CONTO | Taylane Cruz 28/02/2023 - 14:17

À sombra das tuas asas
 

Taylane Cruz

 

Quase não sinto o cheiro de colônia infantil, praticamente evaporou de toda a casa. De joelhos, no meio da roda, tentei suportar o flagelo enquanto pousavam as mãos na minha cabeça, o pastor recitando fervorosamente:

“Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou.”

Sobre a minha cabeça muitas mãos, mãos cheias de dedos, tentáculos que se multiplicavam, cordas prestes a me enforcar. De olhos fechados, levava sozinha uma enorme pedra até o cimo do meu coração. O pastor prosseguia, trazia na boca as palavras em fogo, cuspia-as sobre mim. Eu, nua e sozinha, ardia. Amém, amém, o coro à minha volta, as mãos, os tentáculos, eu nua, tentando me cobrir com as mãos frias, glória, glória, glória

“Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo.”

Nua e sozinha, eu me perguntava, com os olhos fechados no umbigo: Como posso vencer o mundo?

“Porque a fé que vocês têm é pequena. Eu asseguro que, se vocês tiverem fé do tamanho de um grão de mostarda, poderão dizer a este monte: 'Vá daqui para lá', e ele irá. Nada será impossível para vocês.”

Minha fé não tem sido suficiente? Meu coração é, então, menor que um grão de mostarda? No meio, de joelhos, eu nua e sozinha. Ali, de olhos bem fechados, tentava sentir, recuperar aquele cheiro de colônia infantil que durante dez anos incensou minha casa. Mas quando chegava perto de sentir o cheiro, a palavra do pastor refulgia, ardendo em meu corpo para não me deixar esmorecer, não me deixar cair sozinha na tentação de sofrer por um perfume infantil. O pastor não perdia o fôlego, de vez em quando, tirava do paletó um lenço e enxugava o pescoço, a testa, seu corpo, febril, estalava.

“O Senhor, o seu Deus, está em seu meio, poderoso para salvar. Ele se regozijará em você; com o seu amor a renovará, ele se regozijará em você com brados de alegria.”

A cada brado do pastor, eu tentava fugir, mas era uma ave implume ao sol do deserto, logo morria.

                                                                     ***

Quando a sessão acabou, seu corpo caiu. Um silêncio de pedra entrou e se instalou em sua carne quebrantada. Um silêncio sem cor, sem cheiro. Um silêncio de nada. E era o nada apenas o que ela conseguia suportar. As orações a haviam deixado zonza, com o estômago cheio, vontade de vomitar. Está ficando insuportável engolir tantas palavras. Até palavras amorosas já não consegue aguentar, descem como bolotas de pão. Nem palavras leves, ternas. Está cheia até a goela. Ficou sem coragem de dizer ao pastor, o pessoal da igreja poderia se chatear, acusá-la de ter a fé mais frágil do que um copo de cristal. Mas durante toda a noite ali ajoelhada no meio daquela roda sentia-se uma boneca de pano sendo espetada ininterruptamente por mil agulhas. O que deseja mesmo é saber como vencer o mundo. 
 

                                                                     ***

Para falar a verdade, o que desejo não é um consolo, não quero me curar. Quero que Deus volte atrás e apague os últimos dias, o caixão branco, minha mão dedilhando as letras na lápide: “PROTEGE-ME COMO À MENINA DOS TEUS OLHOS; ESCONDE-ME À SOMBRA DAS TUAS ASAS”. Isso é o que quero, o sumiço daquela lápide. Quero apenas o cheiro puro de colônia infantil pela casa. Mas isso tenho vergonha de pedir porque o pastor disse que é fraqueza não sustentar a cruz, que todos temos nossa própria cruz e é preciso arrastá-la com dignidade até o fim. Por isso aceitei as sessões de expurgo. O pastor falou: “Vamos exorcizar você, tirar essa dor”. 

                                                                     ***

Caída no meio da sala esperou. Recitava quase sussurrando: “Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará”. Adormeceu dentro das palavras, congelou dentro delas. Quando a casa abriu o sol, a luz entrou e tangeu o silêncio, limpou os restos das orações, algumas palavras estavam espalhadas, outras incrustadas no tapete ou serpenteando pelo chão. Ali enregelada ela foi despertando e, aos poucos, quebrando a casca das palavras dentro das quais congelou. Acordou graças aos estridentes miados. Ainda anestesiada tentou tatear o sofá, percebeu que o silêncio duro e frio havia ido embora. Quando se deu conta, os dois filhotes ali diante dela reclamavam atenção. Ela ainda estava se habituado com eles na casa, haviam sido dados dias antes, de presente para a menina brincar e aprender a cuidar. Agora o que fazer com eles? Saltaram em seu colo, ela trincou, o coração tentando se defender do susto, não suportava mais ser perfurada pelo amor. Eles queriam brincar. Ela então deixou, aninhou-os entre as coxas. Ficou alguns instantes com os filhotes no tapete, eles miúdos, desastrados, recém-chegados à vida. Ela riu. E foi como chicote em seu sexo aquele riso, pois sabia que, mais tarde, à noite, ou mesmo a qualquer hora do dia o silêncio voltaria. Mas por um instante fingiu aguentar a dor, suportar o lancinante afago da vida. Enquanto segurava os filhotes entre as coxas, fingiu não ver a enorme pedra no cimo do morro prestes a rolar e a esmagá-la como todos os dias desde que sua menina, sem ninguém perceber, correu e se atirou daquele precipício numa manhã cristalina de abril.

 

 

 

Taylane Cruz é jornalista e escritora, natural de Aracaju (SE). Publicou Aula de Dança e Outros Contos (2015), A Pele das Coisas (2018), O Sol dos Dias (2020) e Para a Hora do Coração na Mão (2021). É cronista na revista Rubem e membro da Academia de Letras de Aracaju.