ESPECIAL | Fora do eixo 31/05/2021 - 12:26

Editoras apostam no crescente interesse dos leitores por autores de países pouco representados no Brasil

Rodrigo Casarin

Após participar de um programa focado em editoras independentes promovido pela Feira do Livro de Frankfurt, a mais importante do mundo editorial, o olhar de Gustavo Faraon começou a mudar. O ano era 2012 e a conversa com colegas de países como Paquistão, Irã, Guatemala, Ilhas Maurício, Índia e Síria fez o editor perceber: pelo mundo havia uma variedade de línguas e literaturas sobre as quais não conhecia absolutamente nada. “Fiquei muito estupefato de saber quanta coisa incrível existia e que meu olhar estreito e ignorante jamais tinha alcançado”, conta. Profissional do livro, também notou ali uma vereda para o seu negócio.

Enquanto Gustavo perambulava por Frankfurt, uma editora era gestada no Brasil. Foi ainda nos anos 1990 que Laura Di Pietro e sua futura sócia, Ana Cartaxo, começaram a prestar atenção nas culturas do Oriente Médio e do norte da África. Em certo momento, constataram que havia pouco das literaturas dessas regiões por estas bandas. Começaram, então, a se articular para apresentá-las aos brasileiros “de forma autêntica”, sem cair em estereótipos e privilegiando traduções feitas a partir do seu idioma original. “A riqueza das literaturas árabe, turca e persa é inesgotável”, diz Laura.

Ao lado de Ana, Laura é a editora da Tabla, que há cerca de um ano publica títulos como Da Presença da Ausência , do palestino Mahmud Darwich, e Correio Noturno, da libanesa Hoda Barakat. Gustavo, por sua vez, está à frente da Dublinense, casa de autores como a iraniana Bahiyyih Nakjavana, de O Alforje, e a nigeriana Buchi Emecheta, de Cidadã de Segunda Classe e As Alegrias da Maternidade. São exemplos de empresas que se dedicam parcialmente ou exclusivamente à literatura feita em países menos óbvios, que escapam do eixo comumente privilegiado pelo mercado editorial, formado por cantos como Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha e um país ou outro da América Latina.

Não estão sozinhos nessa, claro. Editoras como a Moinhos e a Âyiné também têm em seus catálogos apostas vindas de países pouco representados em nossas livrarias. É desta, por exemplo, Max Havelaar, de Multatuli, clássico da Holanda. A Moinhos, por sua vez, publicou no final de 2020 Damas da Lua, romance de Jokha Alharthi, do Omã, primeira escritora da língua árabe a vencer o International Booker Prize. Já a Estação Liberdade constrói há anos um catálogo bastante respeitável com livros consagrados e destaques recentes da literatura japonesa.

 

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Escritora nigeriana Buchi Emecheta. Foto: Reprodução.

 

Com foco direcionado ao que está à margem do que é comumente tratado pelo mercado editorial brasileiro, a Kapulana desenvolve um trabalho sólido com literaturas do continente africano. Já saíram pela editora obras de Angola, Moçambique, Nigéria, Zimbábue e Quênia, países cuja língua oficial é o português ou o inglês. São títulos como O Bebê é Meu, da nigeriana Oyinkan Braithwaite, Um Dia Vou Escrever Sobre Este Lugar, do queniano Binyavanga Wainaina, e Gungunhana: Ualalapi e As Mulheres do Imperador, do moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa.

“Não podemos falar em África no sentido amplo mas, considerando esse recorte, percebemos que há um interesse crescente pela literatura desses países. No entanto, a oferta de obras de países africanos ainda é pouca, comparada à sua produção, que é variada e imensa”, constata Rosana Morais Weg, diretora editorial da Kapulana, apontando para o quanto há para se explorar quando um editor lida com culturas até então pouco ou nada trabalhadas pelos seus pares.

 

O público

Ao comentar a recepção do público, o discurso de Rosana se conecta com o dos colegas. “O leitor brasileiro passa a ter acesso a uma literatura vasta, ainda pouco conhecida por aqui. Inclusive é preciso trazer e divulgar mais essa literatura para acabar com os estereótipos de que é uma literatura ‘exótica’, ‘obscura’ ou ‘servil’”, diz ela, que ainda ressalta a diversidade de estilos — inerente, claro, a uma diversidade de autores — que marcam essas literaturas.

Gustavo conta que lidar com literaturas que fogem do óbvio acaba sendo um facilitador para o trabalho. “Para Dublinense, difícil é trabalhar um autor comercial norte-americano, porque é igual ao que muitas outras editoras estarão promovendo naquele mesmo período. E a gente não é bom nisso. O que a gente sabe fazer é pescar uma coisa diferente e relevante, mostrar por que ela pode ser interessante, tentar fazer com que o leitor veja um ângulo novo, abrir uma conversa que ainda não está na pauta do dia”, explica. Nesse processo, ajuda ter a clareza de quem é o público com quem a editora quer dialogar. “Quem não tem a cabeça aberta pra ler alguma coisa de uma língua ou cultura diferentes possivelmente também não terá grande disposição pra ir além dos modismos editoriais e literários, que são, bem ou mal, tocados e explorados pelas grandes editoras. Não é esse o nosso lugar.”

 

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Alguns títulos da editora Tabla, responsável por publicar livros árabes.

 

Ao falar sobre a linha editorial da Tabla, Laura lembra que a impressão do público geral de que a cultura árabe é algo distante, alheia à formação de nossa identidade, contrasta com a própria história brasileira. A influência árabe chegou por aqui “com as primeiras caravelas, via portugueses, que estiveram sob influência dessa cultura por, pelo menos, 800 anos. E se seguiu com as ondas migratórias que existem até hoje. O próprio idioma português tem mais de 18 mil verbetes em árabe. Alguns autores árabes importantes foram traduzidos no Brasil, mas de forma pontual”, diz a editora, que vê no trabalho uma via para criar “janelas com vista para algumas questões importantes e talvez ainda inéditas ou pouco fomentadas fora dos círculos acadêmicos”.

 

O desafio da língua

Nessa empreitada há um empecilho importante, como talvez já tenham percebido nas entrelinhas da reportagem: a limitação ou o obstáculo da língua. É Gustavo quem dá um exemplo: sem ter domínio do árabe, mesmo quando olha para países como o Irã, ainda depende do inglês para acessar a literatura que deseja publicar:

“Somos limitados pelas línguas em que podemos ler, e há aqui uma questão política mesmo. A centralidade da língua inglesa se dá inclusive indiretamente. Buchi é uma nigeriana e a Bahiyyih é uma iraniana que escreveram originalmente em inglês, por isso pude lê-las. Em muitos outros casos em que o texto original foi criado em línguas que não leio, o acesso a seus textos só acontece se e quando publicadas em línguas como o inglês, o espanhol, o francês”.

 

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Multatuli é um escritor clássico, considerado o "Machado de Assis holandês". Foto: Reprodução.

 

Na formação da Tabla, criar uma comunidade de colaboradores que fossem familiarizados com a língua e as múltiplas culturas árabes foi uma etapa fundamental, até para que sutilezas como a sonoridade pudessem ser, de alguma forma, transpostas do idioma original para o português. Nesse momento os tradutores ocupam um papel crucial. Safa Jubran tem uma carreira dedicada aos estudos e à tradução do que está fora do batido eixo. Ela que traduziu os já mencionados Damas da Lua e Correio Noturno. Em seu currículo também constam títulos como Tempo de Migrar Para o Norte (Planeta), do sudanês Tayeb Salih, apontado como melhor romance árabe do século 20, e Miramar (Berlendis & Vertecchia), do egípcio Naguib Mahfuz, vencedor do Nobel de 1988.

Ao comentar as dificuldades de verter para o português textos da literatura árabe, Safa falou sobre as decisões que precisa tomar para tentar transpor diferentes culturas para outro idioma. “Um dos maiores desafios é escolher ou ajustar o tempo verbal, pois a língua árabe só reconhece como conjugações dois tempos ou aspectos verbais. Outro desafio se refere à tradução, ou não, dos termos religiosos ou culturalmente marcados. Colocar notas? Adaptar? Enfim, recorrer ou não a paratextos numa tradução. Em se tratando de literatura produzida em várias regiões, com falares e sotaques muitas vezes diferentes, traduzir esses fatos torna-se um desafio grande”.

E o que o público brasileiro ganha ao prestar mais atenção à literatura feita por diferentes culturas árabes — ou diferentes culturas africanas, ou à literatura holandesa, japonesa, ou qualquer outra que o desloque da zona de conforto? A resposta está nas palavras de Safa. “Ele ganha novos horizontes, ganha conhecimento, ganha liberdade, ganha contato com formas novas de expressão, ganha a capacidade de aprender a respeitar o outro, a entendê-lo e admirá-lo. Enfim, ganha o que ganharia lendo qualquer outra literatura estrangeira em sua própria língua”.

 

 

 

            O cara da literatura holandesa

                   Tradutor assume como "missão de vida" divulgar a literatura do país europeu no Brasil
 

Daniel Dago é um exemplo de alguém que se apaixonou por uma literatura que, apesar de europeia, recebe pouca atenção do mercado editorial nacional. Ainda na juventude, começou a estudar muitas línguas. Passou pelo polonês, coreano, finlandês, húngaro… até que notou ter uma queda genuína pelo holandês.

A admiração pela cultura da Holanda veio junto com o aprendizado. “Meu amor pela língua e literatura holandesa foi aumentando à medida que as estudava, e quis me profissionalizar. Eu sempre quis ser tradutor literário. Como falo muitas línguas, pude, literalmente, escolher com qual queria trabalhar”, conta Daniel. Tinha diante de si, então, um vasto terreno para explorar, mas também a necessidade de convencer muita gente de que aquela cultura era mesmo interessante.

Segundo Daniel, dos anos 1940 a maio de 2021, 180 livros da literatura holandesa foram publicados no Brasil, sendo aproximadamente a metade de infantil. “Quando divulguei o resultado nas redes sociais, alguns acharam bastante, outros acharam pouco. Não temos nenhuma peça teatral publicada. Não temos nenhum livro de contos escrito por um único contista publicado, temos apenas antologias. Temos apenas um livro de poesia escrito por um único poeta publicado”, enumera o tradutor para falar das muitas lacunas.

Dentre os disponíveis no país, há autores consagrados e outros que ganharam uma boa atenção recente dos leitores, como Arnon Grunberg e Cees Nooteboom. No entanto, olhar para a Holanda e pensar que ambos dão conta de resumir a literatura contemporânea do país seria o mesmo que, por lá, dizerem que a “literatura brasileira se resume a Ignácio de Loyola Brandão e Michel Laub”, compara Daniel, “e sabemos que isso não é verdade”.

No papel de tradutor, verteu para o português títulos como Eva, de Carry van Bruggen, que compara a Virginia Woolf, O Amigo Perdido, de Hella Haasse, tida como a principal escritora holandesa do século 20, e o já mencionado Max Havelaar. Além disso, organizou antologias e atua como um grande divulgador daquela cultura por aqui. Já organizou eventos literários, atracou o Barco Holandês na Flip e criou um curso de curta duração chamado “Panorama da Literatura Holandesa”.

Para o futuro próximo, independentemente de ser ou não ele o tradutor por trás dos títulos, empolga-se com uma série de livros holandeses que começarão a ser publicados pela novata Rua do Sabão e com a coleção de teatro holandês que sairá pela Cobogó. Também planeja se aprofundar nos estudos acadêmicos e sonha em implementar a graduação em holandês na Universidade de São Paulo. “Tomei como missão da minha vida profissional divulgar a literatura holandesa por aqui, em todas as áreas, e tenho tentado preencher essas lacunas. Não faço tudo sozinho, claro, surgiram tradutores de holandês e cada um tem feito a sua parte, à sua maneira. Mas não adianta eu e meus amigos traduzirmos, morrermos, e tudo o que fizermos não ter continuidade”.

 

Rodrigo Casarin é jornalista. Mantém o blog e podcast Página Cinco, no UOL.