ESPECIAL | Maria Águeda: Livre e desavergonhada 27/03/2024 - 16:15

A Estante Afro leva o nome de Maria Águeda, símbolo na cultura afro-paranaense, com a intenção de homenagem, memória e continuidade de ações representativas

 

Cristine Pieske

 

Sua existência tinha tudo para ter sido anônima e logo esquecida, mas Maria Águeda fincou os pés na história por um ato de rebeldia: ousou dizer “não” a quem, vendo a cor da sua pele, quis lhe dar ordens acreditando tratar-se de uma escravizada. Ainda que efetivamente fosse uma mulher livre, e que sua recusa apenas afirmasse essa condição, sua resposta foi considerada uma ofensa à honra. Foi mandada para o tronco, a ser amarrada pelo pescoço e pelos pés, e acabou presa.

Aconteceu em 1804, no centro de Curitiba, em frente da então Igreja da Matriz. Duas mulheres que faziam parte da alta elite local — uma delas casada com o capitão-mor da Vila de Curitiba e outra com o tenente-coronel — aguardavam o início da missa quando foram presenteadas com um pequeno aquecedor a carvão, entregue às duas senhoras por uma moradora da vila. Foi ela que teria dito a Maria Águeda, que no momento apenas passava pelo local, que fosse buscar brasas para que pudesse demonstrar o funcionamento do fogareiro. Ao negar-se, já que não tinha nenhuma relação com tais pessoas, instaurou-se a discussão. Mais tarde, no mesmo dia, Maria Águeda foi detida.

O episódio foi registrado num documento oficial da época e é recontado pelo Doutor em História e professor da Universidade Federal do Paraná, Magnus de Mello Pereira, num dos capítulos do livro Curitiba e seus Homens-Bons — Espaço e Sociedade na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, disponível na Seção de His‐ tória e Geografia da BPP. Nele, o historiador traz à tona o caso envolvendo Maria Águeda para analisar a importância da noção de honra na sociedade de então, e de como o castigo de ser amarrada ao tronco, tão comum para escravizados, foi ditado para que sua punição a expusesse à humilhação pública.

Maria Águeda teria entre 25 e 28 anos na época e era casada com Salvador da Silva, com quem teve três filhos. Moravam no bairro rural de Tinguiquera, atual município de Araucária. Ao ser detida e conduzida até em casa, conta-se que o soldado que a acompanhou teria perguntado se ela sabia quem eram as senhoras a quem havia ofendido, certamente desejando fazê-la consciente do seu enorme atrevimento. Como descreve o professor Magnus Pereira, a resposta de Maria Águeda foi clara: disse que as conhecia muito bem e que não havia proferido nenhuma ofensa. “Desavergonhada”, foi como o soldado a qualificou depois dessa frase.

Os relatos seguintes dão conta de que quando o castigo de ser posta no tronco foi anunciado, seu marido teria se oferecido para ir no seu lugar, já que ela ainda amamentava uma das crianças. Tudo indica que ela escapou ao castigo físico, mas as versões divergem sobre o que realmente aconteceu com Maria Águeda na cadeia, se teria ficado presa apenas uma noite ou vários dias. Nos anos seguintes perde-se seu rastro. Mas não se perdeu a dívida de resgate da memória de uma das primeiras vozes da resistência negra de que se tem notícia no Paraná. Recebe agora, na Biblioteca Pública do Paraná, uma justíssima homenagem.

 

PRATELEIRA | Os 10 livros mais emprestados da Estante Afro Maria Águeda

 

  1. Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi. (Companhia das Letras, 2003)
  2. Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis (Boitempo, 2016); Tradução Heci Regina Candiani
  3. O Povo Brasileiro — A Formação e o Sentido do Brasil, Darcy Ribeiro (Global, 2015)
  4. A Experiência dos Orixás — Um Estudo sobre a Experiência Religiosa no Candomblé, Volney Berkenbrock (Vozes, 2007)
  5. Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves (Record, 2019)
  6. Água de Barrela, Eliana Alves Cruz (Malê, 2016)
  7. Abolição — Uma História da Escravidão e do Antiescravismo, Seymour Drescher (Editora Unesp, 2011)
  8. Umbandas — Uma História do Brasil, Luiz Antonio Simas (Civilização Brasileira, 2021)
  9. História Social da Beleza Negra, Giovanna Xavier (Rosa dos Tempos, 2021)
  10. As Almas da Gente Negra, W.E.B Du Boi (Lacerda Editores, 1999); Tradução Heloisa Toller Gomes