ENSAIO | Florbela Espanca e a poética do excesso 18/09/2025 - 12:59

Por Bruna Rossato


Ítalo Calvino afirma que "Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer". Revisitar Florbela Espanca é abraçar essa máxima e celebrar a intensidade da experiência humana.

Florbela Espanca (1894 – 1930), poeta portuguesa, fez da desmesura a sua medida. Em seus versos, o amor não é apenas amor, é "doença incurável", "fome insaciável", "fogo a devorar". A dor não é simples ferida, é "luto eterno", "saudade sem nome", "chaga que não cessa". Essa insistência na hipérbole, na repetição enfática e nas imagens grandiosas revela uma sensibilidade que não busca conter-se, mas expandir-se até transbordar. 

Nascida no Alentejo, sul de Portugal, desde cedo habitou territórios de fronteira: filha de um relacionamento extraconjugal, criada entre o reconhecimento afetivo e a negação oficial, cresceu no entremeio de pertença e exclusão. Ainda sobre o solo fronteiriço de uma vida marcada por perdas e reconstruções, cresceu também em meio a uma Portugal que atravessava ventos de mudança: a queda da monarquia, a instabilidade da Primeira República e o choque constante entre tradição e modernidade. Foi nesse terreno de con­tradições que Florbela fez brotar seus sonetos que pul­savam desejo, melancolia e uma afirmação íntima de si.

Além de poeta, Florbela foi pioneira: uma das primeiras mulheres a estudar na Universidade de Lisboa, reivindicou espaços historicamente negados. Sua vida atravessou amores intensos, lutos e melancolia profunda, e, aos 36 anos, suicidou-se, deixando uma obra breve, porém intensa, em que liberdade e vulnerabilidade se misturam. Em seus livros, o anseio por liberdade se mistura à exposição implacável das próprias fragilidades, e a uma sede por experiências que não se deixam domesticar pelas convenções. 

 

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O excesso em sua poética, no entanto, não é descontrole: ele é cálculo estético. Ao escolher o soneto, forma rígida, clássica e simétrica, para abrigar seu turbilhão afetivo, Florbela criou um contraste deliberado. O molde fixo não limita: realça. É a disciplina formal que torna mais aguda a torrente emocional, como se cada quarteto e terceto fosse um relicário minuciosamente talhado para guardar tempestades.

Sua obra recorre a repetições quase litânicas, a comparações que amplificam tudo até o superlativo, a metáforas que erguem monumentos para sentimentos íntimos. O luto, por exemplo, não é apenas registrado: é vestido como traje cotidiano. Mesmo antes de perder o irmão, Apeles, Florbela já cultivava em sua poesia uma "saudade sem objeto", uma falta estrutural. Cada poema torna-se rito: um memorial que, ao mesmo tempo, proclama e mascara a ausência.

Essa estética da intensidade também é política. Ao assumir seus desejos e dores num tempo que exigia silêncio feminino, Florbela recusa limites impostos. Fala de paixão e erotismo sem pudor, deslocando a mulher de musa passiva para voz central. O exagero se torna subversão, recusando domesticar a experiência feminina.

Não é surpresa que tenha sido subestimada como "demasiado emotiva" ou "excessivamente feminina", adjetivos que, na verdade, nomeiam sua força singular. Hoje, sua poesia ecoa internacionalmente, aproximando-se de Sylvia Plath e Judith Teixeira. Fernando Pessoa chamou-a de "alma sonhadora – irmã gémea da minha", reconhecendo sua densidade lírica única.

Neste contexto, se debruçar sobre a obra de Florbela consiste também no ato de perguntar: ainda há espaço, no presente, para uma poética que não teme o excesso? Isso porque ler sua obra é perceber que o excesso não é mero artifício retórico, mas uma afirmação radical de existência. Florbela nos desafia a aceitar que os sentimentos podem ser vastos demais para a medida do cotidiano, e que a intensidade não precisa ser domesticada para ser legítima. Ler seus poemas é, por­tanto, um convite a abraçar o desmesurado, a reconhecer que a plenitude da experiência humana reside justamente naquilo que transborda.

E se, no presente, a literatura parece se inclinar ao contido, ao irônico ou ao conciso, a voz de Florbela per­manece um lembrete: ainda existe espaço para uma poética do excesso. Questionar essa possibilidade é, em última instância, questionar nossa própria capacidade de viver e sentir sem restrições, de permitir que a linguagem seja tão intensa quanto a vida que ela busca traduzir.


Bruna Rossato

Bruna Rossato é escritora e artista visual, bacharel em Marketing pela Universidade Estácio de Sá e editora-chefe na Andrômeda Editora, onde desenvolve projetos que valorizam autoras mulheres, pessoas LGBTQIAP+ e produções experimentais. Seu trabalho transita entre diferentes mídias para comunicar poéticas de identidade, memória e percepção do mundo, explorando também a materialidade, a composição visual e a narrativa gráfica no design editorial.

 

*Ilustrações de Bruna Rossato para a edição do livro Relicário em Verso de Florbela Espanca, com projeto editorial de Ingrid Leandro e prefácio de Luis Sierakowski, pela Andrômeda Editora.

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