ENTREVISTA | Bernardo Pellegrini 17/01/2025 - 15:14

O CANÇONAUTA

 

Meio navegante, meio cosmonauta, meio cancionista, Bernardo Pellegrini celebra os 30 anos do álbum Dinamite Pura, com o lançamento em formato vinil. Nesta entrevista, um dos maiores compositores do país reafirma sua fé na cultura e na força da canção brasileira, esse planeta chamado Emoção


Cruzar o canal
Ganhar o mar alto
A vida vai à deriva
Num oceano azul cobalto

Bernardo Pellegrini, em “Parto”


Nascido em 1958, em Londrina (PR), Bernardo Pellegrini é uma figura de proa da cena paranaense, fruto da efervescência dos anos 70, 80 e 90 na cidade. Sua obra musical, toda gravada ali, é a mais completa tradução do espírito cosmopolita que formou a “Pequena Londres”, que acaba de completar 90 anos. Em dezembro passado (2024), o compositor e jornalista relançou em vinil, através de campanha coletiva, o álbum Dinamite Pura, com o coletivo Bando do Cão Sem Dono, um dos melhores discos de MPB dos anos 90. Ele também foi duas vezes Secretário de Cultura de Londrina, sendo o idealizador e responsável pela implantação do Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura de Londrina), considerado uma referência de política pública para a gestão de projetos culturais no Brasil. Como jorna­lista, peregrinou pelo histórico jornal londri­nense Panorama (que reuniu um time de grandes no­mes do jornalismo brasileiro, “exilados” em Londrina durante a Ditadura), Folha de Londrina e Folha de S. Pau­lo. Fundou a Cooperativa de Jornalistas do Paraná e o jornal independente Paraná Repórter. Foi editor dos jornais Brasil Repórter e O Repórter. Em São Paulo, colaborou com as revistas Planeta, Status e assumiu a edição da Gazeta de Pinheiros. De volta a Londrina, criou o “Caderno 2” e foi editor-chefe da Folha de Londrina. Escreveu o livro-reportagem Cerrados – A Ocupação Japonesa no Campo (com Paulo San Martin, Codreci, 1984) e Almanaque do Amor, com Maria Abramo (Busca Vida, 1988). Seu último álbum é Outros Planos (2018). Em 2023 ele lançou as plaquetes Frágil e Fêmeo (Galileu Edições) e, no fim do ano passado, em parceria com Maurício Arruda Mendonça, o livro Comida Multicultural em Londrina – Um Prato Cheio de História (Pelle Editorial), que resgata a história da culinária na cidade.
Personalidade múltipla e inquieta, é na arte da canção – que busca a perfeita simbiose entre palavra, música e voz – que Bernardo sintetiza suas paixões, seu espírito crítico e visão aguçada de mundo, seus afetos, suas relações pessoais e conflitos, compondo músicas que são instantâneos de nosso tempo turbulento e veloz. Com seis discos lançados e mais dois a caminho, ele tem parcerias com um time talentoso de escritores e músicos paranaenses, como o consagrado Domingos Pellegrini Jr. (seu primo), Mário Bortolotto, Marco Scolari, Nelson Capucho, Maurício Arruda Mendonça, Paulo Leminski, entre outros. Em 2016, sua canção ‘‘Essa Mulher” foi gravada por Elza Soares e pela londrinense Simone Mazzer no álbum Férias em Videotape. No mesmo ano, “Dei Um Beijo na Boca do Medo” foi tema de abertura da minissérie Me Chama de Bruna, exibida pelo canal Fox Premium. Com quase 100 músicas registradas e 150 inéditas, Pellegrini já teve suas canções gra­vadas por Joyce Cândido, Mário Bortolotto, Natália Ma­lo, Cibele Oliveira, Eliane Bastos e Camila Taari. Mais conhecido no meio da música independente, versátil, provocante – com uma obra que “comporta surpresas acima da média”, como escreveu o crítico de música Luis Antônio Giron, – no repertório pellegriano há lugar tanto para a canção caipira quanto para o jazz, para estilos que vão do baião e a balada romântica ao rock, ao rap e a poesia sonora e concreta (“Game”, “Borboleta”). É um autor de verdadeiras pérolas do can­cioneiro brasileiro contemporâneo e que precisam ser mais conhecidas.


Nesta entrevista ao Cândido, Pellegrini fala sobre a arte da canção, música paranaense e políticas públicas para a cultura.

 

 

entrevista
Acervo pessoal: Bernardo Pellegrini

 

 

entrevista
Primeira formação do Bando do Cão Sem Dono em 1994, na casa em que viviam em comunidade, num sobrado no Alto da Lapa (São Paulo). Da direita para a esquerda: Celmo Reis (de lenço na cabeça, guitarra), Cândido Jorge de Lima (bateria), Bernardo Pellegrini (voz e violão), Alessandro Laroca (baixo), Marco Scolari (piano, acordeão, violão) e Maria Angelica Abramo (performance). | Acervo pessoal: Bernardo Pellegrini

 

 

Você tem uma abordagem interessante da canção brasileira, e da relação desta com nosso português brasileiro. Você costuma dizer que a cultura brasileira se organiza a partir da canção, com uma visada antropológica que funde sua ideia de canção com sua ideia de cultura. O que é a canção, para você?


É um momento alto da cultura brasileira. A canção organizou a nossa palavra falada. Por isso, é muito mais através das canções do que do texto formal que as pes­soas aprendem a comunicar suas emoções, criando essa potência de expressão que é única e original. Nos­sa língua brasileira passou de portuguesa faz tempo, como dizia o sábio Noel Rosa. O falar brasileiro já vem com fundo musical, a fala sonora e esplêndida da canção. Nela, o pensamento voa, comunica ideias, vivências, histórias, conselhos, desejos. Ou seja, constitui uma cultura quando comunica modos de vida, hábi­tos, interações e trocas. Como compositor, me sinto além de mim, me reconheço como parte de uma tradição de saberes que a canção popular do Brasil sintetiza com seu alfabeto de ideogramas, onde os sons carregam imagens através das palavras combinadas com pulsação rítmica. Falo dessa combinação original da língua portuguesa (derramada e horizontal) com a língua africana (vertical e sincopada), mais a música da floresta (pura paisagem sonora, soundscape).  Essa com­binação foi mediada pela imposição industrial do rádio e transformou a fala do brasileiro em produto de exportação – e uma fonte inesgotável de combinações e fusões que fazem a dor e a delícia do compositor popular. Essa língua, nascida de fusões mágicas, carrega uma memória profunda, a memória de todos os ritmos africanos nas palavras pulsantes, todo o discurso do Ocidente na organização do raciocínio na melodia do por­tuguês castiço.

*De boa casta ou de boa raça. Segundo o Dicionário Aulete, “puro, sem mistura, sem elementos descaracterizadores, que é correto segundo as normas próprias a uma língua; genuíno, sem barbarismos ou in‐fluência estrangeira (português castiço, expressão castiça)”.


Qual era a sua paisagem sonora na infância e como ela contribuiu para seu “caipirosmopolitismo”?


Meu pai foi formado pela Rádio Nacional, que ele ouvia desde menino. Conhecia todos os sambas, tudo de Dorival Caymmi, Ary Barroso, Sílvio Caldas. Já minha mãe era valseira, gostava do Johann Strauss. Meus pais tinham um hotel, o Hotel dos Viajantes, em Apucarana, nesta frente de colonização louca que era o Norte do Paraná, para onde vinha gente do mundo inteiro. Testemunhei uma mistura incrível de “gentes”. Lembro dos mascates coreanos, italianos e libaneses vendendo farnel de tecido. Quando o circo chegava à cidade os artistas se instalavam no hotel, ensaiavam no quintal. As conversas eram interessantíssimas. Tinha o “Menino Mais Inteligente do Mundo”. Tinha o “Homem Mais Forte do Mundo", que puxava uma jamanta pelos cabelos. Tinha o Ted Boy Marino, cara a cara, fora do ringue... Parecia um filme de Fellini, mas em pleno sertão paranaense, anos 60. Aprendi a tocar violão com o Clério, meu irmão. Ele não só teve aulas de violão como tocava todo o repertório do Dilermando Reis num regional de choro. Tocava e compunha bossa nova, com aqueles acordes mais sofisticados e difíceis, aquela har­monização de samba que nasceu com a bossa nova, e eu fui aprendendo com ele. Depois, comecei a me exibir para os hóspedes, na sala de espera, depois do jantar [risos]. No hotel a gente via os festivais da Record, os compositores explicando o Brasil, os hóspedes batendo boca pra saber quem era melhor, Chico ou Caetano. 


Como uma canção surge para você? 


A gente sempre pensa a música nas três dimensões: melodia, ritmo e harmonia. Só que acho que existe u­ma quarta dimensão também, que é a “levada”, a forma de organizar essas três dimensões na canção. É a “levada” que nos conduziu a essa diversidade de gêneros absurda, uma riqueza que nunca se esgota na música brasileira. Quando a fala, organizada em canções de três minutos, se torna produto industrial, junto com o rádio, o falar brasileiro ganha dimensão universal. E aqui estamos. Legatários dessa fortuna subjetiva, deitando, rolando, gozando e sofrendo como cançonautas. Explorar todos os gêneros é um ativo do composi­tor brasileiro desde sempre; o desafio é não se repetir. Acho que a simbiose de letra-música e voz vem da fidelidade à fala, à prosódia. As ideias para uma canção vêm dos jeitos mais loucos: um verso que leio, uma frase que ouço, uma canção que a gente gosta e estimula a pesquisa. Às vezes, a música vem primeiro e fica um tempão sem letra. Com a ideia começada, a can­ção toma as rédeas (ou melhor, o timão), e impõe a sua coerência narrativa. Quantas vezes a gente ouve os escritores dizendo que, no processo de escrita, um personagem surge completo, que não há o que fazer a não seguir sua voz? Com a canção acontece a mesma coisa.

 

entrevista
Foto: Acervo Pessoal / Bernardo Pellegrini

Bernardo Pellegrini no estúdio Audiodata, de Pedro Franciscon (Londrina), gravando "Quero Seu Endereço". 1998


Existe música ou canção paranaense, assim como podemos dizer que há uma carioca, baiana, gaúcha ou mineira? Temos uma tradição? Onde ela se encontra e quais os momentos altos que você poderia destacar?


A boa notícia: existe, sim. A má notícia: nenhum de nós sabe que música é essa [risos]. A marca dela é a diversidade, por isso ela é mais difusa e esparramada, pois o Paraná são vários. Não sei exatamente o que nos define, mas uma coisa é certa: nossa música já nasce do rádio, do convívio com todos os gêneros, nos desafiando a novas sínteses. Ela é diferente de uma música de rua, mais corporal, ritualística, e que constitui a música de massa no Brasil desde sempre, a música para dançar. A lista é enorme. Vai desde a banda A Chave, (que depois virou Blindagem e que ouvi ainda adolescente), a Vanguarda Paulista (que nasceu em Londrina, com os incríveis Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção), além de todo aquele movimento dos 70 em torno do Paiol e depois do Tatára, o Cabelo, o Carlos Careqa... Muita gente. Você vai a Foz do Iguaçu e ouve guarânia com violão e harpa. Anda pelo Norte e tem dupla caipira para todo lado, além de uma indústria radiofônica poderosa. Depois, baixa no litoral e tem o fandango, estruturado inclusive com releituras do grupo Fato, que são maravilhosas. Vai a Paranavaí e cruza a história de um grupo como o Gralha Azul, com muitos discos gravados. Outro dia descobri uma plataforma fantástica, a Every Noise at Once, com músicas de 185 países, numa infinidade de gêneros. Se você clicar em “música londrinense”, vai encontrar o trabalho de 60 artistas de Londrina. São grupos, duplas e solos, e olha que muita gente ficou de fora, como a Neuzza Pinheiro, a Simone Mazzer. Acho que uma característica marcante da música paranaense são as lyrics, as letras. São elas que de­finem nossa originalidade. Vem do Paulo Leminski, cancionista. Veja a produção do Thadeu Wojciechowski, Roberto Prado, Marcos Prado, Sérgio Viralobos. Veja o trabalho do Octávio Camargo com a Odisseia, o programa Radiocaos, do Rodrigo Barros e do Samuel Lago, o próprio trabalho da banda Maxixe Machine. Isso sem dizer das letras da Alice Ruiz, que considero a maior letrista em atividade na música brasileira. Sem esquecer, claro, da emergência do hip hop. Hoje, em Londrina, tem sete batalhas de rima, uma por dia, reunindo centenas de compositores, com um protagonismo inédito das mulheres jovens. Aliás, a presença da compositora jovem é uma marca não só do Paraná, mas do Brasil e em todos os gêneros.

 

entrevista
Show do Bando do Cão Sem Dono e Big Band, com Vitor Gorni e convidados. Na foto, da direita para a esquerda: Gilberto de Queiroz (trombone), Vitor Gorni (sax), Marco Scolari (acordeão) e Bernardo Pellegrini (violão e voz). Teatro Marista. Londrina, 2000 | Foto: Acervo Pessoal / Bernardo Pellegrini

 


Se um ET chegasse aqui e fosse guiado apenas pelas pautas jornalísticas, festivais, pelas orientações da “cultura oficial”, pensaria que só existe cultura e literatura em Curitiba, como se a Capital fosse todo o Paraná. Por que há esse tratamento diferenciado, esse distanciamento entre Curitiba e o resto do Estado? O que seria possível fazer para que exista uma visão mais ampla e inteligente do que é produzido aqui, em termos culturais? O que seria possível fazer em termos de melhoria das políticas públicas para a cultura no Paraná?


O grande patrimônio da cultura do Paraná é sua diversidade. Temos os caipiras, os povos originários, os pretos, quilombolas, os brasiguaios, os ribeirinhos, os po­vos do litoral, imigrantes de todos os continentes espa­lhados por todo o território. Uma política de Estado deveria incentivar essa potência, essa riqueza que nos coloca no mapa da cultura de maneira original. No entanto, 80% dos recursos estatais da cultura ficam em Curitiba. Pior, financia-se um sistema cultural caro e antiquado, com seus museus, corpos de baile e orquestra, valorizando as origens brancas e europeias da Capital. O Leminski tratou desse assunto num ensaio em que comparou Curitiba com Salvador. Segundo ele, uma cidade branca que copia e outra, multiétnica, que cria. Se você for resumir o Wilson Martins e as pregações paranistas, ele dizia que Curitiba era o futuro da civilização brasileira porque não tinha preto. E tinha preto, tinha índio e eles estão, aos poucos, ocupando o seu lugar na história. Veja o Waltel Branco, que acaba de ganhar uma biografia linda. Ele é a maior expressão da música do Paraná no Brasil – e era preto. O Nhô Belarmino e Nhá Gabriela, sucesso nacional e que até hoje vivem meio à margem da história oficial de Curitiba. Vivemos décadas de apartheid entre capital e interior do Estado. Por isso eu digo que já foi pior. Quando as eleições para governador foram retomadas na redemocratização e o José Richa elegeu-se o primeiro governador do interior do Paraná, ele formou um secreta­riado cheio de gente de Cascavel, Foz, Londrina, Marin­gá. Ali começou um processo que não acabou até hoje. Nas periferias da Capital e cidades vizinhas tem gente de todo o lugar do Estado, mas os recursos ainda priorizam a Curitiba “vitrine” e os artistas chapa branca. Temos que avançar num projeto de cultura que viabilize grandes processos regionais, trocas e intercâmbios. Com a retomada do Ministério da Cultura, estamos construindo um sistema nacional de cultura, que já viabiliza recursos consideráveis. É um momento de possibilidades.

 

entrevista
Imagens: Acervo Pessoal / Bernardo Pellegrini

 

entrevista
Bernardo em sua casa, em Londrina, durante o lançamento do disco Outros Planos (2018) | Foto: Lucas Liviero

 


Você foi, por duas vezes, Secretário de Cultura de Londrina. Fale um pouco sobre essa sua experiência com elaboração de políticas públicas para a cultura.


Na minha última passagem como Secretário de Cultura (2020-2024) criamos um grupo de secretários de sete das maiores cidades do interior do Estado: Foz do Igua­çu, Toledo, Cascavel, Guarapuava, Maringá, Londrina e Ponta Grossa. Apesar dos problemas comuns, hoje todas elas têm uma Secretaria de Cultura e um projeto de cultura como política pública. Essas conquistas são conquistas recentes. Na minha primeira passagem [2000-2004], criamos o Promic. Foi um dos primeiros sistemas de gestão da cultura como política pública, com a cidade pensada como sistema em redes e circuito expressivo. Em 2023, o programa fez 20 anos, tendo financiado quase 3 mil projetos socioculturais que transformaram Londrina numa grande rede de iniciativas , em todas as linguagens, para todas as idades. Começou com 3% do orçamento da cidade e hoje não che­ga a 1%. Mesmo assim, o modelo foi preservado en­quanto política de Estado atravessou governos, coisa rara no Brasil. Sempre digo e, quando digo, incomodo: o dinheiro público não existe para financiar o artista, estritamente. Ele é para financiar o público, o contribuinte, garantir à população o acesso às linguagens através de oficinas socioculturais em todas as áreas. O acesso à cultura é um direito humano – é o bem supremo. Ele tem que ser viabilizado como política pública, como na Assistência, na Saúde, na Educação, onde o Brasil já tem presença arrojada. É pela cultura que o humano vive e organiza as suas emoções. E a organização das emoções humanas é uma demanda urgente nesse momento de crise iminente. As pessoas precisam viver  suas emoções, mas elas são treinadas para escondê-las, não para revelá-las. As emoções são tudo para nós. Elas constituem a nossa antroposfera, para usar o termo de Humberto Maturana. O planeta Terra é o planeta emoção. Por isso, é preciso conhecê-las, e isso a gente consegue lendo,  assistindo filme, vendo show, mas também cantando e tocando, realizando e interagindo. Isso é compartilhamento, garantido por uma política pública. É o futuro.


Site Oficial
bernardopellegrini.com.br

 

Discografia
Humano Demais (1990)
Dinamite Pura (1994)
Quero Seu Endereço (1998)
Big Bando (2000)
É Isso que Vai Acontecer (2010)
Outros Planos (2018)

 

Onde ver e ouvir Bernardo Pellegrini:
Facebook: bernardopellegrini
Youtube: bernardoeobando
Plataformas: Spotify, Deezer, Napster e Google Play

 

RETRANCA | CANCIONEIRO PEREGRINO

Algumas letras de canções de Bernardo Pellegrini que integram Fêmeo, plaquete editada por Jardel Dias Cavalcanti (Galileu Edições, Londrina, 2023)

 

Dei um Beijo na Boca do Medo

Dei um beijo na boca do medo e saí por aí 
Pela noite tão longa 
Passei por terreiros iluminados 
Na rodoviária o meu mundo caiu 
Peguei na mala uma meia 
Vai fazer frio 
Vai fazer frio 
 
Falei pro cara sentado só do meu lado 
Eu hoje não sofro mais 
Sonhei com a Fortuna nas rodas do carro 
O pai debaixo das saias da Grande Mãe 
Eu não tenho carro eu não tenho grana 
Os anjos me fazem mal 
Me fazem mal 
 
Eu sei que o medo é uma droga pesada 
E na porta dos céus eles pesam as almas dos mortos 
Só me interessa o que sentem os golfinhos 
Nas grandes rotas do mar 
Eu não tenho casa 
Eu não tenho grana 
Vai fazer frio 
Vai fazer frio

Gravada por Bernardo Pellegrini no álbum Dinamite Pura (1994) e por Simone Mazzer no álbum Férias em Videotape (2015), foi tema de abertura da minissérie de TV Me Chama de Bruna (Fox Premium, 2016 – 2020)

 

Caramujo (Inédita)
Para Manoel de Barros

De tudo me sujo
Do azul do azulejo me sujo
Na água da chuva sujo
Na enxurrada
 
De tudo me sujo
Me sujo de tudo o que eu vejo
Sujo do seu beijo sujo
Do desejo mais vagabundo
 
De tudo me sujo
Como todo o mundo me sujo
Tudo atinge meu refúgio
Tudo tinge minha casa de caramujo
 
Luz câmera ação
Às vezes me pego fugindo
Em minha própria direção

 

Parto

Não há mar 
Não há barco 
Mas mesmo assim 
Embarco 
 
Não há mar 
Não há porto 
Não há bilhete de ida 
Não há portão de embarque 
 
Só a dor da partida 
Mas mesmo assim parto 
Só a dor da partida 
Mas mesmo assim parto 
Dor da partida 
Parto 
Dor 
Parto 
 
Cruzar o canal 
Ganhar o mar alto 
A vida vai à deriva 
Num oceano azul cobalto

Gravada por Bernardo Pellegrini no álbum Outros Planos (2018)

 

Anotações Para um Novo Romance

Anotações para um novo romance
Romance, anotações,
Na última cena, cena do adeus, 
cena dos beijos ardentes
Você sai do set 
E o sétimo céu se move suavemente
O quinto elemento, o sexto sentido
O fundo infinito, a luz imanente
O que você sente será filtrado por uma lente
Quero te ver, olhar pra você, falar com você
Sair com você, ficar sem dizer nada
Quero te ver, olhar pra você, falar com você
Sair chegar ficar até dizer chega
Mas sobre nós uma nuvem, um destino atroz 
Mas entre nós uma sombra, uma segunda voz
À sua espreita há sempre um algoz
Um sujeito oculto um vulto
À sua volta há sempre uma névoa
Há sempre um suspeito
O último close, a última pose
A última dose, o último grau
Primeira impressão
Segunda edição
Terceiro sinal
A casa caiu e ponto final

Gravada por Bernardo Pellegrini no álbum Outros Planos (2018)

 

Lunagens

Lunagem na névoa 
Paisagem de um blues 
Seu rosto todo azul 
Auréola de luz ígnea 
No céu 

Dilúvio níveo véu 
Plumagem de trigais 
Estrias azuis 
Um frio de prata nu 
Um fio de prata no breu 
 
Viagem volúvel 
Na sombra dos pastéis 
Fulgor frio de fás 
Marolas febris de íris 
Lilás 
 
Insígnias selvagens 
Nos lábios dos faróis 
Estranhos sinais 
Parábola de imagens     
No ar

Gravada por Bernardo Pellegrini no álbum Humano Demais (Londrina, 1990)

 

Os Dias

Os dias 
Se partem 
Os dias 
Se perdem 
Os dias 
Se repartem 
Os dias 
Se repetem 
Se repetem 
Se repetem 
 
Os dias se repetem 
Mas não se repetem iguais 
Os dias nos refazem 
Os dias nos trazem sinais 
É no viés dos dias 
Que os dias nos revelam mais 
Eu vejo o brilho dos dias 
Nos olhos dos animais 
 
Os dias 
Se partem 
Os dias 
Se perdem 
Os dias 
Se parecem 
Os dias 
Anoitecem 
Amanhecem 
Se parecem

Gravada por Bernardo Pellegrini no álbum Quero Seu Endereço (1990)

 

RETRANCA
Foto: Acervo Pessoal

 

 

Rodrigo Garcia Lopes (Londrina, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor e jornalista. Sua música pode ser ouvida em rgarcialopes.wixsite.com/site. Seus últimos livros são O Enigma das Ondas (Iluminuras, 2020), Poemas Coligidos (1983−2020) (Kotter, 2023) e a Zona e Outros Poemas, de Guillaume Apollinaire (Penguin-Companhia das Letras, Selo Clássicos, 2024).