Vale tudo 11/06/2019 - 10:00

O tema da homossexualidade sempre esteve presente na história da música popular brasileira — das referências sutis dos primórdios à militância identitária atual

Rodrigo Faour

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   Ilustrações: Isadora Machado

Nos dias de hoje, há pelo menos três artistas da nossa música assumidamente homossexuais (e cheios de orgulho) que conseguiram projeção nacional — mesmo com toda a massificação de gêneros como o sertanejo (universitário) e o funk (agora mais paulista que carioca). O pernambucano Johnny Hooker escreve letras de homem para homem e beija na boca seus amantes nos videoclipes. Liniker é uma trans que canta canções de amor. E e o mais famoso de todos, Pabllo Vittar, é uma drag queen de sorriso cativante, voz estridente e vestes exóticas que chegou ao mainstream de forma rara mesmo em nível planetário. Isto só para citar os de maior visibilidade.

O fato é que hoje há gays, lésbicas ou trans assumindo suas escolhas e fazendo disso uma bandeira no pop, na MPB, no rap, no funk carioca, etc. Mesmo com todo o refluxo conservador que toma o Brasil (e o mundo) nos últimos anos, é impossível ficar indiferente às transformações sociais em termos de um comportamento sexual que há pouco mais de duas décadas era o tabu dos tabus, um assunto a ser evitado e repreendido.

Mas a música brasileira, como excelente cronista de costumes, registra esta evolução desde sempre. Há registros de canções de teor homossexual já nos primórdios da discografia nacional. Começando por “O bonequinho”, de autor desconhecido, que teve duas gravações: a ator Lino, em 1903, seguida pela versão de Bahiano, maior cantor de seu tempo. É possivelmente a primeira referência do gênero no Brasil. Falava muito sutilmente de um rapaz que tinha uma bunda bem feitinha.

O carioca Noel Rosa, em 1932, fazia uma rara referência positiva ao legendário malandro da Lapa, Madame Satã, em seu “Mulato bamba”, cantado por Mário Reis. O baiano Assis Valente, seu colega de geração, disfarçava sua homossexualidade em diversos sambas e marchas com títulos sugestivos, como “Gosto mais do outro lado”, e letras um tanto bandeirosas (“E o mundo não se acabou”, “Uva de caminhão” e “O meu não dá”). Mas isso não muito reparado na época, pois as músicas eram cantadas por conjuntos vocais como o Bando da Lua ou cantoras do porte de Carmen Miranda e Dircinha Batista.

A censura ferrenha a esse tipo de comportamento fez com que até os anos 1960 esse tema fosse muito pouco difundido em nossas letras e mesmo artistas que tinham vivência notoriamente homossexual jamais saíssem do armário. Foi o caso de cantoras como Aracy de Almeida e de outras que também eram compositoras (todas cariocas), como Dora Lopes e Linda Rodrigues — as duas últimas autoras ou intérpretes de algumas das primeiras pérolas do gênero, como “Companheiras da noite”, gravada pela segunda, que só entendia quem era “entendido”, como se dizia naquele tempo. Dora é coautora de “Ambiente diferente”, samba-canção registrado por um enrustidíssimo Cauby Peixoto em 1961. Apesar dos trejeitos delicados, ele só se apresentava de terno, como todos os cantores de seu tempo, e era ídolo das adolescentes. Naquela época, não havia como ser de outra forma.

O famoso Baile dos Enxutos, no Teatro Recreio, da Praça Tiradentes, centro do Rio, pioneiro evento de salão em que os homens se vestiam de mulher, foi registrado numa marcha de Wilson Batista (e Jorge de Castro), “Todo vedete”, em gravação de Nelson Gonçalves no carnaval de 1956, mas foi logo censurada. Três anos depois, Joel de Almeida em dupla com a referida Aracy, conseguiu liberar outra marchinha, “Vai ver que é”, que caçoava de um homem afeminado: “Se veste de baiana pra fingir que é mulher/ Vai ver que é, vai ver que é/ No baile do teatro, ele diz que é Salomé/ Vai ver que é, vai ver que é/ Cuidado minha gente com esse tipo de rapaz/ Diz que é gente de bem, ninguém sabe o que ele é/ Se perde o lotação, nervosinho bate o pé/ Vai ver que é, vai ver que é”. Aliás, assim como na dramaturgia brasileira, esta era a tônica deste tipo de personagem até muito pouco tempo. Dois anos depois, veio o “amor discreto” de Johnny Alf, em “Ilusão à toa”. Tudo escondido.

 

TRANSFORMISMO
Os anos 1960 avançavam e começaram os primeiros sinais de revolução comportamental no mundo. Foi quando estrearam as “divinas divas” Rogéria, Valéria e um grupo de travestis cariocas, levando à cena o espetáculo International set. Fez tanto sucesso em 1964 que motivou o compositor João Roberto Kelly e o roteirista Mário Meira Guimarães a escreverem Les girls, um marco no show de transformismo no país. Valéria chegou a editar um compacto com duas faixas do espetáculo, em 1965, mesmo ano em que Maria Bethânia estreava completamente andrógina, cantando o petardo político “Carcará”, no show Opinião. Com a ditadura recém-instaurada no país, tudo devia ser apenas sugerido. Discurso a favor da causa? Sair do armário? Nem pensar.

Foi na década seguinte que apareceu a primeira grande canção sensual evocando o amor de duas mulheres, “Bárbara”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, composta para a censuradíssima peça Calabar — O elogio da traição: “Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas/ E mergulhar no poço escuro de nós duas”. A famosa gravação de Chico e Caetano ao vivo, de 1972, foi lançada, mas com trechos da letra cortados. A seguir, paralelamente, surgiam no teatro os Dzi Croquettes e na música os Secos & Molhados. Este último, com suas caras pintadas, trapos coloridos e a voz feminina de Ney Matogrosso, foi um estouro comercial que vendeu mais de 1 milhão de cópias, a bordo de hits como “O vira” (“Vira, vira vira, homem/ Vira, vira/ Vira, vira lobisomem”), de João Ricardo, vocalista-compositor do grupo, e Luli (depois Luhli), que no final da década faria uma parceria com Lucina, também transgredindo ao viver um relação poliamorosa com um fotógrafo, e depois da morte deste, vivendo juntas. Mais ou menos na mesma época, surgiu Maria Alcina, uma cantora andrógina que parecia um travesti (com sua voz masculina, venceu um festival com “Fio Maravilha”), e seu colega Edy Star, um performer-cantor que ousou dizer numa entrevista em 1974, na revista Fatos e Fotos, que “teve coragem de assumir o que era”, sem dizer a palavra. Um pioneiro.

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Enquanto isso, Agnaldo Timóteo gravava ótimas canções disfarçadamente homoeróticas em seus discos brega-românticos dos anos 1970 (“Amor proibido”, de Clayton e Dora Lopes, e depois uma trilogia composta por ele: “A galeria do amor”, em referência à famosa galeria Alaska de Copacabana, point de gays e travestis, “Perdido na noite” e “Eu, pecador”), cujo público mais “careta” nem deveria desconfiar de suas reais motivações. Leci Brandão escancarou ainda mais a porta, sendo a primeira a ter coragem de compor canções panfletárias a respeito do tema, como “As pessoas e eles” (“As pessoas olham pra eles com ar de reprovação”), “Chantagem” e o grande sucesso “Ombro amigo” (“Você vive se escondendo/ Sempre respondendo/ Com certo temor/ Eu sei que as pessoas lhe agridem/ E até mesmo proíbem/ Sua forma de amor/ E você tem que ir pra boate/ Pra bater um papo ou desabafar...”). Muito por conta de seu atrevimento, ficou cinco anos sem gravadora, até voltar em 1985 com um estilo de samba mais popular.

Finalmente na virada dos anos 1970 para os 80, com o arrefecimento da censura e um boom de abertura comportamental na sociedade, uma série de temas tabus começam a ser questionados e a nossa música foi invadida por uma leva de canções alegres, sensuais e bem-humoradas. A turma gay não ficou por baixo, ao contrário. Em 1979, Jorge Ben (Jor) chamou Caetano para gravarem “Ive Brussel”, que parecia uma cantada gay: “Você com essa mania sensual/ De sentir e me olhar”, dizia Ben (Jor), ao que o baiano respondia: “Você com esse seu jeito contagiante/ Fiel e sutil de lutar”. E os dois: “Não sei, não, assim você acaba me conquistando/ Não sei, não, assim eu acabo me entregando”. E Gilberto Gil fez uma elegia a seu lado feminino: “Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria”.

Ney Matogrosso, cada vez mais debochado, divertido e rebolativo, mas sempre íntegro na sua missão de desconstruir os limites do masculino e do feminino, pintava e bordava a cada show e disco. Em 1981, cantou “Maria diz que eu sou homem com H, e como sou!”, num forró do paraibano Antonio Barros, que virou seu maior sucesso. A seguir, Chacrinha veio com a marchinha “Maria Sapatão”, de João Roberto Kelly, dizendo que o “sapatão estava na moda”, que “o mundo aplaudiu”, que era “um barato, um sucesso, dentro e fora do Brasil”. Enquanto isso, Bezerra da Silva caçoava (“Não sei, não, minha sogra parece sapatão”) e o casal Eduardo Araújo e Silvinha lançava um petardo homofóbico, “Sapataria progresso”, que felizmente ficou no ostracismo, abafada por outras letras muito mais positivas sobre o tema, como o samba “A nível de”, de João Bosco e Aldir Blanc — sobre uma troca de casais, que de héteros passavam a gays e cujas respectivas mulheres, já juntas, abriam um restaurante natural “cuja proposta é cada um comer o que gosta”.

O mestre da soul music Tim Maia e a então novata Sandra (de) Sá atacaram de “Vale tudo”, cuja letra, a princípio, avisava que no baile só valia “dançar homem com homem e mulher com mulher”, ao que o síndico à certa altura alertava: “Cuidado com a nova ordem! Agora liberou geral! Agora, vale tudo”. No mesmo ano de 1983, Pepeu Gomes, com cabelos coloridos, casado com Baby Consuelo (do Brasil) e pai de uma penca de filhos, explodiu com o refrão “Ser um homem feminino/ Não fere o meu lado masculino” — outro escândalo que todo mundo adorou. Marina (Lima) pediu emprestado a Erasmo seu “Mesmo que seja eu/ Um homem pra chamar de seu”, enquanto o Tremendão fez um polêmico clipe com Roberta Close (da canção “Close”) e Simone apareceu em público com a atriz Ísis de Oliveira e cantando o rock “Água na boca”, de Tunai e Abel Silva (“Por ela eu vivo com esse tesão/ Por ela dispara o meu coração”).

Nesse meio tempo, Angela Ro Ro escancarava sua sexualidade em seus deliciosos shows, com composições dedicadas às suas musas e histórias do underground carioca, ao mesmo tempo que frequentava as páginas policiais dos jornais graças às suas bebedeiras homéricas e paixões turbulentas, inclusive com a cantora Zizi Possi, cuja separação gerou em 1981 o primeiro grande escândalo gay da música brasileira. Até o vanguardista Premê escancarou um romance gay na canção “Rubens”, de Mário Manga, em 1986.

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A EPIDEMIA
Tudo ia bem até que o malfadado vírus da Aids foi matando uma série de pessoas, especialmente do meio artístico e homossexual, inclusive os maiores poetas do rock brasileiro dos anos 1980, Cazuza e Renato Russo. O primeiro, ao assumir publicamente a doença, cuja decadência física foi acompanhada pela população com dor no coração, ajudou o País a encarar de frente a epidemia e a questão do sexo entre homens sem tabus. Ambos só assumiram a homossexualidade bem perto de morrerem. Renato, em meados dos anos 1990, ainda chegou a gravar um disco só de canções internacionais de alusão à mesma, The Stonewall celebration concert.

Foi somente na primeira metade da década seguinte que o movimento gay brasileiro ganhou status nacional e virou gente grande. A sigla GLS começou a ser difundida por volta de 1994, quando começaram a haver publicações “não underground” para a categoria, como as revistas Sui Generis e G Magazine. Três anos depois, as paradas gays deixavam de ter meia dúzia de gatos pingados e viravam um evento capaz de levar milhões à Avenida Paulista, servindo de exemplo a dezenas de outras iniciativas realizadas Brasil afora. Na música, Cássia Eller e Edson Cordeiro saíram do armário e tocaram suas carreiras naturalmente, sem preconceito de fãs de várias orientações sexuais. E Carlinhos Brown cantou que “A namorada tem namorada”.

Finalmente, na virada para o século XXI, surge Ana Carolina, cantora e compositora abertamente lésbica que passou a levar multidões a seus shows, inclusive de garotas assumidas. Era um prenúncio de uma época um pouco mais liberada, algo que a partir da popularização das redes sociais passou a ser vivenciada pela população com mais naturalidade. Artistas que começaram antes dela, como Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, Leila Pinheiro e Mart’nália, ou depois, como Isabela Taviani e Maria Gadú, passaram a falar cada vez mais naturalmente do assunto, vez por outra também gravando composições do gênero. Com o mercado da música já saturado pela massificação, as canções mais abertas de amor e sexo, incluindo a bandeira gay, ficaram restritas ao mercado independente, conseguindo eventualmente consagrar algumas figuras, como as citadas no início deste artigo, e outras como o duo As Bahias e a Cozinha Mineira, formado por duas trans, que ganhou dois troféus no Prêmio da Música Brasileira, em 2018, na categoria Canção Popular. Todas elas vêm levantando esta bandeira, alinhadas às pautas identitárias dos movimentos sociais do nosso tempo.

Se ainda hoje grandes artistas lançados entre os anos 1950 e 70 se mantêm muito discretos acerca de seus romances e raramente gravam canções abertamente gays, as novas gerações parecem encarar isto com maior tranquilidade, ainda que o hit parade massificado continue pregando as velhas abobrinhas do amor romântico idealizado e com muito pouca ousadia poética, temática e política, como se o mundo ainda fosse só dos héteros. Às vezes, alguns desses artistas até tentam fazer média com o público LGBT e, não raro, caem em contradição. Por outro lado, nem todos os artistas gays contemporâneos do país ousam efetivamente em suas letras ou no conceito de seus trabalhos, caindo num clichê disfarçado de transgressão. Muitas vezes, a coisa fica apenas na atitude do palco ou no discurso um tanto padronizado das entrevistas. Ainda assim, é preciso reconhecer: estamos melhores que antes.

 

Rodrigo Faour é jornalista, historiador de música brasileira e autor de livros como História sexual da MPB — A evolução do amor e do sexo na canção brasileira.

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