CRÔNICA | Visions of Johanna 04/04/2025 - 11:14

por Juliano Holanda

 

Confundo quando, faz tempo. Eu era adolescente e não havia cinto de segurança nos táxis do Bompreço. Eram fuscas vermelhos com caranguejos e enigmáticas redinhas armadas no vidro frontal. 

Curitiba era longe demais. Acho que era ali colada no Japão. Trens não tocavam trilhos lá. Ônibus tinham alguma redoma plástica onde os androides passavam em modo Kubrick. Perry Rhodan era de lá. Meu pai voltou deslumbrado. 

Ele contava crônicas curitibanas pros amigos e eu via espaçonaves. Ele sentiu o eclodir da civilização lá. Não sei se acreditava mesmo nisso ou foi impressão minha. Curitiba era um lugar alto e as demais pessoas confirmavam, boqueabertamente embasbacadas: Curitiba era um lugar alto, repetiam. E frio.

Porém, era um frio bom o de lá. Europeu, diziam arregalando e franzindo-se. Não havia cavalos nem bois comendo lixo nas ruas de Curitiba. Se restava algum terreno baldio, tinha lhes escapado da memória. O asfalto tinha cheiro de baunilha. 

Bob Dylan gostava de Curitiba. Ele vai sempre, dizia um amigo do meu pai. Outro emendava: parece que ele nasceu lá. Com ênfase aguda no "ceu" do nasceu. Outro afirmava categoricamente: os relógios são adiantados em 45 minutos lá. Curitiba está à frente do resto do país. Uau, outro suspirava. 

Cá da minha infância, Curitiba nem precisava existir sólida. Era só uma vírgula na conversa ou deslumbre onírico de cidade. Frame desfocado de filme na Ci­nemin. 

Só fui chegar em Curitiba anos depois. Talvez eu tenha começado a andar até lá com 12 anos e só cheguei na casa dos trinta. E fui tocar guitarra num trio elé­trico pelas esquinas. Não era fria naquele dia, Curitiba. Na verdade estava muito mais quente que os bancos traseiros do fusca vermelho no Bompreço num domingo de manhã em Casa Caiada. 

Nem era tão alta, podíamos nos olhar nos olhos e gostei dela. Não achei os tais trens flutuantes e algumas pessoas sorriam simpáticas nos cafés.

Antes de ir lá, fui tocar guitarra na Europa e Curitiba não era a Europa. Era Curitiba mesmo. Sem essa de relógios adiantados.

Então jogamos frevo nas ruas, foi como levar meu pai de volta. Ele frevando na cara de Curitiba. Não sei o nome das avenidas por onde descemos, e creio ter me sentido, eu mesmo, o próprio alienígena que via nas histórias do meu pai sobre Curitiba. Explodimos um Vassourinhas multicolor e fomos muito bem recebidos, orquestrando uns sorrisos lá para além dos cafés. 

A tarde foi caindo vertical e alguma neve se insinuou. De fato, o céu era até mais baixo em Curitiba. De cima do trio encostei nele diversas vezes enquanto a lona prateada do tempo ia se desfazendo como o fantasma da eletricidade uivando nos ossos do rosto líquido de Johanna. 

E Bob Dylan, quem diria, justamente nesse dia não estava lá.

 

 

Juliano Holanda, cantor, produtor e compositor pernambucano com mais de 600 músicas gravadas por nomes como Simone, Zélia Duncan, Maria Bethânia, Zeca Baleiro, Chico César, dentre outros. Teve seu livro de poemas Outras Armadilhas Desejáveis publicado pela Maralto em 2024.