CRÔNICA | Cristina Judar 29/11/2021 - 14:42

Literatura sensível ao toque

 

Aplicando a lógica que rege a normatividade dos corpos — imposta pela tríade religião-família-propriedade — à composição dos livros, que, assim como outros produtos, são utilizados para preencher buracos sem fundo conhecidos como Instagram, Facebook e Twitter, vê-se a avidez com que determinadas formas narrativas, em detrimento de outras, são desejadas. Tudo isso para que se adequem às singularidades do ambiente das redes e, somente assim, possam encontrar o seu lugar no mundo, alguma serventia — ou, então, desabem no abismo. Afinal, vivemos tempos de polaridades, de extremismo e de quase nenhuma liberdade, afirmam especialistas.

No que pode ser considerado como um provável agravante da situação, o mesmo se aplica ao que se espera das condutas adotadas por quem escreve: cada vez mais pasteurizadas e palatáveis ao público que desliza os dedos pelas extensões dos dispositivos rumo ao céu ou ao inferno, à esquerda ou à direita, a determinar glórias e ruínas — o centrão configurado como território de quem prefere ficar em cima do muro e/ou se ocupar com neutralidades. “Digital influencers das letras brasileiras”, dirão algumes. “Empreendedories de si mesmes”, professarão outres. “Profissionais do amanhã, antenades às novas tendências do mercado e aos fenômenos de comunicação de massa”, declararão muites.

Quanto a escritos e a condutas, ficam explícitas as seguintes regras: (1) é preciso que o conteúdo produzido seja fácil, rápido, sucinto, digerível. (2) Tem de gerar identificação imediata. (3) Se possível, que faça chorar ou rir em instantes. No máximo, evocar uma emoção mais amena, como a ternura — o tal “quentinho no coração”, como andam digitando por aí.

 

Assim nas páginas dos livros como nas redes

A grande questão aqui tratada não se relaciona à negação daquilo que é irreversível em sua preponderância. Quase todes estamos inserides nas realidades do mundo virtual e, cientes de suas leis e códigos, aprisionamentos e maravilhas, fazemos uso dos recursos oferecidos, nos beneficiando, inclusive, de todas as vantagens oferecidas. Para muites de nós, seria hipócrita demais declarar-se como 100% desvinculades, sem qualquer envolvimento com as teias que nos acariciam e sufocam. Ou então pregar o abandono em massa de todas as redes, o que seria patético e ingênuo e, por razões óbvias, altamente frustrante. Pouquíssimas pessoas, aliás, conseguem alcançar e, principalmente, se manter, em uma posição de total ou quase nenhuma isenção.

Dito isto, o ponto que acredito merecer cuidado diz respeito aos mecanismos de exclusão que regras e ambientes tão particulares em sua composição podem gerar (algo como “ofereço 140 caracteres para que você se expresse livremente”), afetando, de maneira direta, mentes, corações e obras que, por uma infinidade de motivos legítimos, desejam e necessitam caminhar em outras vias. A reflexão aqui sugerida está relacionada ao tanto que as fórmulas e o imediatismo (novo símbolo da eternidade) são vendidos como verdade absoluta e inquestionável em relação à arte de escrever histórias e de apresentar o próprio trabalho. Permanecem, então, o desejo e o grande desafio de, entre as infinitas vozes que se sucedem no acelerado menu-degustação da tela sensível, exercer a consciência sobre a diversidade de temas, de formas, de estruturas e de corpos do texto, algumas das características que seriam comuns em um meio minimamente atento às subjetividades inerentes ao fazer e ao pensar artístico, à elaboração literária, ao posicionamento crítico, à multiplicidade da vida e a espaços muito maiores do que meros cubículos (algoritmos?).

Numa tentativa distante de qualquer garantia, resta a exigência para que nos tornemos estandartes da exposição pessoal (nossos atos improvisados em palcos solúveis) / profetas do capitalismo neoliberal / vozes propagadoras da instantaneidade, para que, se tudo der certo, possamos ser vistes como profissionais de sucesso do nosso tempo. É preciso entender de números, de estratégias de marketing. De ferramentas de persuasão. É fundamental ter know how, expertise, feeling. Tino comercial para galgar o altar de aço escovado do entrepreneurship. Além de uma barriguinha sarada que, se não ajudar, também não atrapalha.

Caso contrário, o que impera em muitos casos é um grande vácuo. Escritories da nova geração, que mal começaram a dar os primeiros passos, já se encontram em crise pelo fato de não conseguirem domar a contento as rédeas de seus perfis nas redes sociais. Há desânimo e obsessão, desencanto, um tanto de fúria e também de fragilidade, talvez como entre aquelus que competem por cargos em corporações.

Muitas vezes, adota-se uma espécie de foco às avessas: neste caso, imagino uma pessoa que pinta telas deixando de se preocupar com as próprias pinceladas para se ater, exclusivamente, aos canapés que serão servidos durante a vernissage.

Talvez seja um exagero conjecturar o surgimento de livros que já contam com a harmonização facial e corporal realizadas, adequadas para os ambientes e o público das redes. Ou então elucubrar, entre cachimbos de fumaças variadas, para qual limbo ou entremundos serão destinades autories, narrativas e livros que não se enquadram nos rígidos critérios das normas que dão corpo e sentido às redes. Conscientes ou não disso tudo, me pergunto se já não estaremos aprisionades a uma tela toda trincada, que há tempos deixou de reagir a qualquer toque. Dois olhos grandes estariam a nos observar, impiedosos.

 

* Neste texto foi utilizada a linguagem neutra de gênero.

 

 

Cristina Judar é de São Paulo, capital. Escreveu o romance Oito do Sete (Reformatório), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e finalista do Prêmio Jabuti do mesmo ano. Lançou o livro de contos Roteiros para uma Vida Curta (Reformatório), que recebeu Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014, além das HQs Lina (Estação Liberdade) e Vermelho, Vivo (Devir Brasil). Seu segundo romance, Elas Marchavam Sob o Sol, foi lançado no primeiro semestre de 2021 pela editora Dublinense.