CRÔNICA | 365 dias com o autor de Catatau 11/08/2025 - 10:29

Por Alberto Villas

 

Conheci Paulo Leminski em meados dos anos 1970 pelo Catatau que chegou pelo correio, muito bem embalado pelo meu primo Marco Aurélio. Vivia um exílio e um rigoroso inverno, mais ou menos uns dez mil quilômetros da sua Curitiba. Toda noite, debaixo das cobertas naquela kitnet perto da Bastilha, eu ia engolindo o Catatau, aos pouquinhos, sempre lendo e relendo, tentando entender a literatura de um cara que nunca tinha ouvido falar, mas sabia que um dia teria futuro.

Confesso que me assustei com as citações de Nicolas d’Autrecourt, René Descartes, Vergez e Huisman, logo nas primeiras páginas. Virando pra seguinte, topei com o latim de Ego sum Renatus Cartesius.

Recebia livros, revistas, discos e recortes de muita gente para aliviar a saudade dos pais, dos amigos, dos vizinhos, do meu sol dourado, das coisas do meu país. Mas confesso que Catatau me pegou, tanto é que foi um dos poucos livros que levei quando o meu primeiro casamento acabou e uma biblioteca enorme ficou para trás.

Eis que, pouco mais de dez anos depois, numa redação bem mequetrefe no luxuoso bairro do Morumbi, chegou a notícia de que Paulo Leminski se juntaria ao nosso time para colocarmos, todas as noites, um telejornal de vanguarda no ar.

Não acreditei muito.

Mas era verdade. A TV Bandeirantes estava montando um time de bambas (não sei se eu era) para estrear o tal jornal que teria a apresentação de Doris Gi­es­se, a musa do momento. Bambas como Fernando Gabeira, Miguel Paiva, Fausto Wolff, Chico Caruso, Wa­shington Novaes, um índio Terena e o Leminski, de Catatau.

No dia seguinte, não é que o Leminski chegou cedo, como se tivesse que bater ponto? Lembro-me bem que ele usava sapatos mocassim sem meias, uma calça americana daquelas com um couro escrito Lee acima do bolso traseiro, uma camisa branca de manga curta, bem largona e meio amassada. Style zero. Os seus óculos eram do tipo Ray Ban e os cabelos meio caídos na testa que ele insistia em jogar para trás.

Nos apresentamos.

Leminski foi contratado para, juntamente comigo, fazermos as cabeças do jornal. Calma! Não é fazer as cabeças das pessoas. Cabeça no jargão jornalístico são os textos escritos para anunciar cada reportagem, lidos pelo apresentador, no caso aqui, apresentadora.
Imagino que o Lema deve ter se assustado com a formação da dupla. Quem era esse cara que veio do Caderno 2 do Estadão para trabalhar ao meu lado?

Mas deu tudo certo.

Durante um ano, ralamos juntos, escrevemos cabeças históricas que foram lidas pela Doris Giesse, que, quem diria, acabou na capa da Veja.

Nesses 365 dias, muitas coisas aconteceram. Histórias hilárias como o dia em que o comentarista de economia, Celso Ming, do jornal da Bandeirantes, disse para o Leminski no meio do corredor:

— Você viu que está usando uma meia diferente da outra?

E ele:

— Estou me lixando, Ming! Eu acordo, me visto no escuro e só na rua vejo como estou.

Mas, na verdade, queria contar apenas uma historinha. O dia em que sentamos pra pensar numa pauta sobre a Bienal do Livro e o Leminski teve a ideia de criar dois personagens e soltar pelas alamedas da Bienal: Jorge Luís Borges, cego, e María Kodama, sua fiel escudeira. O casal iria percorrer a Bienal, ele apalpando os livros e ela explicando cada um.

A matéria foi feita, foi pro ar, um sucesso de público e crítica. Mas, quarenta anos depois, minha memória não foi capaz de me esclarecer se Leminski fez o papel de Borges ou de Kodama. Acho que de Kodama.

Não importa se foi o escritor argentino ou a sua escudeira. Quem estava ali percorrendo corredores era ele, o Leminski.

 

Alberto Villas nasceu em Belo Horizonte (MG) em 1950. Começou o curso de Jornalismo na UFMG, mas formou-se pela Université Sorbonne Nouvelle, em Paris, onde defendeu a tese Dez Anos de Imprensa no Brasil. Na França, trabalhou em praticamente todos os jornais da imprensa alternativa, entre eles Movimento, Opinião, Versus, De Fato. Depois de passar uma década na França, voltou ao Brasil em 1980. No jornal O Estado de S.Paulo criou o Caderno 2, em 1986. Passou pela Folha de S.Paulo e pela revista Vogue. Na TV, trabalhou na Abril Vídeo, Bandeirantes, SBT, TV Manchete e 20 anos na TV Globo, onde foi editor-chefe em São Paulo do Fantástico, por dez anos. Escreveu seis livros, todos eles publicados pela Editora Globo, entre eles O Mundo Acabou, que ficou mais de 10 semanas em todas as listas dos mais vendidos, inclusive da revista Veja. Nos últimos cinco anos, escreveu uma crônica semanal para a revista Carta Capital. Depois de aposentar-se, criou a newsletter diária OSOL, que edita e envia para milhares de leitores. Atualmente está finalizando um livro sobre o jornalista Mauricio Kubrusly e escrevendo O Ano em que Você Nasceu, para a Editora Geração.

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