Conto | Prêmio Biblioteca Digital 29/01/2021 - 12:48

Leia três contos do livro Azul, Violeta, de Eduardo Coletto Furlan, segundo colocado no concurso promovido pela BPP e disponível gratuitamente em e-book

azul
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Gratuidade dos dias

Naquela tarde estranha Júlio perguntou, mas antes, muito antes, eu segui pela rua estreita que me levaria até a casa de Ana, era preciso ter certo fôlego para a alcançar, não que corresse, mas as escadarias ao fim de sua estreita rua me pareciam sempre uma espécie de punição ou castigo gratuito dos dias, Ana acabava me convencendo de que dos castigos gratuitos nasciam as melhores filosofias, não discordava, mas pensava em silêncio enquanto admirava seu olhar cansado que talvez eu preferisse não ter filosofia alguma se isso me ajudasse a não precisar enfrentar a gratuidade dos dias, eu sabia que esse pensamento era estúpido, que com certeza havia algo em Ana que eu ainda não tinha conseguido alcançar, um tipo de fumo no olhar que a fazia ver formas inimagináveis nos caminhos. Naquela tarde estranha Júlio perguntou sobre a angústia, mas antes, muito antes, Ana me levou ao seu quarto, depois do café com cigarros e seu olhar sobre o gratuito e as filosofias, depois de minha estupidez, algo não parecia bem, notei em Ana uma espécie de temor, um receio petrificado no dizer ao me puxar pelo braço da cozinha ao corredor até chegar ao seu quarto onde tirou de uma caixa algumas fotos de família, seu Avô muito bem-vestido em um terno preto sob medida com um amigo ao lado, encostados num lindo carro dos anos quarenta, o olhar deles era vago, não era possível saber se tinham noção de que estariam sendo fotografados, até que o som da lâmpada queimando me assustou, vi naquele momento que tudo estava sendo vigiado e registrado, puxei de meu terno o canivete que herdei de meu pai, mas eu sabia que já haviam partido, um pouco antes Júlio me perguntara algo, voltei para poder ouvi-lo novamente, mas já não estava mais ao meu lado, Júlio desaparecera naquela tarde estranha, nunca mais o vi, Ana limpou a foto com as mãos como se rebobinando uma dor, definitivamente algo não estava bem, mas tudo o que eu pensava era na gratuidade dos dias, na rua estreita e sua escadaria enorme, lembrei que Júlio tinha dito algo sobre a angústia, Ana me fez sentar ao seu lado na cama com a caixa de recordações no colo, convenceu-me de que a angústia nascia de um sentimento de responsabilidade, mas eu sabia que estava sendo vigiado, que tudo estava sendo registrado, naquela tarde estranha quando Júlio desapareceu, Ana rebobinou novamente uma dor, mostrou-me outra vez a foto de seu Avô muito elegante com um amigo ao lado, não era possível saber quem havia tirado a foto, o estalo da lâmpada, o sacar de canivetes e vultos irreconhecíveis, manchas negras sobre uma fotografia desgastada, um clarão de mãos idosas cruzadas sobre as pernas, mas antes, muito antes, Júlio perguntou sobre a angústia ao meu lado, encostado comigo em seu carro, antes de desaparecer, antes da lâmpada, antes da escadaria e da gratuidade, antes mesmo de Ana nascer, Júlio perguntou sobre a angústia de esquecer.

 

Um risco vermelho no cinza

Quão frio pode ser este lugar, o viajante na trilha de lama e neve segue em direção ao cume de uma montanha distante que num fumo torrencial desaparece e retorna com violência constante, a solidão do grupo que se forma na rua de asfalto machucado salta, grita, esbraveja e joga pedras contra uma linha bem formada de homens brutos e armados, não pode ficar mais frio do que isso, o viajante na trilha de lama e neve estremece quando tenta olhar para cima, mas o vento forte risca de seu olho um corte que queima e em brumas se esconde com medo, atrás do carro, bem posicionado, é possível ver o invólucro cilíndrico girando e como num raio um grito surdo estoura e faz desorientar toda vida da natureza que corre num misto de raiva e desespero, tropeça numa rocha escondida na neve e cai ao lado de um tronco petrificado, abre os olhos com medo da cegueira e percebe que já consegue ver, mas não há trilha de lama e neve, tudo é confusão quieta, os olhos arregalados, a boca aberta e o som oco distante invade o grupo de estudantes que paralisados observam os homens fardados arrastando o corpo amigo, um risco vermelho no cinza, levanta assustado sem saber onde está, olha em volta e não vê mais o cume distante, já não consegue lembrar por que subia a montanha, num beco ao lado refugia-se o grupo de amigos que em prantos questionam o sentido de tudo aquilo, separam-se e vão embora, nunca mais se veriam, duvidando da própria sanidade o viajante olha para seus pés e vê atônito um horizonte brilhante em tons rosados, cheio de palmeiras com suas frondes emplumadas que pendiam para todos os lados e se aproximavam cada vez mais de suas mãos, até que um solitário pássaro marinho levanta voo e estremece a realidade num grito áspero que ecoa no centro de sua razão, em delírios o poeta debruça-se sobre sua revolta e escreve, já não mais sangrarei nas páginas, já não mais cantarei nos palcos, já não mais escutarei as ordens dos deuses da terra, observa uma última vez o cume dos sonhos, aquela espécie de braço prateado a meio caminho do céu, serra os lábios e o silêncio parece coagular-se, cai como cinza sobre as páginas que escorregam de seus dedos e voam por detrás dos altos troncos, junto a uma atmosfera negra e sombria, desaparecem ao lado da corda retorcida e costurada entre flores brancas, do corpo arrastado pela depressão do asfalto evapora um último lamento, que espírito maltratado poderia ter um sono intranquilo neste solo abençoado?

 

Por quem me trocaram?

Por quem que me trocaram quando estava a meditar por aqui? Na praia à noite tudo é violência e calmaria, esta foi a primeira voz que me atingiu ao despertar lentamente de um sono sem sonhos, não podia saber se vinha do indecifrável deus à frente ou da abominável criatura atrás. A segunda voz me pareceu ser possível observá-la nitidamente, flutuava tão sem direção quanto a primeira, girava de forma inexplicável como se estivesse dançando em provocações, mas de súbito parou, traçou uma linha tênue que se dividiu em outras duas luzes radiantes, tudo na natureza é ser ou vontade de ser — quanta bobagem, pensei com grande clareza, mas aos poucos, enquanto as luzes se desvaneciam, com elas escurecia também minha razão, percebi sem notar que, ao duvidar, eu já estava sendo aquele que duvida, como uma imagem irreal refletida, cristalizada na vontade do tempo. Já não as escuto mais, agora sou apenas confusão quieta, e tudo isso me cansa, pois tudo é muito e nós não sabemos de nada. Adormeço sem dormir à espera dos sinos do luto, da violência dos vivos e da calmaria dos mortos, aos poucos um despertar de razão ilumina minha angústia, penso com grande entusiasmo, que, entre o ser e a vontade de ser, flutua uma hesitação e definitivamente aquele que duvida deve pairar na hesitação, na antecâmara do nascimento, na estranheza de tudo o que existe, de tudo o que é e quer ser, sempre estrangeiro de si, mas meu desassossego não tem fim, pois ainda sinto que a dúvida não pode transcender absolutamente nada, ela apenas parece revestir tudo o que é em incógnitas que no fundo contrastam entre si e dão silhuetas ao incompreensível. Acordo lentamente, sei que despertei, mas ainda durmo, como um sonho que é uma sombra de sonhar, vejo uma terceira voz a dançar inquieta, perco-me duplo de ser eu ou aquela voz, e num grande cansaço danço numa ânsia passiva que me estreita e me acomoda. Agora vejo a voz distante a rodopiar pela abominável criatura atrás, dá duas voltas e mergulha no indecifrável deus à frente, hesita por instantes e salta de súbito em minha direção — atravessaria minha alma como um risco de fogo na noite, me salvaria, mas já não estou mais ali, por quem que me trocaram quando estava a meditar por aqui?

 

Eduardo Coletto Furlan nasceu em Cachoeira do Sul (RS), em 1992. É escritor, artesão e roteirista. Vive no Rio de Janeiro desde 2017, onde trilha caminhos pelas Letras, Antropologia e Cinema de forma independente e institucional através da PUC-Rio.

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