ENTREVISTA | Uma estaca de madeira atravessando o coração 10/06/2025 - 15:05
Christian Schartz por Francisco Camolezi
Christian Schwartz é jornalista formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, passou pelas redações da rádio CBN e revistas Placar e Veja – onde atuou como correspondente na Amazônia. Em 2002, entra na vida acadêmica por meio de uma especialização em Estudos Literários na University of Central England (UCE), na Inglaterra e, mais tarde, no mestrado em Letras da UFPR. Desde então, dedica-se à literatura como professor e tradutor. Em 2014, torna-se doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). É membro do Laboratório de Pensamento Social (Lapes) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Traduziu para o português livros de F. Scott Fitzgerald, William S. Burroughs, Philip Roth e letras de Lou Reed.
Agora, Christian é também biógrafo. Assina a primeira biografia de Dalton Trevisan, com lançamento previsto para o segundo semestre de 2025, pela Todavia. Ao Cândido, além de desenhar os pontos de encontro do circuito de Dalton por Curitiba, o desejo frustrado de escrever um "romanção" e os bastidores da vida do escritor, como a revista Joaquim e a viagem à Europa – a única vez que o autor d’A Polaquinha saiu do Brasil –, Christian conta que, entre os objetivos do livro, está desmistificar o "rótulo de recluso" do Vampiro. De acordo com o biógrafo, Dalton não gostava de ficar em casa, "era um andarilho da cidade" e contava com um círculo de relações "bastante grande". Ainda, o jornalista comenta as expectativas em relação à recepção do livro, que enfrenta críticas pela opção do autor em não entrevistar pessoas do convívio de Dalton, e defende o escritor como um dos únicos brasileiros com chances reais de levar o Nobel de Literatura. A entrevista foi realizada no dia 25 de abril, uma sexta-feira, em um café no centro de Curitiba.
Como e quando surgiu o projeto de biografar Dalton Trevisan?
Há dois anos, em 2023, eu estava na Todavia, na sede da editora, em São Paulo, para assinar o contrato de um outro livro, não da biografia. Era um livro de ensaios com uma série de interpretações do Brasil. Ao final da reunião, o Flávio Moura, que é o editor de não-ficção e um dos sócios da Todavia, sabendo que eu era curitibano, perguntou: "e o Dalton?". Essa pergunta deu origem a tudo.
Nesse momento, você já havia estabelecido algum contato mais profundo com o acervo, obra ou o próprio Dalton?
Em 2017, publiquei no Cândido um texto cujo título é "A Jornada do Herói Provinciano" e, te digo com exclusividade: virou título de um dos capítulos da biografia. Enfim, é um texto sobre a relação dos escritores com a cidade [Curitiba], e isso é parte importante da biografia dele. Embora naquele texto eu não tratasse especificamente do Dalton – apenas uma menção, no final – ele foi bem importante. Meses depois uma pessoa com quem o escritor conversava disse: "ah, o Dalton mandou perguntar quem era você. Ele leu aquele texto no Cândido, viu a menção e achou bem interessante". Foi a primeira e única vez antes de eu entrar em contato já por conta da biografia.
Isso em que ano?
Deve ter sido no final de 2017, início de 2018. Às vezes ele mandava recados e, lógico, eu fiquei super lisonjeado. Pô, o cara leu o texto. Eu moro há mais de 20 anos no centro, era vizinho de quatro quadras do Dalton. E aquilo ali foi um momento inaugural, porque eu não voltaria a pensar nisso durante anos, até 2023, quando o Flávio Moura me perguntou do Dalton.
Naquela época, a editora já sondava a compra dos direitos da obra do Dalton, não?
Absolutamente não. A minha biografia é anterior às conversas dele sobre mudar de editora.
E de onde veio essa pergunta?
Só por ser de Curitiba. Na verdade, esse movimento de aproximação foi porque eu, a partir daquela pergunta, procurei a Fabiana Faversani [agente literária de Dalton Trevisan] para sondar, sem nenhuma esperança. A gente tomou um café e perguntei para ela sobre a correspondência. Se, por acaso, eu poderia ter acesso a alguma coisa dos bastidores, das várias versões dos contos – não das várias versões publicadas em livro. Qualquer um de nós pode pegar essas versões e comparar. Eu queria saber o processo interno. E já era uma informação meio pública.
Ele trocava muita carta, principalmente com o Otto Lara Resende, sobre o texto. O Otto cortava o texto, mandava as versões e o Dalton devolvia. Isso já era notícia porque, a essa altura, a Fabiana tinha doado a correspondência do Otto para o Instituto Moreira Salles. Não estava disponível e, aliás, ainda não está. São seiscentas e tantas cartas. E quando isso aconteceu, saiu a notícia. Foi a partir disso que eu sondei a Fabiana, para tentar responder a demanda da Todavia. Ela já de cara falou com o Dalton e, no dia seguinte – ou dois dias depois – me mandou toda a correspondência, não só a do Otto. Era um acervo já digitalizado, na maior parte.
Eu fico me perguntando: se a Fabiana digitalizava essas cartas, me parece que havia um intuito, então, de publicizá-las.
Sim, sim. Essa história é mais ou menos a seguinte: na pandemia, a casa do Dalton foi invadida. Um assaltante entrou lá, confrontou um cara de 94, 95 anos. Pô, pandemia, o cara isolado, ruas desertas, acontece isso? Ela [Fabiana], que já fazia muita coisa para ele, não só da carreira, como até da vida pessoal, resolveu tudo para sua mudança. Não interessa entrar nessa questão, o fato é que isso levou a um movimento definitivo de salvar o acervo, que estava numa casa velha, se deteriorando. No momento que você tem que mudar tudo, faz uma triagem, joga fora o que não presta, começa a organizar. A Fabiana tomou para si a tarefa e já estava fazendo várias coisas no sentido de, uma vez que ele morresse, tivesse tudo organizado para que as coisas se acelerassem no processo de doação. Aí, em 2023, ela já me mandou toda a correspondência. Então pude começar a ler e fui tendo noção de quão rico era aquilo. Fui pedindo mais e tentando ver o que eu ainda podia ver, porque tinha diários de décadas para serem lidos. Aí começou a conversa que durou os últimos 18 meses da vida do Dalton. Nunca fui até lá para falar com ele pessoalmente, mas conversava quase diariamente por intermédio da Fabiana, para autorizações e depois para o depoimento. Acabei conseguindo um depoimento de 1h e dez minutos para esclarecer alguns pontos da vida dele.
Você chegou a se deparar com produções literárias inéditas de algum tipo?
Inéditas, propriamente, não. Mas, como eu esperava, ali tem todo o bastidor do que ele fez. Para te falar a verdade, ele aproveitava absolutamente tudo o que escrevia, e o cara não deixou de escrever nenhum dia a partir dos 15 anos de idade. Tudo que ele escrevia era, de certa forma, produção literária. Originalmente, é uma matéria-prima, meio crua, que ele vai retrabalhar. Mas, alguma coisa pronta e acabada, como conto, como produção literária, que ele não publicou, não tem. E não vai sair mais nada. Inclusive, ele deixou a obra definitiva toda emendada, [processo iniciado] antes da negociação com a Todavia. Ele deixou as últimas edições que existiam de cada livro com mais emendas para serem obedecidas na edição definitiva. Agora, ninguém mais vai mudar. Mas, até o último dia, fez o que achava que tinha que fazer em cima da obra.
Algumas biografias de personalidades já muito consolidadas no imaginário popular surgem para reforçar ou desbancar algumas noções. Como é a questão do Dalton com a história do "Vampiro de Curitiba". Pelo que li, o seu livro pretende contestar essa narrativa.
A primeira coisa que eu contesto é o rótulo de recluso. Porque o Dalton não gostava de ficar em casa. Ele era um andarilho da cidade e tinha um círculo de relações até bastante grande. O isolamento foi involuntário. Ele ficou velho e não podia mais sair e, literalmente, todas as pessoas que conviveram com ele pra valer durante anos e décadas, morreram antes. Todo mundo, inclusive a família. Então, o fato dele estar recluso, a ideia do misantropo, do cara isolado, foram circunstâncias da idade.
O que é o mito do vampiro? É um cara que só sai à noite. O que é falso pro Dalton. Porque ele foi um cara boêmio até uns 30 anos. Casou, e foi ficando menos. Ele foi um cara da noite, da juventude e, depois, continuou com os companheiros de jantar, no Vagão do Armistício, restaurante do pai do Poty Lazzarotto. No Bar Palácio. Estava mexendo num trecho [do livro] agora, antes de você chegar, falando exatamente disso.
Agora, de onde vinham as histórias? Ele conversava muito com um monte de gente e tinha amigos boêmios. Teve uma época, bem mais adiante, nos anos 1970, que já tem uma conversa com os jornalistas e escritores [Fábio] Campana, Jamil Snege, Nêgo Pessoa, aquele pessoal que era bem mais novo do que ele. Também participavam do círculo os advogados, porque ele se formou em Direito, como o Eduardo Rocha Virmond, o Osíris Brito, e os publicitários, que acho que vinham meio que pela onda, pelo Jamil, Sérgio Mercer, principalmente. Eles tomavam whisky no bar do hotel Iguaçu, bem em frente à Biblioteca Pública do Paraná. Se reuniam semanalmente, até mais de uma vez por semana. Esses caras eram aventureiros da noite, aventureiros sexuais, inclusive. Tem um monte de histórias retrabalhadas a partir daí.
O que eu procuro reiterar é: leiam a obra na sua totalidade. Vejam como ela vai muito além disso tudo. Como a obra é muito sobre relações familiares, não só a guerra conjugal, não só João e Maria, mas as famílias. E aí tem as origens familiares do Dalton, nas duas famílias italianas da Colônia. Essas histórias, meio rurais, meio urbanas, quer dizer, estão muito distantes de inferninhos, puteiros, profissionais de sexo do Passeio Público. Isso é uma parte. Vai muito além desses que Nelsinho, o Vampiro de Curitiba, encontra nas suas andanças; só que, por outro lado, como tem muito conto bastante pessoal, eu acho que ele até gostava dessa cortina de fumaça, desse disfarce do vampiro, entende? Porque aí todo mundo olhava para os contos com essa coisa folclórica. Ele alimentava isso. As poucas vezes que foram entrevistá-lo, ele corrobora. Mas, se eu tenho um objetivo, é espanar um pouco essa poeira dos clichês, das ideias, do personagem do vampiro. As pessoas que conviveram com Dalton também alimentaram a lenda. Dá uma olhada no que diziam quando eram instadas a falar dele. Espero que o livro transmita essa complexidade.
Você começou a sua resposta dizendo que o rótulo de "recluso" de Dalton era a primeira coisa que contestava. Qual a segunda, terceira?
A outra coisa é que se eu pudesse tirar a palavra "Curitiba" de todos os livros do Dalton, eu faria. Bom, tô brincando. Até porque tem uma parte da obra que é direcionada a Curitiba, não tem como tirar. Mas, de novo, é uma parte, só. É um assunto bem extenso e complexo, e eu diria o seguinte: ficou uma impressão de que ele estava falando de Curitiba, e, na maior parte do tempo, não estava. Eu acho que, embora não tenha tido muitas oportunidades de sair do Brasil, até pelo tempo que ele escreveu, o Dalton é um dos autores brasileiros mais traduzíveis em termos universais, se não o mais. Ele não é um autor de Curitiba, ele não é um autor paranaense, ele quase não é um autor brasileiro. A gente tem essa mania de fazer uma leitura meio endógena, "o nosso Dalton". Cara, se você botar ele em qualquer língua e esquecer a palavra "Curitiba", ele estaria entre os grandes. Ele estaria, não, ele está entre os grandes.
Às vezes é uma questão da gente reconhecer isso. Eu acho que é muito contraproducente essa história de Curitiba. Curitiba, Curitiba… tá certo, porque ele também não economizou em reiterar isso. Ele próprio acabou repisando um pouco demais. Talvez porque não tivesse como se livrar daqui, né? Passou a vida inteira aqui. Então, não dava para transcender. Na obra ele conseguiu, sem dúvida. Acabou não tendo uma postura muito cosmopolita, mas era uma cabeça universal. E ainda bem que ele escreveu 37 livros, fora as coletâneas, porque deixou um testemunho disso. Eu espero que, daqui em diante, já que está tendo esse renascimento, ele possa alcançar lugares muito mais distantes.
Isso tem acontecido. O duro é que a gente é uma literatura tão periférica. Se você olhar aqueles que são considerados brasileiríssimos, como Jorge Amado, Guimarães Rosa, eles são pouco universalizáveis. Dalton, Clarice Lispector e alguns poucos, são. Quem sabe o Dalton consegue furar esse teto aí, porque, eu acho, a obra oferece condições. Se ele tivesse sido um cara mais cosmopolita, a começar por sair daqui, quem sabe? Mas eram outros tempos. Era tudo muito mais difícil.
Ainda assim, penso no papel que o local geográfico frequentemente cumpre nas biografias. Se não me engano, Ruy Castro disse em uma entrevista que, por trás de cada uma de suas biografias e livros de reconstituição histórica, há um projeto de contar a história do Rio de Janeiro em determinada época. Isso acontece no seu livro?
Sim, não tem como escapar. A única coisa que estou procurando é não fazer a leitura da obra pelas lentes provincianas. É meio prejudicial para uma nova leitura insistir que a obra é um reflexo de Curitiba. Eu acho que dá para separar um pouco. Dá para você dizer que o cara nunca saiu daqui, que ele andava por aqui, que 100 anos da cidade foram parar em uma obra, mas a leitura da obra não precisa ser de que ali está Curitiba. É justamente quando um grande autor consegue transcender o lugar de onde ele saiu, falar a uma pessoa que não faz a menor ideia do que é Curitiba, que ele se torna interessante. Tem também o extremo oposto, o desconhecimento de quem não é daqui e que compra rapidamente essa mistificação da cidade, desses personagens, do Dalton como o "Vampiro de Curitiba".
Mas, assim, a contextualização histórica, geográfica, eu faço. O Dalton era um cara que ia ao cinema. Assistia os filmes que estavam em cartaz, e lia, absurdamente, o tempo inteiro. Mas ele não frequentou ambientes culturais depois da formação acadêmica e a vida dele era muito banal, em termos de convivência. Não convivia com artistas. Eram esses amigos que eu falei, jornalistas, advogados, publicitários, gente que ele conhecia por outros amigos da família, e tal. Um emprego diurno normal, burocrático, administrativo, e cuidar da família. Então, falar de Curitiba é enfadonho. Essa Curitiba onde ele circulou dos anos 60 em diante. Sobre a Curitiba da formação do Dalton e a questão da família eu capricho bastante. Mas, é isso, basicamente. É uma coisa meio sintomática na cena literária curitibana. Toda geração que surge quer sepultar o paranismo, mesmo o paranismo não sendo a geração passada. Tem uma frase muito marcante, publicada no jornal A Arte, do ano de 1888, que lista entre os objetivos da publicação "fazer progredir a arte nesta província". Parece que essa ideia repercute nas revistas que surgiram aqui desde então, inclusive na Joaquim.
Assim que acabou a Joaquim, ele conclui: "não, eu não quero isso aí. Eu não quero ser um polemista, um jornalista literário, um editor". Ele decidiu ali, entre o fim da Joaquim e a ida para a Europa. Aí já começa a ter diário. Mas é que os primeiros diários que eu tive acesso foram os pré-viagem, viagem e pós-viagem, de 1949 a 51. Aí ele já não está falando da Joaquim. Está justamente lutando com a ideia de ser escritor. Ele duvida de si próprio. Ele vai e vem, depois viaja. Volta em 1951, quando fica noivo. Entra na vida adulta e vai trabalhar como advogado, depois na fábrica da família. Mas, neste momento, é bem claro, ele já é um escritor. Ainda que ele esteja muito inseguro e não saiba muito bem como vai conseguir ser escritor, ou o tipo de escritor que quer ser. Ele queria ser romancista. Queria escrever romances de 800 páginas. Era uma blague que ele usava como uma expressão frequente: "O meu 'romanção' de 800 páginas". Até achar o caminho do conto durante os anos 1950.
Como é que ele saiu do cara que quer escrever um "romanção" de 800 páginas para se consolidar como o grande contista que foi?
Ele foi se conformando aos poucos. Porque continuou falando disso um tempão e insistiu para caramba, até que lançou A Polaquinha, em 1985. Mas ele foi recebendo o feedback das pessoas, particularmente dos amigos mineiros e muito especialmente do Otto. Era um comentário crítico, mais amplo. Porque, Novelas nada exemplares, de 1959, é a primeira vez que sai por uma editora nacional. Ele já tinha 33 para 34 anos. Ganhou o prêmio Jabuti, direto. Ninguém tinha dúvida em dizer. Dalton era o maior contista do Brasil nos anos 1960. E ele continuou fazendo o que fazia bem. Então, nos anos 1950, ele estava num desespero tão grande nesse negócio de encontrar um gênero que foi escrever para teatro. Foi uma experiência bem intensa, assim, de 2, 3 anos. Desistiu. E ele falava dessa autoria o tempo inteiro. Tem carta para o Otto, de 1956, que era o tempo inteiro: o "romanção", o "romanção"... Durante os anos 60, têm escritos do tipo: "é... vou escrever uma página desse romance por dia. Uma página por dia, até a página 10. Se eu conseguir…". Daí ele escreve para o Fernando Sabino: "pô, acho que eu tenho um problema com o gênero, com o romance. Não consigo pensar uma história com início, meio e fim".
Ele ficava remoendo esse negócio. E eu acho que A Polaquinha é um acidente. Assim como O Vampiro de Curitiba, que tem o mesmo personagem e que pode ser lido como romance, A Polaquinha é um romance por acaso. Poderia ser um livro de contos com a polaquinha em todas as histórias, como é O Vampiro de Curitiba, com o Nelsinho, embora ele tenha feito um esforço de unidade n’A Polaquinha. Sem dúvida, há uma sequência entre os capítulos. Ali você tem, de fato, uma novela ou romance. Enfim, é uma carreira tão longa que é difícil [resumir]... Mas, assim, para te falar que, no fim das contas, ele experimentou todos os gêneros. E ele não era um romancista. Romance é uma linguagem que ele não dominava. E ele se frustrou com isso.
Mas, no final da história ele ganhou o Prêmio Camões. Fica essa conversa de Prêmio Nobel brasileiro pra lá, pra cá. Cara, o único tipo de escritor que teria alguma chance de ser Prêmio Nobel é um Dalton, uma Clarice Lispector. Alguém que seja traduzível em termos universais. Senão, não tem jeito. Ele nunca foi muito cogitado porque também não tinha as traduções. Não adianta muita coisa se não tem circulação. Mas o que mais que ele podia querer no fim das contas? Não sei o que ele pensou nos últimos dias, mas o cara se consagrou absolutamente até onde dava.
Retornando ao seu trabalho. Sobre a escolha de não conversar com pessoas do convívio de Dalton, testemunhos, você não acha que, de repente, você não está escrevendo algo que seja menos uma biografia e mais um ensaio sobre a obra e vida do escritor?
Provavelmente. É que se as pessoas tivessem noção de como e do quão pessoal é a obra do Dalton, não estariam dizendo isso. Não me interessam as fofocas e, de novo, não me interessa o mito, a lenda, que era só o que as pessoas diziam quando davam entrevista sobre. E vão continuar dizendo. Hoje, se eu fosse conversar com alguém… não tem ninguém vivo que realmente valha a pena, que possa me dar uma noção de conjunto. Não menosprezando as pessoas que tiveram uma conversa recente, porque isso é uma questão temporal. As pessoas têm uma ideia de que a biografia convencional é aquela que tem muitos eventos. Tipo, vamos dizer, a do Oswald de Andrade, do Lira Neto: "Como foi o bastidor daquele manifesto?" Estou falando aqui de coisas que interessam para a obra. Fora o fato de que têm personagens que, ao contrário do Dalton, tiveram uma vida muito mais atribulada. A vida pessoal do Dalton é absolutamente monótona. Ele não fez nada. Os diários dele falam tudo e mais um pouco, e não tem nada escabroso como as coisas que vieram à tona do Oswald de Andrade. Assim, se alguém soubesse de alguma coisa escabrosa, seria quem? Alguém que conviveu com ele nos anos 1950, 60, 70, que não está mais aí. Agora, alguém que ouviu falar de alguém que ouviu falar de alguém…
E de novo, eu fiz uma opção bem clara de que eu quero desvendar um gênio da literatura, não um possível boêmio, frequentador daqui e dali. Tem isso, também, na biografia. Os diários de juventude do Dalton se passam nesses ambientes. Ele anotou abundantemente coisas que viu naquele momento e, mais adiante, formaram a visão de mundo dele e da obra. O dia do Dalton com 60 e poucos [anos de idade] é igual ao dia do Dalton com 90 e poucos. Então, eu optei por outro caminho. Vamos fazer um negócio não cronológico, mas episódico e, principalmente, temático. O que passava na cabeça dele? Eu explico o que ele fazia, como ele fazia, enfim, como é que no meio dessa rotina, de dentro dessa cabeça, com uma formação tal, saíram esses contos. Essa obra gigantesca.
É uma opção. Eu tenho medo de que soe arrogante, mas eu acho que o "disse me disse", a anedota de segunda mão, é o que eu conseguiria entrevistando umas 10 ou 20 pessoas que ainda valeriam a pena. A própria família não tá mais aí. Eu acho que a Rosana, a filha mais velha, que morreu em 2023, e que aspirou a ser escritora, teria um depoimento interessante para dar. Ela morreu em maio de 2023, exatamente um mês antes de eu começar essa história. Eu não ia ficar enchendo o livro de anedotas, que é o que os entrevistados teriam a dizer, com exceção de alguns, talvez de uns 10, que morreram muito antes ou em cima do laço, principalmente a Rosana. Se ela ia querer dar entrevista, aí é outra história.
Como ninguém leu ainda – fora uma ou outra pessoa da minha intimidade que leu partes da biografia e me disseram que é um texto que flui como narrativa, que é o que me interessa – estou sofrendo da expectativa de que os leitores achem que é um troço meio cerebral, cabeça, de uma análise muito mais para o ensaio do que para a biografia. Mas eu estou confiando no taco de que vai sair uma coisa que pode ser chamada e está sendo chamada, na editora, de biografia. Só que é uma biografia literária e intelectual. Devia vir na capa: não contém fofocas. É claro, uma brincadeira, porque, em certa medida, as histórias são íntimas. Espero que se confirme como uma biografia e que seja lida dessa forma. A gente relutou muito ao longo do processo.
Você diz que relutou em chamar de biografia?
É. Ainda não batemos o martelo. Podia ser um ensaio biográfico. Podia ser um perfil. A gente não sabia o tamanho do livro. E ainda não sabe. Mas já está maior do que um perfil.
E o livro não está pronto ainda, certo?
Falta um mês para ficar pronto [a entrevista foi realizada dia 25 de abril]. Cerca de 70% em texto final, 30% em texto bagunçado. Ainda há demanda, mas não tem mais apuração. Eu já li tudo o que eu podia ler, já catei fontes extra-acervo em tudo onde eu podia. Comecei o processo com as cartas e com pesquisa hemerográfica, em jornal. Bem caprichado. Depois entrou o depoimento, que me indicou mais alguns lugares onde eu poderia ir. Depois foram entrando os diários, aos poucos. E aí nunca para de aparecer uma situação ou outra que eu tenho que ir atrás. Mas, agora, chega. Agora a história já tem um começo, um meio e um fim. E eu estou confiante que dá para pôr o ponto final. É só ajeitar os 30%.
Francisco Camolezi é jornalista e mestrando em Letras no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).