ESPECIAL | Rumo a Virginia 30/06/2023 - 11:22

Tradutores e pesquisadores destacam a complexidade de verter a obra de Virginia Woolf, uma das mais importantes figuras literárias do século XX
 

Luiz Felipe Cunha
 

“Ela é muito sofisticada justamente pelas escolhas dos vocábulos que emprega em seus livros; se o tradutor(a) facilitar para o leitor de outra língua, vai deformar a obra e não vai dar uma ideia do que foi concebido originalmente”, diz Leonardo Fróes, poeta e um dos principais tradutores de Virginia Woolf no Brasil.

Recentemente, aos 82 anos, ele foi convidado a revisar e oferecer um novo prefácio para a sua clássica tradução do Contos Completos, em nova edição pela Editora 34. Dispostos em ordem cronológica, os contos abrangem toda uma vida literária da autora, desde os que ela escreveu aos 18 anos até o seu último trabalho de ficção, semanas antes do seu suicídio, aos 59. Nesses textos, é possível observar a evolução da jovem promissora que se tornaria uma das mais importantes figuras literárias do século XX e fonte de inspiração para mulheres do mundo todo.

Nos contos iniciais há várias críticas ao casamento e à sociedade machista. Mas, como observa Fróes, eles ainda seguem uma estrutura tradicional da prosa vitoriana, claramente influenciada pelos livros que Virginia costumava pegar na estante de seu pai, Sir Leslie Stephen, um historiador e biógrafo renomado. Já o último conto, "O lugar da aguada", é uma crítica angustiante feita com tanta inventividade que justifica uma escritora tão potente: “Em apenas duas páginas, ela dá o recado e acabou-se”, completa o tradutor.

 

fróes
Leonardo Fróes. Foto: Cassiano Lustosa Fróes

 

Na tradução dos contos, uma das preocupações de Fróes foi se manter o mais fiel possível ao estilo original de escrita de Virginia. Para evitar possíveis anacronismos linguísticos, ele revisitou leituras de traduções de décadas passadas.

“Não posso usar a linguagem de hoje, tenho que fazer um retrocesso para encontrar uma linguagem em português mais adequada àquela época da qual estou traduzindo. Do contrário, estarei sendo infiel à autenticidade da obra e o leitor terá a sensação de que o livro foi escrito ontem”, explica.

Uma das traduções revisitadas por Fróes foi Orlando: Uma Biografia, vertido para o português por Cecília Meirelles em 1947, uma das primeiras traduções dos romances de Virginia Woolf em solo brasileiro. Essa tradução foi antecedida apenas pela versão de Mrs. Dalloway, traduzida pelo poeta Mário Quintana um ano antes, que permaneceu como a única opção até 2012, quando a obra de Virginia Woolf entrou em domínio público.

Curioso notar que, ainda na década de 1940, havia uma tradução (pelo poeta e professor da Universidade Federal do Paraná Brasil Pinheiro Machado) de um conto chamado "A sobrinha do conde", publicado na edição nº 13 da revista curitibana Joaquim, editada por Dalton Trevisan. Atualmente, essa tradução pode ser consultada por leitores e pesquisadores na seção de documentação da Biblioteca Pública do Paraná.

 

joaquim
Fac-símile do conto na edição da revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan, entre 1946 e 1948. Foto: Reprodução

 

 

Quem observou esse detalhe foi a tradutora Denise Bottmann, no blogue Não Gosto de Plágio, onde mantém atualizado os percursos tradutórios de Virginia Woolf no Brasil. A descoberta mais recente foi uma tradução do livro As Ondas — considerado um dos mais experimentais da autora — feita pela “desconhecida” Silvia Valadão Azevedo, em 1946, contrariando a ideia de que o livro só tinha sido vertido para o português brasileiro três décadas depois, em uma tradução da escritora Lya Luft, para a editora Nova Fronteira.

A tradução de Silvia foi feita para uma edição não comercial de apenas 150 exemplares, lançada com autorização da Editora Globo, de Porto Alegre, que era a detentora dos direitos de publicação da obra no Brasil. A suspeita de Bottmann é de que a editora teria contratado os direitos de tradução e publicação dessas três obras — Mrs. Dalloway, Orlando e As Ondas — como um pacote, mas dada a baixa repercussão dos dois primeiros na imprensa da época, a Globo tenha concluído que não valeria a pena arriscar um terceiro livro, por isso cedeu os direitos para outra editora.

Esse é outro fato interessante sobre os livros de Virginia Woolf no Brasil: inicialmente, os leitores brasileiros não receberam bem a obra da escritora. Foram necessários mais de 30 anos para que novas traduções voltassem a circular. “Antes havia um certo medo de publicar a Virginia por se tratar de uma escritora modernista, tinha-se a impressão de ser muito difícil, como foi, por exemplo, com James Joyce — até hoje existem três traduções de Ulysses ao longo do tempo que são trabalhos hercúleos”, explica a tradutora e pesquisadora Emanuela Siqueira.

“As traduções vão começar a aparecer nos anos 1980, com edições esparsas, mas sem muita aderência. A Virginia vai circular muito mesmo no meio acadêmico com o avanço do feminismo”, completa.

Emanuela explica que a relação de Virginia com o feminismo acontece por conta de uma percepção afiada da autora com relação ao seu entorno. Embora ela viesse de uma família abastada, não chegou a frequentar a escola ou a universidade, como os seus irmãos. Ela também percebeu logo cedo o disparate entre autores homens e mulheres naquilo que era considerado cânone literário e em outras áreas do conhecimento humano — e fazia questão de abordar isso não apenas em seus escritos, mas também na vida cotidiana.

“Ela vai escrever uma série de artigos críticos sobre obras de mulheres, condenar a guerra que era feita por homens, fundar junto ao marido uma editora só para poder publicar os seus livros do jeito que queria — pois sabia que não tinha chance de ser publicada formalmente —, vai trocar cartas com mulheres editoras e dar aulas para funcionárias que trabalhavam pesado em fábricas”, diz a tradutora.

 

Manu
Emanuela Siqueira. Foto: Divulgação

 

Toda essa vivência, preocupação, a convivência com as trabalhadoras e as suas falas em universidades para mulheres, impulsionaram-na a escrever o ensaio Um Teto Todo Seu — ou Um Quarto Só Para Si, como preferem alguns tradutores —, tido como um clássico entre a crítica feminista.

A ideia do texto é de que se uma mulher for escritora, casada, com filhos, ela tem que ter um espaço só para si (ou um quarto só para ela), onde a vida de artista é resguardada das implicações da vida familiar. Um espaço de criação para um trabalho remunerado. Essas ideias iriam reverberar em muitas escritoras nos anos seguintes, incentivando cada vez mais mulheres a escrever apesar das situações adversas.

Com relação aos ensaios de Virginia, Emanuela — que traduziu o livro A Leitora Incomum, em 2017 — observa que não vê muitas diferenças desses textos ensaísticos para os textos de ficção, já que a ficcionalização ocorre também nos próprios ensaios. O que os difere é que enquanto um tenta dar conta de questões feministas e literárias (principalmente a crítica literária), o outro preza pelo desenvolvimento de personagens, embora ambos estejam sempre bebendo da mesma fonte.

Em Um Teto Todo Seu, por exemplo, a escritora inventa a personagem Judith, que seria a irmã menos conhecida de Shakespeare, para dar conta de suas críticas ao meio literário machista da época. Além disso, há no texto muitas digressões e metáforas, assim como nas obras ficcionais. “As frases são quase que como vórtices: é uma frase, seguida de uma vírgula, então outra frase, e mais uma, e vírgula de novo, até culminar em algum ponto onde ela fecha com um ponto ou ponto e vírgula”, explica, ressaltando a dificuldade de se manter o ritmo correto no momento da tradução. “É o estilo literário dela.”

Devido a esses aspectos, a crítica da época caracterizou Virginia como uma escritora impressionista, já que seus textos evocam sensações corporais e exploram a conexão entre corpo e mente no agora, no momento em que ocorrem as ações de seus personagens, abordando-os de forma inseparável, assim como ocorre na vida real.

Em um ensaio chamado “Ficção moderna”, Virginia expressa um pouco dessa ideia: “Examine a mente comum num dia comum por um momento. Miríades de impressões recebe a mente — triviais, fantásticas, evanescentes, ou gravadas com a agudeza do aço. E é de todos os lados que elas chegam, num jorro incessante de átomos inumeráveis.” (trad. Leonardo Fróes).

Tradutora dos diários de Virginia Woolf no Brasil, Ana Carolina Mesquita diz que a intenção da escritora era apreender o real por meio da percepção instantânea do tempo presente, uma apreensão sem mediação. Virginia estava interessada em processos da mente não apenas como pretexto para narrar aquilo que ocorre internamente em detrimento de um acontecimento.

As duas coisas eram reais pra ela — não podia existir só o que acontece, como que gravado por uma câmera; e também não podia existir só o que está dentro, sem nenhuma relação com o mundo real. Isso aparece fortemente em seus romances, como Mrs. Dalloway, por exemplo, em que a narrativa se constrói em grande parte dentro da cabeça dos personagens em um único dia.

 

Ana Carolina
Ana Carolina Mesquita. Foto: Divulgação

 

Em Entre Atos, seu último romance, isso será levado ao ápice, com uma história escrita quase que toda de forma fragmentada, como um prenúncio de uma obra pós-modernista. E para obter sucesso na empreitada desse projeto literário, a escrita constante de diários foi imprescindível.

“Com seus próprios processos mentais e de escrita, ela usa a si mesma como cobaia em seus diários para fazer experimentações literárias que mais tarde vão aparecer em seus livros, em um movimento de trânsito entre os romances e os diários”, explica Ana.

Em 1915, Virginia descreve em seu diário uma situação em que ela ouviu um estampido na rua e todos, com medo da guerra, saem para ver se havia perigo de ser uma bomba. É um trecho curto que anos depois reaparece em Mrs. Dalloway. Situação semelhante acontece quando ela escreve em seu diário a respeito de uma viagem de trem que fez para ver um eclipse, e reflete sobre como se sentiu naquele dia. Como o local era perto de Stonehenge, ela sentiu que tinha voltado para os primórdios da terra, e faz isso ao mesmo tempo em que descreve os passageiros, a comida, e a paisagem. Essa cena daria origem ao ensaio “O sol e o peixe”.

Todas essas questões fizeram Ana Carolina perceber que os diários de Virginia não podem ser lidos apenas como um suporte para pesquisadores e tradutores se aprofundarem na vida e obra da autora — eles devem ser lidos como literatura e entendidos como parte da criação literária de Virginia e do seu projeto modernista.

Do mesmo modo que James Joyce quis representar um dia inteiro na vida de um homem, os diários da Virginia dão conta de uma vida inteira. É um projeto muito mais ousado, observa Ana. “Na escrita de si há uma duplicidade: o sujeito que escreve é também objeto de si. Mas, mesmo quando falamos de nós mesmos, existem coisas que são inconfessáveis, até no nosso íntimo. Virginia tinha consciência de que embora o diário fosse um espaço livre, por outro lado não era, assim como não somos livres dentro de nós”, finaliza.