Os banquetes de Dona Helena 11/06/2019 - 06:40
Claudia Nina
Uma ficção para a minha vó, Helena.
In memoriam.
Ir à feira era tão importante quanto ir à missa. O peixe ela comprava nas barracas de sempre, 40 anos de Rio de Janeiro e todas as sextas ia religiosamente investigar o brilho no olho do bicho. Deixava temperando. Sábado era dia de banquete. Além do assado com cabeça e tudo, tinha torta de siri, pirão, chester, farofa, maionese e bolo de tapioca, aquele que quebrou o dente da neta. Os convidados minguavam de ano em ano, cada filho tinha uma desculpa original. O banquete, porém, continuava o mesmo: além do assado com cabeça e tudo, tinha torta de siri, pirão, chester, farofa, maionese e bolo de tapioca, aquele que quebrou o dente da neta. Não diminuía nenhum item do cardápio. As sobras ela congelava. À medida que o tempo passava, o freezer ficou pequeno para tanta comida que restava. Dona Helena, resistente, fazia o banquete.
Ficava dias imensos preparando tudo, desde a manhã na feira, o ritual lento que ia do peixe aos ovos, dos legumes às frutas da estação. Conhecia cada pedaço daquele mundo, o piso da feira era seu segundo chão. Não tinha pressa. Era um tempo calmo e necessário. Ao fim de três horas, as mãos mal davam conta das sacolas, mas ela carregava o peso sozinha até despencá-lo em cima da mesa, esbaforida e feliz, como gostava da cozinha grande e amarela, onde vivia grande parte dos seus dias.
No primeiro ano em que o banquete foi “inaugurado”, todos os seis filhos, com seus respectivos agregados, compareceram. Devastavam a terra farta da mesa pronta. Iam embora gordos e alegres, deixando o rastro da destruição nos pratos imundos.
Desde sempre, Dona Helena passava a madrugada de sábado limpando a casa. Domingo ia à missa rezar para o marido longínquo e agradecer por mais um banquete, a comida que unia os seus pedaços, fazia aparecer os que talvez sumissem rapidamente não fossem guiados pelo paladar. No íntimo, sabia disso e caprichava. A tristeza maior foi que, com o tempo, nem o exagerado cardápio funcionou — mesmo assim, Dona Helena, resistente, fazia o banquete.
Aos poucos, alguns problemas de saúde dificultaram a tarefa. Os dedos foram os primeiros a atrofiarem. As mãos não acertavam o corte das cebolas como antes. Dona Helena não aceitava ajuda nem da Eloá, a amiga de infância que viera também do Maranhão; não prestava para a cozinha, não tinha tato, deixava cair as travessas, salgava demais o pirão. A amiga participava dos banquetes desde o começo, era uma sozinha no mundo. Dona Helena se orgulhava da família, mas percebia seu destino estava cada vez mais parecido com o da amiga. O freezer inchado de sobras.
Dona Helena, resistente, fazia o banquete.
Um dia acordou com o coração opresso. Uma dor estranha e forte. Precisou chamar o médico, bem que tentou se levantar e descer para pegar um ônibus. Mas não conseguiu. O diagnóstico severo indicava a colocação de um marca-passo. Foi levada para o hospital de ambulância. Operação a céu aberto. Encarou o desafio. Os filhos depois prestaram serviço de visita. Ela se sentiu abençoada e rodeada pelos seus todos.
Depois da cirurgia, voltou para a casa disposta a se recuperar. Assim que estivesse mais forte, iria seguir com a preparação dos banquetes, o fôlego renovado.
Era mesmo resistente.
Com o tempo, a vida se refez da forma que dava, os dedos ainda atrofiados, mas o coração batia bem. Respirava melhor. Uma noite, porém, além dos dedos das mãos, os dedos dos pés também se atrofiaram e depois as pernas, talvez por uma perversa e incompreensível forma de contágio. Foi preciso chamar a Eloá — Dona Helena tinha dificuldade de arrastar os passos. Foram para a emergência.
O diagnóstico cruel foi o de que Dona Helena sofria de uma espécie de artrose que se multiplicava pelo corpo — dali para frente, só poderia andar de cadeiras de rodas. Ficou alguns dias internada para que estivesse confiante a fim de começar a nova etapa.
Voltou para a casa com a ajuda de Eloá, que a deixou na beira da cama. Ela tentaria viver sozinha, não queria ninguém ali por obrigação, e os cuidadores nem pensar, era um serviço caro, achava um desperdício, tinha cabeça boa, conseguiria dar conta de si, a cadeira era forte. Tentou seguir com a rotina entre a feira, a preparação do banquete e a missa. Sempre a bordo de sua cadeira de rodas que era fácil de manusear, bem moderna.
O cardápio do almoço permanecia o de sempre: além do assado com cabeça e tudo, tinha torta de siri, pirão, chester, farofa, maionese e, claro, o bolo de tapioca. A família minguante, só restavam dois dos filhos — a moça separada e sem filhos e o rapaz, casado e com duas gêmeas, que não gostavam nunca de nada. O que sobrava da comida juntava-se às sobras anteriores no freezer. Na semana seguinte, ela reaquecia uma parte e acrescentava o que trazia de fresco da feira. Nem tudo era reutilizado. Boa parte continuava no freezer para um “depois”, talvez o natal, o renascimento de todas as sobras.
De repente, houve o dia mais cruel de todos.
Dona Helena se preparou para a feira, arrastou-se até a cadeira como de costume, na insistência de fazer o ritual sozinha, a barraca do peixe, dos ovos, dos legumes, das frutas. Mas naquela manhã a rua estava enlameada por causa da chuva forte da noite anterior. Quando tentou desviar a roda de um pedaço grosso de casca de melancia, não conseguiu recuperar o prumo da cadeira, que capotou ali mesmo.
Ficou um tempo com as pernas para cima balançando como uma barata gigante até que alguém se manifestasse para ajudar. Depois de uns minutos, um grupo de solidários se formou e conseguiu desvirá-la. A boca cheia de sangue, os dentes fatiaram o rosto durante a queda. Os olhos gigantes estavam amedrontados. As mãos tortas de artrose seguravam com força um saco de cheiro verde.
Ficou uma semana e meia no hospital para costurar a boca e parte do rosto. Voltou para a casa sem poder falar, mas confiante de que logo estaria de novo na feira. Antes, porém, iria à missa agradecer pelas bênçãos da vida.
No último banquete, só Eloá apareceu. Cada filho deu uma desculpa qualquer, uns atarefados, outros moravam longe demais, os netos tinham febre, a vida corrida. Quanto mais Dona Helena se decompunha, menos filhos ela tinha ao redor.
E as sobras se avolumavam.
— Não acha melhor fazer uma doação desta comida toda, Helena? — perguntou Eloá, na tentativa de fazer a amiga entender que os banquetes não tinham mais razão de ser a menos que pusesse a mesa na rua e convidasse quem passava com fome.
Foi então que Dona Helena se trancou na cozinha. E ficou lá horas e horas. Eloá tentou entrar, mas foi impedida. Ela queria estar só fazendo o que não se sabe. Depois de cinco horas, a porta se abriu para um deslumbre: Dona Helena tirou tudo do freezer e transformou o que havia sobrado em comida nova. Fez quitutes diferentes. Torta de peixe, sopa de siri, empadinhas de chester... Eram tantos os pratos que não havia espaço na mesa.
— O que vai fazer com tudo isso, minha amiga? — perguntou Eloá.
— Me ajuda. Vamos levar para a rua.
E assim fez. Pegou a maior toalha que tinha, a dourada que costumava usar no Natal. Pediu ajuda ao porteiro para descer todos os pratos com os quitutes. E armou ali mesmo, no chão, em frente ao prédio, uma grande mesa ao ar livre. Qualquer pessoa que tivesse fome poderia comer. Sentada na cadeira de rodas à beira da calçada, observava quem se achegava: mulheres com filhos pequenos, idosos sujos de rua, alguns moleques cheirando garrafa de plástico; estavam todos convidados para o banquete. Não eram filhos dela nem filhas nem netos, mas estavam famintos — era o que os ligava à estranha senhora.
Devoraram as migalhas. Não sobrou nada pela primeira vez na história dos banquetes. Não sobrou sequer um pedaço do bolo de tapioca, aquele que quebrou o dente da neta. Depois ela recolheu a toalha, levou as vasilhas para cima com a ajuda da amiga e do porteiro. Passou a madrugada lavando tudo lentamente. No dia seguinte, foi à missa agradecer. Estava muito feliz porque percebeu, enfim, que os almoços de fartura poderiam ser degustados por quem realmente tinha fome. Iria fortalecer as sacolas na feira. Dali em diante, o freezer ficaria vazio. Nunca mais ia haver sobras, e os banquetes seriam ao ar livre — quanto mais gente, melhor. Os filhos sumiram de vez.
Vida corrida essa.
Claudia Nina é jornalista, escritora e crítica literária. Paisagem de porcelana, Amor de longe e A repolheira são alguns dos mais de dez livros que publicou.