, não recebi. Curiosamente, nunca falamos sobre isso. Meu pai nunca me perguntou nada. Ele deve ter pensado que, como não toquei no assunto, obviamente não tinha recebido a carta. E, provavelmente, ele preferiu não falar sobre. Isso, claro, são especulações, pois não falei com ele. No ano passado, a Torre do Tombo [um dos grandes serviços de arquivamento de documentos de Lisboa, onde se salvaguarda, entre outras informações, a documentação das prisões políticas] estava à procura de materiais para fazer a exposição para o meu pai e encontram uma referência no meu processo a uma carta que ele teria escrito à filha. E é assim que sei desta carta. Tomei conhecimento dela no meio do ano passado. É uma coisa que a gente tem que engolir em seco porque… [silêncio] Porque tomar conhecimento de um documento daqueles 50 anos depois… [suspiro] Custa. [Quando li a carta] eu fiquei a chorar. É claro que sim. Essas coisas acabam por se cruzar e a gente lembra e se recorda. É natural.

 

Durante o tempo em que você passou na prisão, seu pai se ofereceu para pagar a fiança, mas você recusou. Por quê?

Quando fui presa, meus pais foram me ver — há três anos eles estavam separados. Me perguntaram se eu queria que eles pagassem a minha liberação e eu disse que não. Tomei essa decisão pois não tinha agredido ninguém, não tinha roubado nada, não me envolvi em um acidente de carro e depois fugido. Aquilo era uma prisão política. E, na luta política, o tratamento com os parentes tem que ser um pouco diferente. Um preso político não é exatamente um preso comum — os valores de um giram em torno de um ideal coletivo, enquanto o outro é individual. Isso significa que, se fui presa no dia 1º de maio, lutando contra a ditadura, não fazia sentido que pagassem minha fiança e eu seguisse normalmente com a minha vida. Não iria deixar isso acontecer. Havia colegas presos que, por não terem pai ou mãe como eu, continuariam presos. Para mim, isso não fazia sentido. E não estou falando aqui de heroísmo ou algo do tipo. Tem a ver com a consciência, com aquilo que a gente idealiza e sente, tem a ver com sonhos. Certamente que compreendo que para eles era difícil me ver ali, mas eu não podia fazer outra coisa. E acho eles compreenderam bem, pois nunca mais tocaram no assunto.

 

Você disse em uma entrevista que busca ensinamentos nas obras do seu pai. Nesse sentido, qual é o seu livro preferido do Saramago e quais ensinamentos ele transmite?

Gosto muito de Levantado do Chão, A Caverna e Ensaio Sobre a Cegueira. O primeiro me diz muito, pois é contemporâneo meu. Eu já vivia e já pensava enquanto acontecia aquela vida no Alentejo, costumo dizer que é verdadeiramente o único livro que tem gente real dentro, gente com quem ele conversou de verdade (enquanto que nas outras obras isso não acontece). Além disso é um livro que fala sobre a relação social do homem com a terra. Já o Ensaio Sobre a Cegueira gosto pelas razões óbvias, diz sobre esse problema do olhar e não querer ver, e isso tem acontecido cada vez mais. E cada vez mais rapidamente queremos passar pelas coisas sem que elas nos afetem, queremos passar por cima da brasa sem que nos queime, e quando isso acontece o resultado não é bom. Talvez por isso tenha sido um dos livros mais vendidos durante a pandemia.

 

Você já disse que se reconhece na personagem Marta, do livro A Caverna, porque a relação dela com o pai era parecida com a sua com Saramago. Que semelhanças são essas?

São semelhanças que não sei muito bem descrever. Nem sempre as palavras chegam para descrever perfeitamente uma relação. Por alguma razão, o marido de Marta percebe que naquele território entre pai e filha não entrava ninguém. Era um pouco isso. No território com meu pai não entrava ninguém, exceto a minha mãe. Era uma relação que seria bom que todos os pais tivessem com seus filhos. Isso para além do resto. Gosto de A Caverna não só por conta disso, gosto porque ali tem alguns problemas das relações sociais derivadas das relações de produção, além de uma grande chamada de atenção sobre a hipocrisia do ser humano.