ESPECIAL NICOLAU | David Leavitt 31/10/2023 - 14:23

O Jornal Cândido de outubro resgata uma tradução do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996), publicada pela primeira vez em língua portuguesa no suplemento cultural Nicolau, em dezembro de 1993.

Nesta edição número 51, Caio traduziu o conto Gravidade, extraído da coletânea A Place I’ve Never Been (1991), do escritor americano David Leavitt (1961). O autor explora temas como a homossexualidade, as relações familiares, a doença e a solidariedade humana; sendo categorizado por alguns estudiosos dentro da corrente crítica “Minority Discourses”, dentre as quais se destaca a “Queer Theory”. Leavitt é ainda responsável pela edição do periódico Subtropics, dedicado à divulgação de novos/as escritore/as.

Caio Fernando Abreu foi escritor e jornalista, contemplado três vezes pelo “Prêmio Jabuti de Literatura”. Com apenas 18 anos escreveu seu primeiro romance: Limite Branco. Em 1982, publicou uma de suas obras mais emblemáticas Morangos Mofados. Faleceu aos 47 anos em Porto Alegre (RS), em 1996, vítima de complicações desenvolvidas pelo HIV.

 

Gravidade

tradução de Caio Fernando Abreu

 

Theo precisava escolher entre um remédio que poderia salvar sua visão e um outro, que poderia mantê-lo vivo. Então escolheu não ficar cego. Parou com as pílulas e começou as injeções, que exigiam a introdução de uma dolorosa sonda justamente sobre seu coração, e poucos dias depois aquelas nuvens nos olhos começaram a clarear. Podia ver outra vez.

Ele lembrou de certa vez que fora a Nova York ver um show com a mãe, quando tinha 12 anos e não queria admitir que precisava de óculos. “Você pode ler aquilo?”, ela berrou, apontando um anúncio da Broadway, e quando ele envesgou os olhos, reconhecendo apenas uma ou duas letras, ela tirou seus próprios óculos — uns óculos-gatinho, com pedras brilhantes nos cantos — e empurrou-os sobre o rosto dele. O mundo entrou em foco, e ele arfou levemente, atônito com a precisão nos contornos das coisas, a legibilidade de tudo, a dura, nítida e colorida paisagem. Naquele dia, Sylvia tinha assistido a Um Violinista no Telhado, mas para Theo, o rosto mascarado pelos enormes óculos da mãe, tudo era cintilante e vívido como numa história em quadrinhos. E mesmo que as pessoas olhassem para ele murmurando coisas, Sylvia não se importava — ele podia ver.

Porque estava morrendo novamente, Theo voltou para a casa da mãe, em Nova Jersey. Ela aceitou logo aplicar-lhe as injeções de DHPG — afinal, acompanhara a morte da própria mãe. Quatro vezes por dia, com a precisão de uma enfermeira, limpava o tubo de plástico implantado no peito dele, inserindo uma seringa hipodérmica esterilizada para pingar lentamente nas veias do filho o líquido salvador da visão. Os dois suportavam silenciosamente esse procedimento. Sylvia sentava ao lado da cama de hospital que alugara durante a permanência de Theo (“durante a minha vida”, ele às vezes pensava), esperando pelas reprises de “I Love Lucy” ou pelos noticiários de TV e, enquanto Theo tentava não pensar naquele cano duro enfiado em seu peito, pensava também em como se tornava cada vez mais largo e intransponível aquele golfo entre ele e as costas da praia conhecida. Mas Sylvia se mantinha meticulosamente cuidadosa. Todos os dias, ela o estimulava para irem a algum lugar — à biblioteca, ou àquele pequeno museu com réplicas de dinossauros que ele descobrira quando criança —, e quando a magreza e a bengala dele vacilavam, Sylvia o conduzia através dos olhares das pessoas, determinada a defendê-lo de qualquer coisa que pudessem dizer ou fazer. Tinha sido também assim naquela tarde, muitos anos atrás, quando ela o puxou através de um saguão cheio de faces curiosas e risonhas, decidida a não permitir que nada interferisse na visão do filho. Que dupla deviam ter sido: um menino com óculos feios e uma mãe desafiando o mundo a dizer uma palavra contra ele.

Nessa tarde ventosa e quente de maio, eles saíram às compras por vingança. — Seu primo Howard vai dar uma festa de noivado no próximo mês — explicou Sylvia no carro. — Uma garota de Livingston, muito legal. Encontrei com ela semanas atrás e, realmente, ela é mesmo uma pessoa superior.

— Fico contente — disse Theo. — Cumprimente Howie por mim.

— Você não acha que pode ir à festa?

— Não tenho certeza. Acho que para mim seria melhor só mandar um presente.

— Você já mandou. Uma bandeja de prata encantadora, se bem me lembro. O agradecimento está no caderno de notas da sala.

— Mãe — Theo disse —, por que você sempre tem que...

Syivia apertou a buzina em forma de chifre para um caminhão, e fez um contorno ilegal pela esquerda:

— Melhor seria não dar presente nenhum, é o que eu acho — ela disse. — Mas agora o problema é que eu mesma tenho que dar alguma coisa para Howie. Alguma coisa minha, e é melhor que seja boa. É melhor ser muito, muito boa.

— Mas por quê?

— Você não lembra daquela coisinha barata que Bibi deu a você na sua formatura? Era um verdadeiro desgosto.

— Não consigo lembrar do que ela me deu.

— Claro que você não consegue. Era um jogo nojento de caneta e lápis. E nem ao menos a caixa era de couro de verdade. Então, naturalmente que isso é uma boa razão para que eu dê alguma coisa realmente espetacular ao Howie. Alguma coisa capaz de fazer Bibi ficar lívida. Enfim, acho que encontrei a tal coisa, mas preciso da sua opinião.

— Opinião? Bom, quando Nick, meu antigo companheiro de apartamento, casou, eu dei a ele um triturador de alho. Custou cinco dólares, e refletia exatamente como eu me sentia naquele momento. Nossa amizade era importante.

Sylvia riu:

— Claro. Mas minha idéia é muito mais brilhante, entende? Eu posso me vingar de Bibi, e ao mesmo tempo dar a Howard o presente legal que ele e a garota merecem — ela sorria, visivelmente encantada consigo mesma. — Ah, eu vou vivendo e aprendendo...

Você vive — Theo disse.

Sylvia piscou:

— Bem, olhe, aqui estamos nós.

Ela enfiou o carro num estacionamento para paraplégicos da Morris Avenue, e saiu para ajudar Theo. Mas ele estava guinchando a si mesmo do assento, usando a maçaneta como se fosse uma alavanca.

— Posso me arranjar sozinho — ele disse com alguma irritação, balançando em sua bengala. — E é muito mais fácil sair daqui do que conseguir vaga num estacionamento.

— Oh, Theo, por favor — disse Sylvia. — Olhe, vamos até lá.

Ela o amparou até uma loja de presentes cheia de estatuetas de porcelana de Branca de Neve com todos os sete anões, caixas de música que tocavam coisas como The Shadow of your Smile, complicadas misturas perfumadas em caixas forradas de papel púrpura e cobras estofadas para vedar frestas de portas e janelas.

— Senhora Greenman — disse um extrovertido homem de cabelos grisalhos, usando um suéter de cardigan cor de creme. — Olhe só quem está aqui, Archie, é a senhora Greenman.

Outro homem mais magro e calvo, mas vestido com um cardigan idêntico, espiou dos fundos da loja.

— OIá, pessoal! — ele disse sorrindo. Depois olhou para Theo, e sua expressão mudou.

— Senhor Sherman, senhor Baker: este é meu filho Theo.

— Olá — disseram o senhor Sherman e o senhor Baker. Mas não estenderam as mãos para apertar.

— A senhora veio ver aquele negocinho que discutimos na semana passada? — perguntou o senhor Sherman.

— Sim — disse Sylvia. — Eu quero a opinião aqui do meu filho.

Ela caminhou em direção a uma enorme fruteira de cristal, um tipo de taça muito comum nos anos 50, pesada e de bordas serrilhadas.

— O que você acha? Bonita, não é?

— Para falar a verdade, mãe, eu acho medonha

— Quatrocentos e vinte e cinco dólares — Sylvia disse com admiração. — Você tem que sentir isso.

De repente, ela pegou a grande taça e jogou-a para Theo como se fosse uma bola de futebol.

O senhores de cardigan prenderam a respiração. Quando Theo segurou a taça, ela afundou em suas mãos. A bengala dele rangeu ao bater contra o piso.

— É pesada — disse Sylvia, observando com satisfação a maneira como a taça caíra nos braços de Theo. — E no que se refere a cristais, o que impressiona mesmo

é o peso.

Ela pegou a fruteira das mãos dele e levou-a de volta para o balcão. O senhor Sherman esfregava a testa. Theo olhava para o chão: continuava espantado por não ver cacos de vidro em volta de seus pés. Como ninguém parecia disposto a ajudá-lo, inclinou-se e apanhou a bengala do chão.

— Quatrocentos e vinte e cinco com impostos — disse o senhor Sherman. Sua voz estava um tanto trêmula, e um ar de alívio desceu sobre seu rosto quando Sylvia puxou o talão de cheques para pagar. Atrás do balcão, Theo podia ver o senhor Baker passar a mão na testa e lançar os olhos para o teto.

Parecia que Sylvia tinha esperado um longo tempo por alguma coisa assim: alguma coisa pesada o bastante para impressionar, embora tão frágil que também fosse capaz de fazer você sentir pena.

Eles caminharam de volta para o carro.

— Aonde podemos ir agora? — Sylvia perguntou, como se tivesse acabado de chegar. — Deve haver algum outro lugar para a gente ir.

— Para casa — disse Theo. — Está quase na hora do remédio.

— É mesmo? O.K., tudo bem — ela sentou, colocou o cinto de segurança e enfiou a chave no carro.

Apenas por um momento, então, mas perceptivelmente, seu rosto desabou. Ela apertou os olhos com tanta força que as sombras azuis nas pálpebras ficaram gretadas. Mas quase com a mesma rapidez, voltou ao normal, e os dois estavam na estrada.

— Está esquentando — disse Sylvia. — Posso ligar o ar-condicionado?

— Claro — disse Theo.

Ele estava pensando na fruteira. Ou, mais precisamente, na maneira como o peso dela fora surpreendente, forçando suas mãos para baixo. Por enquanto, até agora, ele tinha se preocupado com a mãe, com os danos que a sua doença estavam causando nela, embora Sylvia jamais admitisse isso. Na superfície, tudo parecia estar bem. Todas as noites, ela continuava a preparar para si mesma uma galinha grelhada no jantar, continuava nadando uma milha e meia por dia, continuava guardando saquinhos de chá usados no refrigerador. E continuava também, por volta das três da madrugada, a despertá-lo dizendo que ia àquele supermercado aberto 24 horas, e poderia trazer qualquer coisa que ele precisasse. Então acontecera a loja de presentes: Sylvia tinha literalmente jogado aquela enorme taça em direção a ele, jogado como se fosse uma bola — e como se todos aqueles brilhos e reflexos durante o vôo perigoso viessem navegando pelo ar em direção a ele , e Theo pensou então que Sylvia acreditava que as débeis mãos dele, não importava o que o mundo inteiro pensasse, fossem capazes de salvar a taça do despedaçamento. O que ela estava tentando testar? Seria a reconquista da visão dele? Ou apenas assegurar-se de que ele estava ali, vivo, e ainda não dispensara os cuidados dela — ele, um menino perdido nuns imensos óculos-gatinho cravejados de strass? Mas existem certas coisas que você já fez, antes mesmo de sequer ter imaginado como fazê-las — puxar uma criança da frente de um carro, por exemplo, ou aquela taça que Theo segurara antes de ter sequer calculado sua breve trajetória. Ele abaixara os braços , daquela postura de macaco, olhava para a mãe, que sorria largamente. Como se, naquela batalha entre a dureza e o despedaçamento, ele estivesse apenas ajudando-a a ganhar alguns pontos numa insignificante, mas substancial vitória.

 

David Leavitt, 33, é californiano de San Francisco/EUA. Com seu livro Family Dancing, editado em 1985, surgiu como a grande revelação da literatura contemporânea dos Estados Unidos. Da coletânea de contos A Place I’ve Never Been (1991) foi extraido Gravidade — que Nicolau publica pela primeira vez em língua portuguesa — , uma boa amostra dos temas mais constantes do autor: a homossexualidade, as relações familiares, a doença e a solidariedade humana. Atualmente, Leavitt vive em Barcelona/Espanha, como bolsista da Fundação Guggenheim, e trabalha num roteiro para um filme de John Schlesinger, sobre Aids. Dele, disse o “The New York Times”: “Terno, divertido, eloquente e sábio. Poucos escritores possuem um sentimento tão forte de maturidade e compaixão”.

Caio Fernando Abreu, 45, nasceu em Santiago, no interior do Rio Grande do Sul. Escritor. Autor de vários livros, entre os quais se destaca Morangos Mofados, coletânea de contos considerada pela revista. IstoÉ como o melhor lançamento de prosa brasileira de 1962. É autor ainda de Os Dragões não Conhecem o Paraíso e Onde Andará Dulce Veiga?