CONTO | Nara Vidal 30/05/2022 - 15:18

Dia dezenove

 

Naquela noite, antes de ir dormir, verificou se o carregador de celular estava na bolsa. Escondeu no fundo da carteira o teste de gravidez improvável, mas ainda possível já no fim dos quarenta. Ia jogá-lo fora no banheiro do aeroporto. Abriu e fechou a mala que era da filha algumas vezes. Fez planos de ir dormir antes das dez. Precisava descansar. Tinha um amor esperando por ela no fim do voo. 

 

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Naquela noite não dormiu. Já tinha quase um ano de sono quebrado. Preocupações demais. A vida apertando. Parecia a gravata que ainda usava. Ninguém mais usava aquele nó na garganta. 

Deitou-se. Depois de acordado por horas, foi olhar a filha. Dormia com a boquinha aberta. Precisava marcar o otorrino.  Na cozinha um, dois, três comprimidos. Um gole de vinho aberto pro jantar. Desmontou. 

 

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Naquela manhã, acordou antes do filho que vinha dormindo com ela. Ele dormia de boca aberta. Precisava levá-lo ao alergista. Com os olhos ainda incertos, notou que fazia um dia cinza. Ainda bem que ia viajar. Ia mudar de ares. A mesma brincadeira com o filho antes de abrir a cortina. Adivinha se é sol ou nublado? Arrumou o café para todos, menos ela. Ia comer no aeroporto. 

 

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Naquela manhã, acordou antes da casa e do dia. O mesmo cinza de já um ano. Os olhos grudados no teto descascado. Ou arrumava a casa ou saía de férias com família. Nem um, nem outro. A mulher fazia tratamento para engravidar de um homem triste como ele. Custava tentar. Custava pagar aquela esperança. 

 

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Beijou a família, abriu e fechou a mala dez vezes. Antes tomou um banho caprichado. Esperava-lhe um amor no fim do voo. Raspou as pernas, passou creme, perfume, lavou bem os cabelos. Esperava-lhe um amor aos 47 anos. Fechou a mala em definitivo. Recomendações sobre as crianças. Mais beijos e até já. Não podia, mas o que queria mesmo dizer era: mamãe vai lá amar e depois eu volto. Fiquem bem porque eu vou ficar. Espera-me um amor em mais ou menos três horas.

 

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Beija a casa toda. Conferiu como um chocalho as chaves no bolso. Parou em frente ao espelho do corredor, ajeitou aquele nó no pescoço, perfeitamente. Tinha 47 anos e a mulher queria um filho dele. Um homem triste não devia fazer filhos. E não fazia. Não conseguia. Não podia, mas queria dizer à mulher que o filho não vingava por causa da melancolia. E se vingasse sairia dela uma pessoa dolorosa. Bateu a porta imaginando quantas crianças são concebidas sob a tristeza. Em menos de duas horas, esperava-lhe o trabalho.

 

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Naquela tarde voltou pra casa. Perdeu o voo, trens cancelados, não chegou a tempo. Esqueceu-se de jogar for o teste de gravidez. 

 

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Naquela tarde se jogou nos trilhos do trem causando caos nos dias alheios. Nenhum homem triste nasceria dele. 


 

Nara Vidal é mineira e vive na Inglaterra desde 2001. Publicou livros para adultos e crianças, incluindo Sorte (Moinhos, 2018 — 3° lugar no Prêmio Oceanos 2019), Mapas para Desaparecer (Faria e Silva, 2020) e Eva (Todavia, 2022). Também atua como colunista, editora e tradutora. É uma das fundadoras do Brazilian Translation Club.