CONTO | Flavio Jacobsen 29/02/2024 - 15:20

Vurmo de som e fúria

 

— Mas que coisa! Droga.
À primeira tentativa de aparar a barba, o maestro Antônio Magri sentiu a gilete cortante, em algo que parecia ser uma espinha, um cravo – não o seu instrumento de origem, mas o folículo capilar na pele quando se encontra entupido. Não sabia ao certo o que era. Um tanto de sangue escorreu na bochecha. Estancou com a toalha, que se via em mancha avermelhada, um tanto. Foi o suficiente, apesar da marca que ficou, pouca.

O telefone do quarto rompeu ruidoso o terceiro movimento da Quarta Estação - Inverno, de Vivaldi, que Antônio aprecia todas as vezes que se prepara para um concerto. O maestro abaixou o volume do aparelho de som e atendeu. Era Marlene.

— Diga, Marlene.

— Antônio, seu maldito! — ela, a ex-esposa, bastante nervosa.

— O que foi dessa vez?

— Você me enviou a santa, mas não o manto!

— Marlene, não sei se você se recorda, mas o manto de Nossa Senhora foi um artesanato feito por minha mãe. Eu não ia enviá-lo a você. Nem que a vaca tussa. Fique com a estátua. E arrume outro manto, se quiser. Indico uma artesã da feirinha da Benedito Calixto, ou mesmo uma costureira do Municipal…

— Antônio! Você não presta!

— Para com isso! A santa não veio com o manto.

— A santa é minha, seu desgraçado!

— Pois está aí, não está? Chegou bem? Tá quebrada, por acaso? O manto que minha falecida mãe teceu com todo carinho, entretanto, não! Fiquei com ele.

— Seu cínico!

— Marlene, é o seguinte: qualquer coisa que você precisar, fale com o Luiz. Não quero mais seus chorumes. Luiz é bom advogado. Ele resolve.

— Não quero seu dinheiro, seu infame! Graças a deus, eu tenho de sobra! Lembre-se que o pobretão aqui era você. Seu alpinista social de merda!

— Mas eu não disse que você quer dinheiro. Só quer encher o saco, mesmo. Passe bem.

Antônio desligou o telefone, ainda envolto na toalha após o banho e ainda com parte da barba para aparar. Voltou-se ao banheiro do quarto no Hotel Esplendor, na calle Soriano, em Montevideo. No espelho, notou mais uma espinha.

— Mas que coisa! Droga! — repetiu-se.

Aparou como pôde o restante da barba, desgrenhou um tanto os poucos cabelos que lhe restavam, aos 55 anos – um bom maestro tem cabelos desgrenhados. Vestiu seu fraque, o sobretudo por sobre tudo, e desceu de sua suíte no Esplendor para ganhar a rua. Gostava de ficar perto dos teatros onde se apresentava, algumas quadras, para andar em uma espécie de aquecimento rumo ao palco, direto. Chegava invariavelmente faltando um minuto para o início, orquestra postada, batuta em punho. Todos já conheciam o procedimento.

Antônio Magri era a mais nova coqueluche da música erudita mundial. Para além de exuberante regência, também compunha, ao cravo, peças com timbres barrocos, nas quais aplicara uma espécie de “moldura” contemporânea. Desgostava os puristas e alguns críticos sérios, que viam gratuidade em tal mistura. Já tinha a consistência de duas sinfonias e algumas sonatas bastante populares. Sobremaneira, agradava ao público. Uma gente pouco afeita ao erudito que, de repente, começou a lotar salas de teatro por toda a América – inclusive o Brasil, país de origem de Antônio – para vêlo. Magri era um compositor contemporâneo em plena atividade. Uma estrela.

Estava em turnê. Vinha do Colón em Buenos Aires, antes passara pelo Municipal de Santiago e o Nacional La Castellana em Bogotá. Depois iria ao Municipal de São Paulo, onde teria que encontrar invariavelmente Marlene, pela primeira vez depois do divórcio. Desfizera-se da estátua da Virgem que o acompanhara por longo tempo – era herança de Marlene, em verdade – na tarde de terça passada, quando foi aos Correios uruguaios. Era sexta-feira, perto das 21 horas em Montevideo. Quase na hora do concerto. E fazia muito frio.

Dobrou a calle Andes a três quadras do Auditório Nacional Adela Reta, com ingressos esgotados. Cartazes enormes adereçavam as paredes externas do teatro, com a inscrição “Magri”, e uma foto de Antônio com os cabelos desgrenhados como acabara de deixá-los. Adentrou a instituição pela porta lateral na calle Mercedes, já sob os flashes dos fotógrafos. Retirou sua batuta Marsale do bolso interno do sobretudo, e foi rapidamente ao camarim, onde conferiu pequena olhada ao espelho, deixou o casaco e foi-se ao palco. Aplausos. Cumprimentou protocolar o primeiro violinista e a solista do cravo, para sua Segunda Sinfonia, em dó maior. Camila, a cravista. O pivô de todos os problemas de Antônio e – principalmente – Marlene.

Não era uma regência fácil, apesar de composição de sua própria lavra. Antônio teve pouco tempo de ensaio com a sinfônica uruguaia. E, no meio de tudo, a imprensa e as aporrinhações de Marlene. Separados há pouco, ela descobriu enfim o caso de Antônio com a cravista Camila Rodrigues. Portuguesa, de Coimbra, jovem e apaixonada pela obra vanguardista e “pop” de Antônio Magri, que não viu ninguém melhor na função de instrumentista para suas peças movidas ao cravo. Ela contava 30 anos de idade a menos que o artista.

Teve início a sinfonia, ao vivo. O primeiro movimento passou bem. No segundo, justamente quando entrega para Camila todo protagonismo, sentiu mais uma espinha, desta vez visível a seus olhos, pois era em seu nariz, bem na ponta. Abaixava a cabeça para coçá-lo, sempre que podia, tornando a regência um tanto mais frenética que o normal. Suavemente, transpôs com maestria o minueto do terceiro movimento, e entregou com certa pressa o allegro do quarto e derradeiro. Aplausos. E algum sangue no nariz. A plateia em pé, aos gritos – não era um público afeito ao erudito, bom recordar reiteradamente.

Antônio quebrou certo protocolo quando se retirou, abrupto, e não voltou para os cumprimentos finais, com Camila e o primeiro violinista, ante o corpo da sinfônica.

Camila estranhou, mas entregou-se aos aplausos em agradecimentos constantes. Antônio correu ao camarim, observou seu rosto já praticamente repleto de espinhas no espelho, deixando a batuta sobre a penteadeira e saindo apressado, colocando o sobretudo, sentindo o frio da calle Mercedes cortar seu rosto ferido.

Parou rapidamente em um café e telefonou para o restaurante discreto no qual marcara jantar com Camila após o espetáculo. Antônio nunca, em hipótese alguma, carregava um celular consigo em dias de concerto. Anotava seus números próximos e urgentes em pequenos papéis. Cancelou a reserva, pediu para avisar Camila, e pediu desculpas. Seguiu em passo apurado para o hotel. Em frente às vitrines das lojas, seu reflexo o fazia perceber que ia se tornando um monstro de espinhas no rosto, e algumas sangravam, explodindo em sangue e pus.

Ganhou o saguão do Esplendor e mal pôde esperar o elevador. Chegou ao quarto, em desespero. No banheiro, seu rosto estava tomado por furúnculos. E eles explodiam.

Antônio não sabia o que fazer. Resolveu ligar para Marlene, no país vizinho. Sua antiga âncora, seu faz-tudo. Sua secretária pessoal, sua ex-esposa. E, afinal, a dona da santa da qual desfizera-se havia pouco. Podia ser um castigo divino. O telefone tocava. Tocava, as espinhas escorriam na cara de Antônio Magri, que sofria, tentava toalhas e papel higiênico, tirou suas vestes e notou que as espinhas já eram furúnculos pelo corpo todo. Pus e sangue. Antônio gritava.

— Atende, Marlene! Atende, por favor!

Em seu confortável apartamento no centro de São Paulo, na avenida São João, a uma quadra e meia do Municipal, perto da meia-noite da mesma sexta-feira na qual o maestro Antônio Magri se encontrava em agonia e desespero sob o frio do cone sul, Marlene Escobar, a novíssima diretora do distinto teatro paulistano, sua ex-esposa, observava solene a pequena estátua de Nossa Senhora – sem o manto – que acabara de chegar naquela tarde, enviada por Antônio, seu ex-marido. Marlene tinha sobre o colo, como fizesse tricô, o plástico-bolha que envolvera a encomenda, desde o Uruguai. Alheia ao toque do telefone, ouvia a Cavalgada das Valquírias, de Wagner, em volume altíssimo. E apertava bolha por bolha. Aquele velho vício de toda gente mundo afora. Em transe.

— Toma, desgraçado! — ploft — Valei-me, Nossa Senhora! — ploft — Morre, lazarento! — ploft

 

 

Flavio Jacobsen é escritor. Nasceu em Santos, em 1967, e vive em Curitiba desde os nove anos de idade. Autor de Uns Contos no Bolso (Kotter, 2015), trabalha como redator e roteirista. Escreve semanalmente uma coluna para o portal Cultura930.