ENSAIO | Dalton 100, Nego 80 09/06/2025 - 10:59
Por leticia w. magalhães
ais e risos de mortos queridos
nas vozes do único sobrevivente duma cidade fantas‐
[ma
Curitiba é apenas um assobio com dois dedos na lín‐
[gua
Curitiba foi não é mais
Dalton Trevisan em Curitiba revisitada
Em 2010, Nego Miranda trouxe à tona uma possível Curitiba de Dalton Trevisan em A eterna solidão do vampiro. Ao longo de quatro anos, as 64 imagens que compõem o livro foram realizadas ora a partir dos excertos literários selecionados, ora ao contrário. Mas, como participei deste projeto desde a sua idealização, posso afirmar que nem sempre bons textos rendiam boas fotos e vice-versa. Foi o caso da "Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo", que eu tanto queria, pois toda vez que navego pela João Negrão penso nisso. Tudo bem, a gente confiava
no processo e assim as pesquisas iconográficas e literárias se influenciaram mutuamente, resultando numa união, como disse Luiz Cláudio de Oliveira, em resenha publicada à época, "em que as duas linguagens distintas conversam e conservam-se, tão íntimas quanto independentes".
Sem nunca terem se conhecido cara a cara, embora vizinhos no centro da capital paranaense, o fotógrafo recusava-se veementemente a retratar o autor: "Cercá-lo, como fazem por aí, é uma invasão". E foi assim, de maneira respeitosa, que estabeleceram esse diálogo. Vale ressaltar que nenhuma das imagens foi encenada – o que atesta, além da leitura da obra de Trevisan ao longo de toda vida, uma sabedoria empírica de Miranda, que também conhece profundamente o provincianismo de uma cidade fora do seus cartões-postais. Em depoimento ao jornalista Irinêo Baptista
Netto, relembra como nasceu a ideia: "Durante muito tempo fiz trabalhos documentais. Queria mudar um pouco e pensei em fazer algo sobre Curitiba. E a pessoa que mais conhece Curitiba é o Dalton, ele, na verdade, lê o porão da alma curitibana".
E, embora Nego, que iniciou sua carreira fotográfica através do cinema, dissesse que este processo era semelhante à adaptação de um livro para as telonas – "Existe um texto de base, mas é preciso imaginar um universo visual para o que está escrito" –, no texto de apresentação do referido livro eu circunscrevi esse universo visual criado por ele ao de um pintor: "Sob esse ponto de vista podemos aproximá-lo a um pintor impressionista, mas que não retrata a paisagem, Curitiba, de acordo com as estações e luzes do ano, e sim continua atento ‘às mazelas da estação’".
Luiz Cláudio, por sua vez, foi além: "(...) pintor impressionista, mas, acrescento eu, com o uso dos tons sombrios. Desprendeu-se dos contornos, deu-nos um outro ângulo, um outro olhar. Por vezes, como se fôssemos o olho do Nelsinho ou da corruíra louca ou do próprio Vampiro a espreitar sua presa que, também, somos nós."
Gostei muito desse diálogo "no plágio descarado", para dar a isso um tom vampiresco. Isso porque revisitar este trabalho, 15 anos depois, justo em 2025, quando Nego faria 80 e Dalton 100, me mostrou o quanto esse inventário permanece relevante, ainda que, além dos autores, muitos dos lugares, pessoas e costumes também já não existam mais como representados (e representantes de) outrora.
É nesta toada, portanto, do recompor e das múltiplas leituras que eu – além de parceira laboral, também enteada do Nego Miranda – revejo a vida do "Mi" pelo modo com que organizava seu arquivo. E é tão angustiante quanto curioso perceber como algumas imagens se repetem tantas vezes que, não só dificultam um processo comercial, como também nos abrem novos conjuntos do que, em vida, haviam nos revelado.
E por que eu falo isso neste breve ensaio sobre as "fotos do Vampiro"? Porque a própria literatura de Trevisan é também marcada pelas repetições e reescrituras. Tanto é que ele mesmo ironiza seu processo em Quem tem medo do Vampiro? (2004):
Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro já pode antecipar o último – antes mesmo que o autor. (...)
Mais de oitenta palavras não tem o seu pobre vocabulário. O ritmo da frase, tão monótona quanto o único tema, não é binário nem ternário, simplesmente primário. Reduzida ao sujeito sem objeto, carece até de predicado – todos os predicados.
E, assim, a cidade e sua "sagrada família de barata leprosa com caspa na sobrancelha, rato piolhento com gravata de bolinha, corruíra nanica com dentinho de ouro", Dalton segue fiel à sua obra.
E Nego nesse rastro. O Passeio Público, por exemplo, com sua beleza decadente e fauna diversificada, como as "araras bêbadas aos berros" e "as mocinhas pra cá e pra lá na ronda sempiterna do amor", figuram em inúmeras imagens, em técnicas variadas que vão da máquina digital ao infravermelho, ou ainda, como a da capa, em exposição longa somada a um movimento sutil da câmera. Todas diversas, mas com algo em comum: feitas sob a bruma do amanhecer ou ao anoitecer, sempre emolduradas por neblina, solidão, praças vazias, fachadas em ruínas, becos, inferninhos, sombras e trevas. Nesse sentido, mesmo que os lugares sejam os mesmos dos excertos utilizados, esse trabalho está longe de ser uma ilustração.
E, felizmente, este universo imaginário recriado em fotos também está longe de acabar. Não só essa bonita iniciativa da Biblioteca Pública do Paraná (BPP), entre as várias ações para comemorar o centenário de um dos maiores escritores da nossa língua, como também outra parceria que em breve chegará às mãos dos leitores pela editora Todavia (a qual irá relançar toda a obra de Trevisan) e na biografia do Nego, no prelo, escrita por Ernani Buchmann e ainda sem maiores detalhes.
Vida longa aos vampiros e seus caçadores!
letícia w. magalhães, professora e escritora, formou-se em Letras-Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2007. Desde então começou a dar aulas de Língua Portuguesa e Literatura para adolescentes em diversas escolas em Curitiba, além de ter escrito uma coleção de livros didáticos de Literatura∕ Ensino Médio. Participa de diversos projetos culturais e literários, estreando em 2019 como autora em livros de ficção.