CONTO | Rogerio Skylab 17/01/2025 - 11:23

Homem-Urubu

 

I
Gosto de ficar aqui porque tenho, como campo de visão, o lixão lá embaixo. Eu não seria o que sou se não fossem as longas horas ali passadas. Uma antena de te­levisão me é suficiente para ficar aqui, parado. Por detrás, estende-se a cidade grande. Pouco interesse me suscitaria a cidade grande, não fosse ela o manancial, a origem de tudo isso que vejo agora. Uma réstia de sol ilumina o lixão lá embaixo. Uma cor plúmbea de­le se desprende, e posso imaginar quantas cores não foram necessárias para produzir aquela tonalidade.


II
Desde que me sei como sou, é pra lá que volto me­us pensamentos. Só o lixão me interessa. Nada me é mais compatível aos interesses. Percebo também um certo desprezo que meus companheiros me devotam, como se eu não pertencesse à mesma espécie. Esse desprezo é recíproco, ainda que em alguns momentos eu sinta o peso da solidão. Por enquanto, vou ficando por aqui, sem outra perspectiva. É possível que, para muitos, isso seja bem pouco. Mas nada me é mais prazeroso do que ficar aqui, parado.


III
Parece que o tempo vai mudar. Está soprando um vento que vem das cordilheiras. Me é forçoso constatar que quando isso acontece, o tempo fica instável e sujeito a chuvas e trovoadas. Daqui, posso perceber também um cheiro que começa a se propagar em ondas contínuas. Diviso um pedaço de carne em poucos segundos. Me foi dado o poder de enxergar longas dis­tâncias e confesso que estou bem tentado a ir até lá.


IV
Vários começam a dar o sinal. Estão a voar em círculo, cujo diâmetro diminui à medida que se aproximam. Nenhum urubu morre de fome. Em todas as dire­ções, os cheiros denunciam um mundo farto e abun­dante. Posso vê-los cada vez mais perto do alvo. Entre eles, um permanece o guia. Cabe a este iniciar o processo da carnificina. Mas, enquanto não fizer o pouso, nenhum dos demais o fará. Eis que, finalmente, pousa. Imediatamente, os demais o fazem, ainda que permaneçam a certa distância. O urubu é como todas as aves: arisco e desconfiado. Primeiro, ele sonda o terreno, o ambiente em torno, e só quando se certifica de que não há nenhum risco é que inicia o processo. Então, os demais se aproximam e, com as garras fincadas no alvo, dão início à devastação através de vigorosas bicadas. Daqui, me é impossível vislumbrar a vítima, uma vez que meu campo de visão permanece tolhido por uma mancha negra que o recobre. Normalmente, seriam necessários poucos minutos para que se dispersassem, devidamente alimentados. Os urubus são in­dis­pensáveis ao ecossistema: sem sua atividade, a na­tu­reza estaria entregue à deterioração por parte de bac­térias resistentes.


V
Algo estranho aconteceu. É que tudo que lhes narro advém de uma velha tradição. O mundo da natureza não é sujeito às revoluções dos homens. Tudo aqui é movido pelo instinto. Não estamos no campo movediço das ideias. De forma que os urubus, que tolhiam meu campo de visão, só deveriam ser dispersos quando tivessem posto fim àquele mundo feito de nervos, sangue, vísceras, devidamente decompostos. Mas, daqui da antena, percebo que ele mexe os bracinhos e as perninhas e chora compulsivamente. Daqui, tem-se a impressão de que não se trata de algo podre, entregue ao trabalho invisível das bactérias. É uma criança. Os urubus se afastam e permanecem resignados a olhá-la de longe. Nenhum bate em retirada. O urubu é persistente, como se tivesse a ciência de que nada pode persistir ao tempo.


VI
Eu me acostumei a essa vida. Gosto de longas planagens e sei que poucos serão tão hábeis no voo quan­­to os da minha espécie. Às vezes, voo por voar, e não há prazer maior. Percorro longas distâncias e, com fre­quência, atinjo cidades diferentes num breve espaço de tempo. Gosto também de permanecer pousado. Daqui, por exemplo, vejo catedrais, viadutos, longas faixas de rio a cortar a cidade… e talvez tenha aprendido com os meus essa serenidade que me faz tão contemplativo. A noite vem chegando devagarzinho. Uma brisa sopra suave e, quando dei por mim, já amanhecia. Os urubus fazem ronda: permanecem no mesmo lugar da véspera. Eles acompanham, tanto quanto eu, o desenrolar dos acontecimentos.


VII
Ela começa a engatinhar — não sei ao certo o período de tempo que se passou até que viesse a engatinhar. Muitos urubus se acostumaram à sua presença e a tratam agora com naturalidade. Ela põe tudo na boca. No início, tinha muita caganeira. Não sei como se alimentara nos primeiros dias. O contato da boca com os detritos talvez lhe fosse suficiente para manter-se viva. Mas, se antes era ocasional, agora ela própria ia ao encontro deles. E punha tudo na boca. Continua muito magra, e é perturbador o fato de ter sobrevivido. A cor de sua pele é de difícil classificação, mas, em função de se manter exposta às chuvas e tempestades, o encardido é o que melhor lhe adequa. Tenho todos esses dias acompanhado o seu crescimento. É uma pre­sença constante no lixão.


VIII
Todas as noites, o caminhão despeja grande quantidade de lixo, uma fonte contínua de vida. Ela se parece cada vez mais com os urubus. Aprendeu que deve­ria estar onde eles estivessem. Aprendeu com eles mui­tas outras coisas: o seu modo tranquilo, silencioso; a paciência com que se postam nos galhos das árvores, até que lhes seja permitido avançar com suas garras; a solidariedade com que devastam, em pouco tempo, tecidos, carnes, substâncias gelatinosas, até que não res­tem senão ossos. E tudo isso foi lhe dando um aspecto inconfundível de urubu. Até mesmo o intestino passava a ter um metabolismo diferente do dos humanos.


IX
À medida que foi crescendo, esbarrou em uma dificuldade incontornável: aprender a voar. É desalentador vê-lo caindo, espatifando-se ao chão. Todas as su­as tentativas de voo foram malogradas. Como não ti­nha plumas nem asas, os braços exerciam a função. Certa feita, subiu até a copa de uma árvore solitária e repetiu o mesmo gesto de um urubu. Ao se atirar, pôs-se a bater convulsivamente os braços, enquanto era arrastado para baixo pelo peso maior da gravidade. Encontrando o chão, permaneceu ali por longo tempo. Só depois de dois dias recuperou o movimento dos bra­ços e das pernas. Mas nenhuma dessas tentativas malogradas lhe arrefeceu os ânimos. Todos os dias, pu­nha-­se a exercitar o corpo, tendo como único objetivo o voo. Punha-se em atenção redobrada quando seu campo de visão esquadrinhava o voo de um urubu. Não seria como eles se não conseguisse imitá-los. Uma sombra cobriu-lhe a face, temeroso de que nunca conseguisse.


X
Certo dia, estava ele de cócoras a bolinar com uma barata, das muitas que habitavam o lixão, e, antes que a pusesse na boca, percebeu um cheiro forte que vinha do outro lado. Pôde então levantar a cabeça e vislumbrar uma quantidade enorme de urubus pousando em torno. Uma fome que há muito não sentia talvez tenha sido a responsável. O fato é que, batendo os braços e as pernas, empreendeu o seu primeiro voo. Nada era tão emocionante quanto permanecer, como ele o fazia, flutuando no ar. Já estava a certa altura quando se pôs a relembrar os medos que sentira durante o seu apren­dizado. E aquilo fora suficiente para que despencasse ao chão. Então, averiguando o erro, viu que só lhe seria permitido voar se fosse capaz de esquecer qualquer sombra de dúvida, até mesmo de alegria. Deveria estar imune a qualquer pensamento e a qualquer emoção. Então, reiniciou o voo, leve, lépido, e chegou junto aos seus, que, naquele instante, devoravam uma grande carniça de boi.


XI
Estranho a contatos humanos, sempre que dele se aproximavam, punha-se em fuga. Tudo lhe advinha dos urubus. Até mesmo a importância da água descobriu quando, certa tarde, viu um daqueles negros pássaros encostar o bico numa poça acumulada pelas águas da chuva. Ao repetir o movimento, ele descobriu a suavidade da água, o seu frescor, e pôs-se a repetir a operação várias vezes durante o dia.


XII
Mas detinha muitas diferenças que o tornavam desprezado pelo resto. No seu corpo não cresciam penas, muito menos asas. À medida que o tempo passava, seus membros aumentavam de proporção, a ponto de se parecer com um monstro em meio ao bando. Outra diferença notável era sua capacidade de articular o som. Em função disso, tornou-se um exímio imitador de trovoadas, do canto de outros pássaros e, so­bretudo, do avião que passava rente ao lugar em que pousávamos. Muitos de nós eram frequentemente dizimados pelas turbinas dos aviões, que representavam uma preocupação constante.


XIII
Não havia briga entre os membros. Formávamos uma sociedade pacífica, cujo líder era escolhido pelo único critério da antiguidade. Diferentemente do que sucedia em outras sociedades, nas quais o critério da força prevalecia, temo que, se assim fôssemos estruturados, o Homem-Urubu se apossaria à força da sociedade humana.


XIV
Enganam-se os que nos associam à tristeza e ao azar. Os gatos, principalmente os de cor preta, também sofrem essas associações, eivadas de preconceito e ignorância. No nosso caso, a ausência do canto fez aumentar ainda mais o preconceito. Não imaginam que possamos nos extasiar diante de um pôr do sol ou que, quando voamos, percorrendo longas extensões, muitas vezes o fazemos por pura recreação. Lembro-me do seu primeiro voo a longa distância, quando já possuía os segredos que nos faziam os grandes voadores da espécie. Ainda que tivesse aprendido a dominar as emoções, não pôde se abster dos gritos de ale­gria e admiração. Tudo isso fez recair sobre si olhares de desconfiança, contra os quais ele pouco tinha a fazer. Acabou integrando-se ao grupo e é hoje um profundo conhecedor de sua técnica: do acasalamento à estrutura familiar, dos diferentes tipos de cheiro à sua forma pacífica de ser. Tudo isso lhe veio através de u­ma entrega absoluta, cujo teor a ciência não consegue entender.


XV
O lixão exala seus sabores. Retenho meu olhar a cada profusão de cheiros. Sei o quanto é difícil manter a atenção voltada para aquilo que não nos constitui. Todos os artifícios empregados, nesse sentido, são bem-­vindos. Eu mesmo me pus pousado sobre uma antena fictícia para narrar as aventuras do Homem-Urubu, como se ele não fosse eu. As vicissitudes, as fraquezas, o longo calvário até chegar a ser o outro. 
Mas, naquela tarde, ao voar junto com os demais, viu-se tomado de uma estranha alegria. Ninguém poderia acusá-lo de nada. Ele era tudo que as suas condições de vida lhe permitiram. O sol declinava no hori­zon­te e deixava no céu um tom avermelhado. Então, pela primeira vez, emitiu um som agudo, único, que varou uma grande extensão do céu.


 

Rogerio Skylab tem uma sólida trajetória musical e publica livros de gêneros variados. Futebol de cego (poesia), A Melodia Trágica (teoria musical) e A outra volta da outra volta: um estudo sobre Henry James (crítica literária) são alguns já lançados. Homem-Urubu, uma coedição entre Madame Psicose e Kotter Editorial, marca a estreia do autor na ficção.