ENTREVISTA | Biblioteca de Babel: formas infinitas de transformação 20/12/2023 - 11:54
Leilah Bufrem analisa o papel das bibliotecas públicas no país e a relação do público com a leitura
por Redação Cândido
Leilah Bufrem é graduada e licenciada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidad Autónoma de Madrid. Fez cursos de Especialização em Ação Cultural pela Universidade de São Paulo, em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa, em Métodos e Técnicas de Ensino e em Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal do Paraná. Professora Titular aposentada do Curso de Gestão da Informação da Universidade Federal do Paraná, atualmente é professora Permanente na qualidade de Professora Visitante Sênior no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco e professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Presidiu a Comissão Editorial responsável pela criação da Editora da Universidade Federal, da qual foi a primeira diretora. Idealizou, projetou, implantou e coordenou a Base de Dados Referenciais de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (Brapci). Em conversa com a equipe do Cândido, Leilah explica a diminuição da leitura no Brasil, estabelece conexões com as ferramentas atuais para a formação do público leitor(a), afirma o poder de transformação da leitura pela educação e reforça a função social de um local que garante o acesso à memória, à imaginação, ao senso crítico e à liberdade do pensamento, com sentido de pertencimento de cidadania e o fortalecimento da Cultura de um povo.
Em linhas gerais, o que é uma biblioteca?
A concepção clássica de biblioteca corresponde à expressão genérica “coleção de livros”. Esse conceito abrangente implica especificidades relacionadas a categorias como espaço (onde está situada), tempo (se histórica ou contemporânea), quantidade (grandeza ou abrangência), qualidade (tipo de coleção, especificações relacionadas aos usuários, aos temas e a outros qualificativos possíveis), relação, posição, missão e atividades. As categorias podem ser predicamentos ou relações como as condições públicas ou privadas, gerais ou especiais, indicativas de tipos de coleções ou de temas, usuários ou formas de organização para estudo, leitura ou consulta. Mas o conceito de biblioteca pode ser ampliado e apresentado como parâmetro, também, para os produtos e serviços oferecidos pelas chamadas bibliotecas digitais, relacionando-as às questões de preservação, acessibilidade e legibilidade de documentos eletrônicos, bem como os problemas de disponibilização de recursos informacionais apontando para as novas características que a biblioteca digital deve incorporar.
Uma nova configuração de biblioteca, como espaço híbrido e multiterritorial, que pode assegurar a permanência e imortalidade especialmente das bibliotecas públicas, cujo espaço físico precisa ser transformado em ambiente de colaboração, facilitando a troca e o compartilhamento de informações, respeitando as multiplicidades que envolvem o seu papel e função na sociedade. Assim, a ideia de biblioteca parece aproximar-se da fantástica Biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, uma ideia fantasmagórica na qual ele usa a imagem da biblioteca como algo fantástico e infinito, mas premonitória: o UNIVERSO (que outros chamam a biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável.
A quinta edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, publicada em 2019, demonstra uma queda de 4,6 milhões no número de leitores quando comparada à edição de 2015. Nesse contexto, qual o papel das bibliotecas públicas?
A pesquisa aponta para desafios como a formação do leitor na escola, a falta de estrutura e de bibliotecas nas escolas e de investimento em profissionais de ensino. Um fator crítico é a ausência de bibliotecas em cerca de 60% das escolas brasileiras, além do analfabetismo funcional de quase 40% dos brasileiros maiores de 15 anos. Nessa conjuntura, a responsabilidade para o abrandamento da carência passa a recair sobre as bibliotecas públicas, sejam municipais, ou estaduais. Recorro à memória e me vejo na Seção de Referência da Divisão Infanto-juvenil da Biblioteca Pública do Paraná, trabalhando diretamente em prol das respostas às questões dos leitores jovens, quase todos escolares. Desde então, a BPP já realizava o papel e as tarefas pertinentes a uma biblioteca escolar, justamente pelas estruturas precárias ou inexistência de bibliotecas nas escolas. Hoje, o contexto é similar, pois as poucas bibliotecas escolares existentes são quase esquecidas e, diante das demandas cada vez mais concretas e envolvendo exigências tecnológicas competitivas, participam de uma missão entre maior ou menor poder de resolução e de respostas. Se a recorrência à bibliotecária de referência, nos anos 1960 e 1970, resolvia razoavelmente os problemas levantados, hoje, as possibilidades de recorrência ao chat ChatGPT, um prodígio de inteligência artificial desenvolvido e lançado em 2022 pela OpenAI, tem uma “vantagem competitiva” sobre
os hercúleos trabalhos da bibliotecária ou do bibliotecário: oferece o retorno, ao usuário que, sem a necessidade de ler ou pensar, pode prescindir da análise e interpretação das informações. Esses transformadores generativos pré-treinados fazem parte de um processo de modelização de linguagem abrangente e uma estrutura de inteligência artificial generativa formada por redes neurais artificiais usadas em tarefas de processamento de linguagem natural.
Qual seria, portanto, o papel central das bibliotecas públicas?
O papel das bibliotecas públicas, portanto, desdobra-se em amplo espectro de práticas, desde as formas clássicas permanentes, cujos sucessos obtidos na história reforçam sua presença hoje, como a própria leitura de livros, a contação e interpretação de histórias, a construção de situações de leitura e outras inovações criativas; passando pela recorrência aos elementos culturais disponíveis ou aos jogos tradicionais renovados e recontextualizados, pelas pesquisas individuais ou coletivas nas bibliotecas, com modos de trabalhar com a comunidade e com serviços a comunidades especiais e minoritárias; até chegar às formas mais sofisticadas de ação transformadora, com acesso a redes e a documentos em qualquer suporte, apoio à navegação em rede, à utilização de meios para a prestação de serviços baseados nas tecnologias da informação. Ou seja, um modo de funcionar como um centro local de serviços de acesso a documentos online. Como síntese das práticas possíveis, vale o destaque ao papel social de uma biblioteca pública, com a utilização de mídias digitais de democratização do acesso e a possibilidade de uso da informação, direito básico do cidadão na sociedade.
De acordo com Jorge Luis Borges, o conceito de biblioteca compõe-se de um número infinito de galerias hexagonais
Se por um lado a pesquisa aponta para a diminuição da leitura, por outro, o uso das redes sociais ganha cada vez mais espaço. Como você vê essa relação?
A diminuição da leitura aparentemente é uma tendência resultante do uso cada vez maior das redes sociais. Essa tendência tornou-se muito evidente durante os anos de pandemia, quando a necessidade nos obrigou a recorrer à condição remota. Aparentemente, isso pode estar ocorrendo, por pensarmos em termos de “leitura tradicional”, em suportes clássicos, livros, revistas e outros documentos impressos, como teses, dissertações, além de tipos diversos de relatórios de trabalhos científicos e, principalmente, de literatura de ficção em seu formato original. Há fatores importantes para essa ocorrência: a atração pelas mídias e uma espécie de afirmação, de um poder pessoal e sedutor, diante do desafio das tecnologias, dos instrumentos e objetos mediadores, transformando nossos hábitos e nos seduzindo, em última análise. Entretanto, essa talvez seja apenas a aparência do fenômeno de diminuição da leitura, pois, sua prática apenas se renova nos modos e instrumentos. Assim, ela permanece ativa, em sua especificidade. Se o livro impresso é objeto de um tipo de uso normalmente denominado “clássico”, o livro e os textos eletrônicos desdobram-se em formatos e práticas diversos, decorrentes do acolhimento das tecnologias mais recentes, até pelos amantes da leitura de literatura, aparentemente os mais resistentes aos meios desenvolvidos pelas transformações nos modos de produção. Seria apenas uma área de transição graças à diversidade de opções nos usos da leitura.
A ascensão de movimentos de leitores e crítica de literatura nas redes sociais (como os Booktokers, no TikTok, e os BookTubers, no YouTube), pode ter impulsionado a leitura no Brasil. Para você, as redes sociais podem servir como aliadas da leitura?
As redes podem se tornar aliadas efetivas. Entre 2018, quando da última Bienal do Livro presencial, antes da pandemia e a do ano passado, 2022, a quantidade de visitantes foi 10% maior. Um estande com um espaço dedicado aos “Sucessos do TikTok” já chamava a atenção por divulgar amplamente livros de sucesso expostos na mídia conhecida pelas “dancinhas”. A busca pelo fenômeno dos Booktokers, no TikTok, uma ferramenta de tendências desta nova “era das recomendações de livros”, fez-me encontrar influenciadores aliados nessa trajetória em ascensão. Além de ditarem tendências, esses influenciadores digitais podem atuar como aliados do mercado editorial e se tornarem gamechangers, ou seja, aquele profissional capaz de mudar o jogo dos negócios com suas ideias, nesse caso, em prol das editoras.
Qual é a função social da biblioteca, e de que forma ela pode cumprir com esse papel?
Ao desacatarmos as cinco leis de biblioteconomia criadas pelo indiano Ranganathan e consideradas fundamentais às bibliotecas e à profissão de bibliotecário, percebemos sua pertinência, mesmo ampliando a compreensão do termo livro para outros suportes de leitura, impressos ou digitais:
1 – “Os livros são para serem usados” e diríamos mais, para serem lidos, pois são máquinas de ler;
2 – “A cada leitor o seu livro”, ou seja, o processo de produção e distribuição dever ser democrático e diversificado;
3 – “Para cada livro o seu leitor”. Ou seja, além de democrático, o processo deve prever o encontro do livro pelo leitor;
4 – “Poupe o tempo do leitor”, pois além de eficaz, o processo deve ser eficiente.
5 – “A biblioteca é um organismo em crescimento”.
Reconhecendo-se a biblioteca pública como “um espaço sociocultural”, portanto aberto e disponível para permitir a construção e o uso de produtos e serviços informacionais no seu contexto de atuação. Assim, considerada, além dos livros, em seu sentido estrito, seu acervo prevê “um universo” amplo de suportes, para múltiplos assuntos. Seu papel seria não apenas favorecer a reprodução das relações sociais estabelecidas, mas também de servir como instituição auxiliar na edificação de uma sociedade mais justa e democrática, pelo seu caráter público. Estas bibliotecas não apenas refletem a sociedade em que estão inseridas como podem ocupar papel de relevância em diversos países junto às suas comunidades.
Você poderia citar formas criativas que bibliotecas públicas contemporâneas encontraram para promover a leitura?
Deve-se pensar inicialmente na hipótese de uma solução harmônica, capaz de promover a interação dos usuários com as tecnologias, a literatura de qualquer gênero e a ludicidade. Minha tese propõe a inclusão e a transformação como palavras-chave. Percebo na literatura uma visão pragmática de aperfeiçoamento de instrumentos, práticas, estratégias e defendo a convergência deles para a concretização desse ideal. Mas considero imperioso pensar na biblioteca como espaço educacional, de inclusão e transformação social.
Algumas das mais recentes formas criativas em bibliotecas públicas para promover a leitura incluem: as Bibliotecas Móveis, uma experiência já histórica, de unidades móveis para levarem livros a comunidades carentes, escolas, instituições e eventos; os espaços de criação, ou áreas nas bibliotecas dedicadas a atividades lúdicas e criativas, como estúdios de gravação, laboratórios de fabricação digital e espaços para produção de conteúdo, tais como estações de música, salas com livros, computadores ou tabletes, rodas de história ou palco para crianças. Os (as) frequentadores (as) vão se apropriando daquilo na medida em que precisam, vão conhecendo e reconhecendo os instrumentos substitutos ou transformados, cuja origem foram as máquinas de leitura, desde cascas de árvores, conchas, rochas, materiais como argila, papiros e pergaminhos; programas de Leitura Virtual, atividades que utilizam tecnologia, como clubes virtuais de leitura, e−books e aplicativos interativos de promoção da leitura; eventos culturais e literários, como palestras, debates, performances teatrais e exposições artísticas para atrair diversos públicos; leitura em comunidade, como incentivo à formação de grupos de leitura locais, favorecendo um ambiente social para troca de experiências literárias, desde a participação nas formações de grupos, nos quais são discutidas questões de comunicação, metodologias participativas e mapeamento de parceiros locais; todas as formas de integração com a tecnologia, tais como o uso da realidade virtual, aumentada ou gamificação para tornar a leitura mais envolvente e atrativa, especialmente para crianças e adolescentes. Todas essas iniciativas tornam as bibliotecas mais atraentes, dinâmicas e adaptadas às necessidades e interesses contemporâneos.
Quais são as principais ferramentas para garantir o acesso a pessoas com deficiência?
Reconhecendo-a como um instrumento de inclusão social para a comunidade de deficientes visuais, por exemplo, o audiolivro tem sido citado, pois permite autonomia, agilidade, interatividade e participação ativa dos usuários com as novas tendências informacionais, com questões importantes para o convívio social, proporcionadas pelas tecnologias da informação. Uma pesquisa recente analisou o perfil dos leitores sem deficiência visual, para identificar seu conhecimento sobre as tendências tecnológicas, e lhes apresentar o audiolivro como um meio dinâmico de incentivo ao hábito de leitura. Considerando-se a leitura do referencial consultado, elegem-se algumas condições para cada biblioteca como contar com computadores, situados no espaço para integrar o digital com o analógico, em formato híbrido e profissionais bibliotecários, os quais
têm assumido o papel de reprogramar o espaço físico da biblioteca com o apoio da comunidade. A ideia é criar, junto com as equipes disponíveis ou forjadas no contexto de atuação do programa, práticas e projetos pelos quais o uso da tecnologia possa proporcionar o acesso à informação e incentivar outros projetos, numa espécie de desdobramento de facetas.