ESPECIAL | Nara não é um cachimbo 30/03/2022 - 16:11

Edição póstuma de Assionara Souza apresenta poética amadurecida da escritora mais conhecida pelos contos — potiguar radicada em Curitiba morreu em 2018

Hiago Rizzi

 

Em uma tarde de 1996, uma jovem entrou na livraria de Luci Collin e se apresentou, enfrentando a timidez. Horas antes, a livreira havia lido o mesmo nome no jornal: Assionara Medeiros de Souza ganhou um concurso nacional de contos e estampava uma manchete. Anos depois, Assionara foi aluna da primeira turma de graduação em Letras para a qual Luci deu aulas na Universidade Federal do Paraná. No fim do semestre, faltou às provas e reprovou na matéria. Virou história — o encontro entre mestre e discípulo foi sabotado, dando lugar a uma amizade sólida.

Quando lançou Cecília Não é um Cachimbo (7letras, 2005), Assionara já assinava sem o Medeiros e estava no mestrado, pesquisando a obra de Osman Lins. A potiguar via grandiosidade na escrita do pernambucano e queria dividir a impressão com o mundo. Pouco a ver com o fato de também ser nordestina, acredita Luci, que acompanhou de perto a produção. Se mantinha muito reservada e com um olhar investigativo para as pessoas e objetos do cotidiano, com que preencheu sua literatura.

Na mesma época, foi convidada pela escritora mineira Silvana Guimarães a publicar com o coletivo Escritoras Suicidas, ao lado de autoras como Carola Saavedra, Andréa del Fuego e homens que assinavam sob pseudônimos femininos — ironizando uma “escrita feminina”. Também colaborou regularmente com a Germina, revista eletrônica editada por Silvana, num momento em que as participações eram engendradas por intermédio de editoras e trocas de e-mails, capazes de lançar novos nomes ao mercado.

Assionara atualizou até 2016 o seu próprio blog, também nomeado Cecília Não é um Cachimbo. Construiu uma rede ancorada em Curitiba, onde vivia definitivamente desde 1989. Silvana foi a amizade virtual mais próxima. De 2015 a 2018, quando morreu em decorrência de um câncer no intestino, trocavam mensagens ou ligavam quase todos os dias, mas não chegaram a ter um encontro presencial. A morte de Assionara, aos 48 anos, motivou uma pausa para o Escritoras Suicidas.

Depois dos contos de Cecília, vieram Amanhã. Com Sorvete! (7letras, 2010, publicado no México pela Calygramma), Os Hábitos e os Monges (Kafka, 2011) e Na Rua: a Caminho do Circo (Arte e Letra, 2014). Os textos curtos não costumam ultrapassar duas páginas. Em Na Rua, congrega personagens de um circo com os moradores de uma cidade. São malabaristas, manicures, mulheres barbadas, crianças, prostitutas, domadores de leões e atendentes de farmácia colocados lado a lado, marcados pela humanidade comum. Para Luci Collin, esta foi uma das habilidades de Nara (como era tratada pelos amigos): sintetizar grandes temas com leveza e ironia, sem agressividade.

A assertividade da autora atingiu um novo patamar com sua primeira publicação de poesia, em 2017, que logo esgotou a primeira tiragem. “Se pegarmos um livro de contos e o Alquimista na Chuva (Kotter), a gente percebe que Assionara eclode, desabrocha. Ela depura emoções naquele contingente da palavra poética: aplicava uma intenção de verdade em toda a pesquisa, palavra e estrutura, mas sobretudo nos sentimentos”, afirma Luci.

Neste mês de abril sai o primeiro livro póstumo da autora. Instruções para Morder a Palavra Pássaro (Telaranha, 2022) foi organizado por Assionara em 2018 e reúne mais de 90 poemas, a maior parte deles inéditos. “O tema recorrente da minha escrita é a palavra”, disse em uma entrevista. Instruções segue a mesma tônica.

 

Alquimista na Chuva

Assionara nasceu em Caicó (RN), em 1969. Revistas e livros faziam parte da rotina da família, muitos emprestados pela Biblioteca Municipal Olegário Vale. As enciclopédias compradas com ambulantes eram parceladas pela mãe, conta Ana Santana Clemente, irmã de Nara. As duas cresceram rodeadas por contadores de histórias: os avós e ciganos que frequentavam a casa. “A ligação com o lugar nunca foi rompida, sempre encontramos Caicó nos escritos dela”, destaca.

A escritora tinha avós em Curitiba e viveu aqui por curtos períodos. Aos 11 anos, voltou a contragosto para o Rio Grande do Norte e, por rebeldia, reprovou na escola. Percebendo a ineficiência da tática, retomou os estudos e foi para Natal, onde chegou a iniciar a graduação em Arquitetura e Urbanismo. Não acreditava ter vocação para o magistério, como outras mulheres da família.

No Sul, depois de ingressar no curso de Letras, deu aulas em escolas e cursinhos pré-vestibulares. Seu perfil descontraído conquistou muitos alunos, sendo lembrada diversas vezes pelas indicações de leitura — Wislawa Szymborska, Ana Cristina Cesar, Julio Cortázar e Marguerite Duras foram alguns dos nomes absorvidos pelos jovens. Ela própria era uma leitora voraz, frequentando a literatura de vários países e períodos.

Letícia Clemente, sobrinha que hoje reside em Natal, lembra das chegadas de Assionara em Caicó, a mala contendo mais livros do que roupas. Gostava muito de livros infantis, que lia antes de dar como presente. Com a família era brincalhona — “A escritora era mais séria”, conta Letícia, que passou um semestre em Curitiba com a tia em 2015, também ano da última ida da autora para o Nordeste. Com o agravamento do câncer, a estudante vinha a Curitiba regularmente. Estava aqui quando Assionara morreu, em 21 de maio de 2018. Os livros da escritora, porém, parecem não ter grande circulação na sua cidade natal.

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Foto: Divulgação

 

“Nara era, sim, curitibana. Mesmo se dizendo estrangeira”, aposta Luci. Curitiba é cenário constante de poemas e contos. A escritora podia ser vista nos cafés em torno da Reitoria da UFPR, muito próxima ao seu apartamento, na Rua Comendador Macedo. A amiga vê a época em que Assionara começou o doutorado — depois abandonado — também como uma nova fase de sua personalidade, mais receptiva e espontânea. Com os anos passou a compartilhar mais da vida pessoal e política nos círculos e redes sociais, além dos textos. Tinha muitos amigos e levantava suas bandeiras — não se vexava por ser uma mulher nordestina e lésbica vivendo na capital paranaense.

Alquimista na Chuva, dedicado à Luci, é um poema longo que registra dezenas de conversas literárias entre a autora e tantos interlocutores unidos em um único personagem, ficcionalizado em um único encontro. “Tudo o que a gente conversava virava poesia, foi uma época muito farta para nós”, revela Silvana. Segundo Letícia, Assionara seguiu até o fim tomando notas, com cadernos e canetas pela casa, mesmo quando não tinha mais forças.

 

Translações

No início de 2018, a escritora Julia Raiz estava viajando quando recebeu de Assionara um convite para pensarem, juntas, uma peça de teatro. Depois de escrever o roteiro Das Mulheres de Antes, em 2016, para a Inominável Companhia de Teatro, queria se envolver além da dramaturgia. Nara estava interessada na potência criativa do fracasso, no descompasso — ainda em histórias de personagens menores. Quando leu escritos da Assionara, em 2015, Julia se reconheceu na veterana — “É uma mulher da mesma espécie, eu pensei”.

Assionara tinha a escrita como exercício, no que Julia vê o papel de artesão se sobrepondo ao de artista. Entre os povoados de cidade menor (Primata, 2021), está "cidade assionara souza”, poema em homenagem à autora, depois musicado por Luciano Faccini para o álbum Furiosa Aberta, da banda Ímã. “A Nara não é, está doente”, diz o primeiro verso. Para Julia, “é uma maneira de pensar como escapar da doença e da morte, e que a vida e obra dela continuam além disso. Não cristalizar a Nara na doença, era uma das preocupações dela”, pontua.

 
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Foto: Divulgação

A partir de 2015, Assionara idealizou e coordenou o projeto Translações: Literatura em Trânsito. Envolvendo uma equipe com quase 20 pessoas, textos de paranaenses ganharam traduções e gravações considerando a dicção de cada autor — Luci Collin, Marcelo Sandmann, Cezar Tridapalli, Otto Leopoldo Winck, Maria Alzira Brum Lemos, Jussara Salazar e a própria Assionara foram filmados e constam nas coletâneas vertidas para o espanhol, inglês e francês. “A Nara estava preocupada com a literatura, e não só com a que ela estava fazendo: abriu essa possibilidade para outros escritores. A mesma generosidade que tinha como professora”, relembra Luci.

Assionara explorava a produção literária tanto na prática quanto na teoria e na técnica. “Nara respirava literatura”, afirma Luci, “não fazia com luvas: era a vida dela. Não há artificialismo”.

 

No estado onde a única mulher inscrita no cânone escrevia poesia — Helena Kolody —, Assionara teceu uma carreira na prosa. Julia Raiz destaca a capacidade de construção e descrição de cenas inusitadas, como a mulher que morde com força um copo de vidro enquanto vê, pela janela, o circo sendo montado, nas primeiras páginas de Na Rua: a Caminho do Circo.

 

Uma Arma Quente

A segunda incursão da autora na poesia, com Instruções para Morder a Palavra Pássaro, gera expectativa pela presença de uma voz poética amadurecida. Para Bárbara Tanaka, que editou o livro com Guilherme Conde Moura Pereira, a escritora tinha um lirismo único, com imagens muito fortes. “O diálogo que ela alcança com a própria prosa é marcante, bonito, presente”, chancela o escritor Benedito Costa Neto no posfácio escrito em 2018 e revisitado agora.

Instruções é a primeira publicação da Telaranha Edições, idealizada por Bárbara, atendendo ao pedido de Assionara para que a editora estivesse envolvida com a produção da obra. A decisão é simbólica porque Bárbara foi aluna de Nara e assinou a edição de Alquimista na Chuva, sua última publicação em vida. A foto da capa, de Karime Xavier, era a preferida da escritora — outras dez imagens do mesmo ensaio estão em postais com poemas de Assionara a serem distribuídos com o Instruções. Pequenas alterações foram feitas, preservando a integridade do livro e a vontade da autora.

Nos próximos meses sai uma nova leva de Cecília Não é um Cachimbo, pela Arte e Letra. A viabilidade da reedição estava sendo conduzida por Assionara, em 2018. A revisão é de Silvana Guimarães, que também organiza um site dedicado à autora. Dezenas de cadernos com manuscritos estão com Silvana e Letícia, ainda não ordenados — a produção abarca prosa, poesia, dramaturgia e livros infantis, por vezes com desenhos. “Ela pediu que tivéssemos cuidado com os originais, muito critério”, reforça a amiga.

“Apesar de muito difundida na cidade, Assionara Souza precisa ser mais lida”, crava Bárbara. Uma Arma Quente, outro livro iniciado pela autora, deve ser o próximo lançamento — pretendia inscrevê-lo no Prêmio Paraná de Literatura, promovido pela Biblioteca Pública do Paraná. Em entrevista de 2007, Nara avisava: “A literatura é uma arma quente. [...] Nós aqui em Curitiba também temos munição”.