Sonetos e canções 23/01/2018 - 11:40
Ruy Espinheira Filho
Soneto de uma presença
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Augusto dos Anjos em “Budismo moderno”.
Eis súbito sentimento
que se abre em mim e me afeta
como o urubu que pousou
na sorte de um grande poeta.
Sinistra presença vinda
de abismos, como uma seta
na alma, como o urubu
sobre a sorte do poeta.
Dor, angústia, assombração!
Inverno no coração!
A vida em noite completa...
Vento mau que em mim baixou,
como o urubu que pousou
na sorte de um grande poeta.
Canção da mais longa história de amor
Na estrela do final da madrugada
esperava por ele a Grande Amada.
E ele se foi, de alma iluminada,
no bergantim primeiro da alvorada.
Que naufragou, perdido da apagada
estrela do final da madrugada...
Soneto de certa lembrança
O que lembro de ti era uma vez.
Como um rio, um jardim, uma cidade,
luares pungentes e a suavidade
de manhãs semelhantes à tua tez
de rosto infante. Tudo o que se fez
(tão diferente desta opacidade),
vinha sempre em serena claridade.
(Como Musa baixando em mim, talvez.)
O que lembro de ti é como um rio,
sonhos, jardim, manhãs, mas como ainda
uma voz a chorar a linda Inês...
Depois, apenas, como um gesto frio,
última cor do céu na tarde finda...
Assim lembro de ti. E era uma vez.
Brindisi
Chegamos a uma Brindisi deserta,
hora sagrada da sesta.
Setembro de 2010.
Não dormiremos, vamos pegar um navio
para a Grécia.
Tivéssemos chegado um pouco antes, receberíamos
Publius Vergilius Maro,
que na frota de Augusto vinha
de Atenas.
Sim, grande pena o nosso atraso.
Imperdoável.
A sesta fora certamente respeitada,
mas, ao avançar da tarde,
delírio de todos para receber
o imperador.
E então ninguém dormiu mais
por muito tempo.
Publius Vergilius Maro, já noite,
debateu-se em sonhos febris.
Sobretudo, havia o poema
na alma...
Chegando um pouco antes, sim,
o teríamos recebido
e homenageado.
Mas pelo menos estávamos indo
à Atenas que ele tanto amava,
a última cidade de que partira, como se partisse
da vida.
Então, finalmente, embarcamos.
E, como os atrasos são apenas
dos mortais,
eis que Publius Vergilius Maro
seguia conosco,
com o seu Destino de estar sempre presente
e cintilante, após
descer,
depois dos sonhos febris,
a um plácido e profundo sono rumo
aos deuses,
naquele festivo setembro de
19 a.C.
Canção encantada
A canção que te escrevi
está num livro encantada.
Nos versos que te escrevi,
recolhida a melodia
que um dia roubei de ti,
nessa página fechada
onde rebrilha o que vi
em teus olhos de alvorada
de que nunca me perdi,
é que ela espera, encantada.
A canção de ti roubada,
sempre a ouvirei, como a ouvi
no momento em que te vi,
com toda a alma alumbrada.
Sim, num livro que escrevi
jaz essa Canção da Amada,
aguardando que a libertes
com a tua alma encantada...
Uma canção de chegada
Para Cida Barral, que me presenteou com
uma bela figura do mais ilustre dos fidalgos.
Este é o resumo: alguns sonhos dispersos
no pó da estrada e em pétalas de versos.
E eis Dom Quixote, que ainda mais alinha
o nobre porte sobre a escrivaninha
(onde chegou por artes de uma amiga
capaz de feitos de magia antiga),
e então, solene, diz que a vida é vento
que sopra sobre nós por um momento;
só nos consola, pois nada perdura,
beber do vinho da Alta Loucura.
Grande Quixote. A tão sábia lição
traz acalanto ao meu coração.
Foi-se a tristeza. Bebo o vinho bom
da Alta Loucura e me ilumino com
a biblioteca que ainda me lê
e esta velha saudade de você.
Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista, professor, cronista e jornalista. Tem mais 20 livros publicados, entre eles As sombras luminosas, Elegia de agosto, Memória da chuva, Sob o céu de Samarcanda e Um rio corre na Lua.