ESPECIAL CAPA | Clube de leitura para mulheres transformam a cena literária Cecília Zarpelon 18/09/2025 - 16:09

Por Cecília Zarpelon
Na Avenida Silva Jardim, número 845, em uma das livrarias mais conhecidas de Curitiba, um grupo se reúne toda última terça-feira do mês para discutir literatura. A roda de leitura que acontece na Itiban Comic Shop desde 2023 tem uma única regra: os livros debatidos devem ser sempre escritos por mulheres.
Embora não sejam novidade no Brasil, clubes e rodas de leitura voltaram a fazer sucesso após a pandemia de covid-19, resgatando a necessidade de convívio e transformando o ato solitário da leitura em uma experiência coletiva. Foi o caso da roda de leitura da Itiban, que surgiu de forma orgânica, a partir da vontade da jornalista e mestranda em Estudos de Linguagens pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Melissa Medroni, e da jardinista Fernanda Ayres, de compartilhar suas experiências e descobertas literárias com outras mulheres.
Com esse desejo, as duas procuraram Mitie Taketani, fundadora da Itiban, que abriu as portas da livraria e passou a ajudar tanto na organização dos encontros quanto na curadoria das obras. A seleção busca variar editoras, nacionalidades e origens das autoras, gêneros textuais e temas, com uma exigência: que a leitura seja de escritoras contemporâneas.
"Estamos treinados a ver o mundo sob um ponto de vista masculino, porque consumimos o pensamento, o conhecimento e a arte feita majoritariamente por homens desde sempre. Tem uma necessidade política de a gente consumir mulheres e mostrar para as editoras que esse mercado está aí, que é preciso investir nas escritoras", defende Medroni, que, junto de Ayres, media os encontros.
Apesar de representarem a maioria do público leitor, 49%, as mulheres têm menor presença no mercado editorial. Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2024, realizada pelo Instituto Pró-Livro, mostram que entre os 37 livros mais citados como último lido, as mulheres eram autoras ou coautoras de apenas nove. Já quando a pergunta foi sobre escritores(as) que mais gostam, dos 15 mais citados, só seis eram mulheres.
A discrepância se torna ainda mais evidente pelo fato de que as mulheres também são maioria entre os compradores de livros no país. Segundo o Panorama do Consumo de Livros, elaborado pela Câmara Brasileira do Livro em parceria com a Nielsen BookData e divulgado em 2025, 61% das pessoas que adquiriram livros nos últimos 12 meses são mulheres.
Para a doutora em Letras e professora da UTFPR, Amanda Crispim, os clubes de leitura são espaços fundamentais de desenvolvimento intelectual, cultural e crítico, e atuam especialmente em duas frentes: na divulgação e consumo de obras, e na visibilidade das autoras. "Ler mulheres num grupo de leitura de mulheres é um processo de emancipação não só para as leitoras, mas também para as autoras. Parar para ler uma mulher é dar importância e fazer com que ela exista enquanto escritora."
As mediadoras da roda da Itiban também destacam que ler mulheres ajuda a romper visões estereotipadas do feminino. Para Ayres, o patriarcado naturaliza a perspectiva masculina sobre o mundo, e a literatura tem potencial para questionar essa lógica.
No mesmo sentido, Sandra Mara Stroparo, doutora em Teoria Literária e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ressalta que quando obras escritas por mulheres ganham status literário, elas legitimam experiências e colocam heroínas e anti-heroínas lado a lado com os heróis tradicionais. "A nossa história e formação crítica na literatura foram elaboradas por homens, os livros que lemos foram escritos por homens e, quando apresentavam mulheres como protagonistas, elas eram pensadas por eles. Ler obras escritas por mulheres muda essa perspectiva, altera pontos de vista, oferece outros mundos."
Foi justamente essa quebra do senso comum sobre o feminino que chamou a atenção da doutoranda em Computação pela Universidade de São Paulo (USP), Paula Rodrigues, que participou da roda da Itiban pela primeira vez em agosto deste ano. "Ler livros de mulheres traz outra visão sobre o mundo, mais crua e real. A visão dos homens a gente já conhece."
No encontro, cerca de 15 participantes discutiram o livro O bom mal (2025), da argentina Samanta Schweblin, reconhecida por sua literatura de horror. Durante a conversa, além das interpretações sobre a obra, as mulheres compartilharam relatos pessoais que ressoavam com os contos do livro, refletindo sobre temas como sonho, maternidade, violência sexual, medo, memória, culpa e suicídio.
Na visão de Amanda Crispim, a literatura de autoria feminina é uma porta de entrada para compreender e debater múltiplas dimensões da sociedade. "Se lemos um livro da Carolina Maria de Jesus, por exemplo, temos a oportunidade de discutir desigualdade social, maternidades plurais, cidadania, política, racismo, sexismo, machismo, violência contra a mulher, violência urbana, ocupação. Estamos discutindo tudo isso numa única obra escrita por uma mulher negra", afirma.
Conexões que ultrapassam os livros
Mais do que um local para falar sobre literatura, a roda da Itiban tornou-se também um espaço de compartilhamento, aprendizado e amizade. "A literatura é o motivo, mas tudo que acontece depois é por causa desse encontro e das mulheres que estão aqui, nessa situação específica", diz a jornalista Melissa Medroni.
A troca entre mulheres de diferentes idades e formações torna a experiência ainda mais rica. Segundo a jornalista, a literatura é o melhor lugar para a prática da alteridade, permitindo que cada pessoa enxergue o mundo de outras formas. "A literatura não está só no livro fechado, mas justamente nessa troca entre os leitores", argumenta a jardinista Fernanda Ayres.
Poliana Back, professora e estudante de Psicologia da FAE, conta que o clube mudou sua vida — a ponto de considerá-lo um espaço espiritual e sagrado. Foi em uma das rodas que conheceu a HQ Arrojadas: mulheres paranaenses que reescreveram a história (2023), de Mylle Pampuch e Amanda Barros, que a inspirou a iniciar o curso de Psicologia. "Eu estava num momento de mudanças e acho que foi um pontapé. Hoje eu falto às aulas de Psicologia para vir nos encontros, todos os professores de terça já sabem", diz, aos risos.
Assim como Back, outra mulher que participa da roda desde o início é a escritora curitibana Fernanda Magalhães. Ela se engajou nos encontros pelo compromisso de incentivar iniciativas que estimulam a leitura de autoras. "As mulheres da minha geração foram alfabetizadas lendo livros de homens. Mas quando lemos mulheres, sobretudo as contemporâneas, nos encontramos mais. A gente vê mais sentido e eco na leitura." A escritora acaba de lançar seu primeiro livro pela editora Arte e Letra, o romance Quarta-feira de cinzas na loja de fantasias (2025), e sonha em ver sua obra debatida nas rodas da Itiban.
Para o futuro, as mediadoras da roda da Itiban esperam que os encontros sigam acontecendo e atraindo cada vez mais participantes. "Que a roda continue sempre girando, né?", brinca Ayres.
Coletivamente, mulheres constroem e fortalecem a cena literária
A capital paranaense está repleta de pessoas que se dedicam a incentivar a leitura de mulheres. Uma delas é a tradutora Emanuela Siqueira, que media o Leia Mulheres Curitiba, grupo criado em 2015 como parte de um movimento nacional e internacional iniciado no ano anterior. Segundo ela, o desejo era simples: reunir-se para falar e ler livros em grupo. O clube, que acontece aos sábados no Paço da Liberdade, no centro da cidade, já chegou a reunir até 90 pessoas.
Iniciativas como o Leia Mulheres Curitiba e a roda da Itiban fazem parte de um movimento mais amplo de mulheres que constroem e fortalecem a cena literária brasileira. É o que revela a pesquisa O Brasil que Lê, realizada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) em parceria com o Itaú Cultural, em 2021. Segundo o estudo, as mulheres lideram 74% das iniciativas de incentivo à leitura no país, atingindo mais de 220 mil pessoas em 24 estados brasileiros. Grande parte dessas ações é conduzida voluntariamente (44,76%) e mantida com recursos próprios (39%).
Assim como a roda da Itiban, os encontros do Leia Mulheres Curitiba giram em torno de obras escritas por mulheres. Siqueira explica que a escolha dos livros é feita de forma livre e espontânea, buscando diversificar a idade e origem das escritoras. "Uma coisa que eu faço é não repetir autoras. Assim as pessoas percebem que dá para passar anos e anos lendo escritoras e nunca repetir."
A tradutora defende que os clubes são essenciais não apenas para estimular habilidades de escuta e debate, mas para resgatar e manter vivo o nome de diversas autoras na história literária, como Maria de Lourdes Teixeira e Maria Firmina dos Reis. Ela exemplifica como o esforço coletivo dos clubes fez com que o romance Úrsula (1859), de Firmina, voltasse a circular, ganhando novas edições após anos de esquecimento. "Ler mulheres é ter outras perspectivas. Lendo Machado de Assis e Maria Firmina dos Reis temos visões totalmente diferentes do Brasil, no mesmo período, mas a partir de lugares e realidades distintas. A gente só tem a ganhar com isso", ressalta.
A professora da UTFPR Amanda Crispim concorda que esses grupos são fundamentais em uma sociedade ainda marcada pelo machismo e pelo patriarcado. Ela lembra que muitas autoras, sobretudo negras, ainda permanecem invisibilizadas no ensino formal e na grande imprensa. Apesar de avanços importantes, o campo literário ainda é um espaço de disputa.
Na contramão disso, Crispim observa um movimento crescente de jovens que buscam leituras fora do cânone tradicional, incluindo autoras trans, cis, negras e indígenas, por exemplo. Essa mudança de perspectiva pressiona o mercado editorial a se abrir para outras vozes, e gera transformações tanto na produção quanto no consumo de obras literárias.
Para Emanuela Siqueira, manter o Leia Mulheres Curitiba ativo exige esforço, mas o retorno é imenso: "É incrível pensar que centenas de pessoas vão num encontro para discutir livros num país que todo mundo adora falar que as pessoas não leem. Claro que temos um número muito aquém de leitores e leitoras. Mas precisamos pensar em como fazer para que as pessoas compartilhem esse desejo pela leitura, para que multipliquem as discussões e conversas depois que vão embora do clube."
Segundo a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2024, o país perdeu quase 7 milhões de leitores em apenas quatro anos. Pela primeira vez na série histórica, a proporção de não-leitores superou a de leitores e nos três meses anteriores à pesquisa, 53% das pessoas não haviam lido nem parte de um livro.
Apesar do cenário desanimador para a leitura no Brasil, as mulheres continuam consumindo literatura e estimulando outras pessoas a ler. Uma das entusiastas desse movimento é a servidora pública brasiliense Juliana de Souza, participante ativa do Leia Mulheres Curitiba. Para ela, o clube foi mais do que uma oportunidade para descobrir novas autoras – foi um espaço para encontrar novas amizades e firmar raízes na cidade.
"É muito fácil, aqui no Brasil, a gente falar de Machado de Assis ou Luís Fernando Verissimo. Para todos os gostos e gêneros de literatura, você consegue listar dezenas de homens. Mas isso é questão de acesso. Apesar de as mulheres escreverem, elas não são tão divulgadas", observa.
Além de promover trocas de experiências e contato íntimo com os textos, o clube oferece um espaço seguro para compartilhar opiniões. Outro aspecto importante, para Souza, é desmantelar estereótipos sobre livros de autoria feminina. "Quando se fala de livros escritos por mulheres, as pessoas tendem a achar que são sempre historinhas românticas, açucaradas, de final feliz, e quando você vê, você está lendo um livro que fala de política, uma ficção científica, um clássico da literatura como Frankenstein, contos insólitos. É uma variedade enorme de perspectivas abordadas de maneira muito peculiar pelas autoras."
Para a servidora pública, os diálogos e trocas durante os encontros vão além do livro: "Você adquire um ferramental conceitual que passa a fazer parte do seu olhar sobre o mundo, e isso eu consegui levar para minha vida e para o trabalho." Ela fala com carinho sobre o clube, as amizades que fez e os encontros que continuam fora do grupo, descrevendo a experiência como "uma sensação de amar e ser amada, de sair com a cabeça fervilhando de ideias e novas informações."
Em Maringá, quem conduz o Leia Mulheres é a professora Gabriela Tofanelo, participante do grupo há oito anos e mediadora das discussões desde 2021. "Ali encontrei muito mais que um clube de leitura. É um clube de pessoas com interesses em comum, um ambiente seguro e de acolhida."
No III Festival da Palavra, realizado em setembro em Curitiba, ela debate o apagamento histórico de autoras e a importância da valorização da literatura de autoria feminina. Tofanelo lembra que, na história da literatura brasileira, as mulheres só passaram a integrar o cânone na segunda metade do século XX, enquanto muitas escritoras anteriores foram invisibilizadas.
"Maria Firmina dos Reis, Júlia Lopes de Almeida e Gilka Machado são alguns exemplos de autoras importantes de suas respectivas épocas que quase nunca aparecem nos livros didáticos, como se não existissem mulheres escrevendo no século XIX. E quando lemos os livros dessas autoras, vemos representações diferentes dos estereótipos que permeiam as personagens femininas no cânone literário."
Comunidade de leitoras
Outro projeto curitibano que fomenta a leitura de mulheres é o Amora Livros, criado em 2022. Com um clube de assinaturas, envia mensalmente a seus assinantes um romance de uma autora contemporânea e um conto de uma escritora estreante, além de promover um encontro virtual para discutir o livro lido. Até hoje, foram entregues mais de 12 mil caixas para assinantes de 24 estados brasileiros.
Patrícia Papp, uma das fundadoras, explica que a ideia nasceu do desejo de dividir livros que ela e as sócias liam e admiravam. O objetivo, segundo ela, é equilibrar a balança entre autores e autoras, divulgando novas vozes femininas. "A gente quer valorizar e incentivar não só a leitura de livros escritos por mulheres, mas a própria escrita delas. E isso também fomenta o mercado editorial. Com mais clubes de leitura, de assinatura e grupos de discussão levantando essa bandeira de ler mais mulheres, vai se movimentando toda uma indústria. As editoras e livrarias vão percebendo o interesse, os prêmios começam a ficar mais atentos, tudo vai sendo repensado."
A curadoria é feita com cuidado: ao longo do ano, pelo menos metade das autoras precisam ser brasileiras de diferentes estados e as editoras também são revezadas. Para isso, a equipe acompanha prêmios de perto e mantém diálogo constante com escritoras, editoras e agentes literários.
Apesar de quase 90% dos assinantes serem mulheres com mais de 30 anos, o clube da Amora é aberto a todos. Papp acredita que a troca proporcionada pelos encontros amplia a visão das pessoas sobre a vida, gerando empatia e pertencimento. "A literatura acaba sendo uma forma muito interessante de se falar sobre a vida, porque o mesmo livro toca as pessoas em lugares bem diferentes", diz.
Entre as participantes está a arquiteta curitibana Maria Francisca Cury, que conheceu o projeto pelas redes sociais. Leitora assídua desde a infância, ela se apaixonou pela proposta de receber obras de autoria feminina em casa e, desde que assinou o clube, há três anos, só deixou de ler dois livros. "É muito importante para mim, hoje eu não consigo mais ficar sem essa leitura."
Cury relata que sua relação com os livros mudou desde que entrou para o clube. A troca de percepções com outras leitoras frequentemente a faz reler trechos sob novas perspectivas. "A leitura é muito mais detalhada. Hoje eu quero degustar, entender, perceber, ler bem e com mais calma, usufruir o máximo que aquela história pode oferecer", afirma. "Além disso, o que me atrai nesse espaço é que você também se enxerga nessas outras mulheres, um pedaço aqui, outro ali", completa.
De Curitiba a Maringá, de encontros presenciais a projetos de assinatura, os clubes de leitura de mulheres têm o mesmo propósito: reunir uma comunidade em torno da literatura de autoria feminina e contar sua própria história. Como escreveu Lygia Fagundes Telles em A Disciplina do Amor (1980): "Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos, agora somos nós que vamos dizer o que somos."
Cecília Zarpelon é jornalista formada pela PUC-PR, com especialização em Direitos Humanos pela PUC-RS. Atua com reportagem, checagem de desinformação e fotografia. Seu trabalho se concentra especialmente nos temas de direitos humanos, fotojornalismo e comunicação pública.