CONTO | Daniélle Carazzai 28/04/2023 - 12:41

Copos Paradiso

 

Eu nunca estive na Irlanda, mas ganhei de lá um conjunto de copos bojudos lindos, presente de casamento. Sei que não foram eles os culpados por não ter dado certo — o casamento —, mas sei que eles — os copos — foram protagonistas do meu destino. A embalagem era uma caixa branca simples, com divisórias de papelão cinza claro e um tanto de papel de seda branco translúcido. O vidro, bem fino e delicado. Eram copos baixinhos, em formato arredondado. Cada um deles trazia a logomarca de um lugar que eu desconhecia. O que me atraía eram os desenhos, as cores, a forma. A curiosidade sobre os locais nunca me fez mover uma palha para saber onde ficavam, eu gostava de imaginá-los a meu modo. O meu preferido tinha um arco-íris de apenas três tons, laranja, vermelho e amarelo. Abaixo do desenho estava escrito Paradiso Restaurant.

Dificilmente eu servia amigos com esses copos. Tínhamos algumas taças de vinho e copos americanos simples para ocasiões sociais. Nada fino como os copos Paradiso — como apelidei aquele conjunto de seis gordinhos transparentes dentro da sua caixa original quase imaculada. Mas aconteceu de uma vez eu estar atribulada com os preparativos de aniversário e faltarem copos à mesa. Foi nesse momento de distração, nesse piscar de olhos, quando as coisas mais desastrosas podem acontecer, que algum desavisado foi até o armário da cozinha na tentativa de ajudar a servir todo mundo. O meu grau de desespero foi tão grande ao ver cinco pessoas com os paradiso que mordi a língua com força. Creio que meus olhos devem ter quase saltado para fora da cara porque meu marido se levantou de onde estava para perguntar se eu passava bem. Não, eu não passava bem. Parecia que aqueles cinco copos — um ficou intacto na caixa — eram parte do meu corpo. Eu me sentia quase violentada por aqueles dedos cheirando a cigarro, por aquelas salivas e línguas incessantes e, a cada riso ou gesto mais efusivo, minha respiração estancava. Não consegui relaxar até que todos se fossem do apartamento e eu carinhosamente recolhesse os copos um a um para limpá-los e colocá-los novamente em seu berço.

Lavando o último deles, uma espuma branca demais, lisa demais, rápida demais me fez amaldiçoar aquele dia e toda uma coletânea de amigos que eu culpei por anos por ter quebrado o primeiro dos objetos da minha obsessão. Penso hoje que essa disfunção emocional deve ter sido agravada pelo fracasso do meu casamento, pelas tragédias todas que me cortaram como vidro fincado debaixo da unha. Cicatrizes que demoraram a parar de incomodar, coçaram por anos. Na noite do incidente, eu não consegui dormir. Uma espécie de dor no peito com boca seca, um embrulho no estômago com zumbido no ouvido. Levantei e fui até a cozinha lá pelas quatro horas. Sentei no chão e vasculhei a lixeira até encontrar o pobre despedaçado embrulhado em jornal com fita adesiva larga onde se lia CUIDADO, VIDRO. Desembrulhei como se fosse um recém-nascido vindo do berçário pela primeira vez. Pensei em colar, nem que nunca mais fosse possível deslizar um líquido em seu corpo ou tocar minha boca naquela borda macia.

Quando meu filho era pequeno e minha mãe fazia uma faxina — que eu não pedi — na cozinha, reordenando tudo à sua lógica porque simplesmente não compreendia a minha, perdi dois Paradiso ao mesmo tempo. Não soube de nada por muitos dias. Em uma noite daquelas em que se sente amargura, já separada do meu marido, resolvi abrir um vinho e não quis tomar em taça. Eu queria um bojudinho a me fazer companhia, a preencher totalmente a palma da minha mão. Ali estavam três embrulhos pequenos e três copos inteiros. Meu corpo todo soluçou ao ler o bilhete curto da minha mãe se desculpando pelo ocorrido. A cada quebra algum órgão vital dentro de mim também se partia. Sentia um sangue na garganta, aquele gosto de ferro na boca. Era como se eu menstruasse do pescoço para baixo, com cólicas horríveis e sem absorvente de impacto. Eu era simplesmente atravessada por agulhas em todos os meus pontos mais sensíveis.

Mudei de casa algumas vezes e em dado momento estava eu com somente um dos copos intacto, o do arco-íris. Nunca tinha bebido nada nele e, de vez em quando, conversávamos. Diálogos que me alimentavam quando parecia não haver mais ninguém. Entretanto, os cortes que os vidros me causaram por dentro nunca se curaram totalmente. Até que um dia notei que três unhas da minha mão esquerda haviam caído. No lugar, havia um tipo de pele viva, vermelha, mas aparentemente cicatrizada. Uma semana depois, eu não tinha mais unhas, nem as dos pés. Para disfarçar, comecei a usar luvas e inventei uma disfunção dermatológica permanente e contagiosa.

Em agosto de um ano que não me recordo precisamente, abri a caixa, segurei com firmeza meu último copo paradiso e fiz minhas mais secretas confissões ali, nua no meio da sala, de mala pronta, com passagem só de ida para Cork. Ao chegar, passei um tempo olhando para o rio Lee, cantarolando Coisas da Vida, da Rita. Dali eu conseguia ver o restaurante com seu arco-íris de três cores na pequena entrada. Arrisquei a sugestão do chef e um licor. Tirei da bolsa meu bojudinho e pedi que servissem a bebida nele. À ela juntei uma dose de sementes vermelho-escarlate de jequiriti, também conhecida como olhos-de-boneca. Na sopa de couve-flor, que veio como entrada, misturei o vidro em pó de todos os outros copos da coleção e sorvi emocionada aquele líquido quente, imaginando estrelas em um céu de inverno.

 

 

Daniélle Carazzai é jornalista, escritora e artista visual. É autora do livro Aqui Tudo É Pouco (Arte&Letra e Esc. Escola de Escrita, 2022) e coautora de Vida, Histórias da Pandemia e A História das Estórias (Montenegro Produções). Teve contos publicados em antologias do selo Off-Flip e Sesc Paraná e pelo projeto Pé de Amora, da Amora Livros. “Copos Paradiso” faz parte do livro inédito Modos de Mastigação.