Operário da escrita 11/06/2019 - 10:40
Há dez anos, Cristovão Tezza largou o emprego na universidade para se dedicar apenas à literatura. Na conversa a seguir, ele fala um pouco sobre a rotina de escritor em tempo integral, seus livros mais recentes, política e o time do coração, o Athletico Paranaense
Luiz Rebinski
Cristovão Tezza leva uma vida que poderia ser considerada “ideal” por muitos escritores. Tem as manhãs livres para escrever, pode se dar o luxo de tirar uma soneca após o almoço e ver filmes à noite. Quando viaja, é para falar sobre seus livros. E tem tempo para ler. Uma rotina moldada para escrever ficção.
Talvez isso explique a prolífica fase do escritor nos últimos anos. Desde que se “demitiu” da Universidade Federal do Paraná (UFPR), há mais de uma década, escreveu romances, livros de contos, ensaios, uma seleta de poemas e uma coletânea com suas conferências. Foram 11 livros em 10 anos, uma média “woodyalleniana” de produção. “O sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”, diz o escritor, citando João Guimarães Rosa para explicar sua produção atual.
Tezza foi bicho-grilo na juventude, fez parte de uma trupe de teatro no litoral do Paraná e “mochilou” pela Europa nos anos 1970. Esses eventos foram diluídos, pouco a pouco, na obra do autor curitibano nascido em Lages (SC).
Seus livros mais recentes procuram trazer a realidade brasileira para a ficção — ponto fora da curva entre os autores do País. “Mas nunca perdi de vista que a situação política é pano de fundo, o fantasma do nosso dia a dia, e não o tema dos livros”, esclarece. Ainda assim, Tezza captou, nas entrelinhas de seus enredos, o clima da primeira eleição de Lula (O fotógrafo), a polêmica que a Copa do Mundo de 2014 suscitou no País (A tradutora) e a crise econômica mais recente aliada ao Fla-Flu político que se amalgamou nos corações e mentes da população pós-2014 (A tirania do amor).
Esses livros, incluindo aí o best-seller O filho eterno, podem representar uma espécie de “fase madura” do autor, com personagens experientes em constante revisão proustiana de suas vidas. O que Tezza refuta, dando vários exemplos de “maturidade” em sua bibliografia. “Nunca tive controle sobre a minha maturidade. Minha literatura nunca foi produzida de caso pensado.”
Aos 66 anos, Tezza segue produzindo com vitalidade. Depois de um ano sabático, em que não escreveu “absolutamente nada de ficção”, o escritor começou 2019 trabalhando em um novo romance. Para esta entrevista, Tezza foi fotografado por Guilherme Pupo (seu ex-aluno) na Biblioteca Pública do Paraná, lugar muito frequentado pelo jovem Cristovão. Na conversa que segue, ele fala sobre passado, presente, rotina, política e até do Athletico Paranaense, o time mais “conceitual” do futebol brasileiro.
Seus últimos romances, A tradutora, O professor e A tirania do amor, trazem personagens em uma busca constante para entender suas próprias trajetórias. Já viveram muitas coisas e agora estão refletindo sobre suas decisões. Esses livros pós-sucesso de O filho eterno inauguram uma fase mais “madura” de sua literatura?
Quando publiquei Trapo, que está fazendo 30 anos, com uma edição comemorativa da Record, achei que, finalmente, era um escritor “maduro”, em técnica e visão de mundo. Os livros subsequentes, como Juliano Pavollini, A suavidade do vento ou Uma noite em Curitiba pareciam, pelo menos para a crítica do momento, comprovar esta maturidade. Em 1998, publiquei Breve espaço entre cor e sombra e percebi que estava abrindo um caminho novo para mim. “Agora, sim, estou ficando maduro”, pensei. “Tem coisas que só percebo agora.” Em 2004, com O fotógrafo, disse para mim mesmo, com convicção: “Isso já é uma outra coisa, bem mais madura”. O filho eterno foi uma revolução: até eu me assustei com a repercussão. Relia o livro e pensava: “De onde veio isso?”. Então escrevi Um erro emocional, que foi numa direção inesperadamente diferente; era para ser um conto de 15 páginas e virou um romance de 200 em torno de duas pessoas durante duas horas. A partir de O professor, a técnica de simultaneidade de tempo e espaço na cabeça narrativa começou a se desdobrar, por instinto. Além disso, é claro que um homem de 60 anos já não tem as minhocas na cabeça que tinha aos 30 ou 40; são diferentes. Em suma: nunca tive controle sobre a minha maturidade. Minha literatura nunca foi produzida de caso pensado.
Em geral, assuntos mais “quentes” costumam ser evitados por escritores de ficção no Brasil. Seus últimos romances têm como pano de fundo a atmosfera político-econômica do País. Isso veio naturalmente ou é uma reação à falta de diálogo de nossa ficção com a realidade mais imediata?
Os temas contemporâneos sempre fizeram parte “orgânica” de tudo que escrevi desde Ensaio da paixão. A ditadura militar, por exemplo, ressoa indiretamente em praticamente todos os livros que escrevi até Breve espaço entre cor e sombra. Em O fotógrafo, um motorista de táxi comenta a eleição Lula x Serra, e um deputado federal faz uma fala longa sobre a situação política durante uma sessão de fotografia. Essas referências ficaram mais imediatas, por assim dizer, a partir de A tradutora (que tem a Copa do Mundo no Brasil como pano de fundo), mas nunca perdi de vista que a situação política é pano de fundo, o fantasma do nosso dia a dia, e não o tema dos livros. O que me interessa, quando escrevo, são fundamentalmente as pessoas, não a situação política ou alguma mensagem edificante que eu deva passar ao leitor. Só me interessam as pessoas, que são normalmente confusas e complicadas. Respondendo à pergunta: isso aconteceu naturalmente, por afinidade narrativa. Obviamente, procuro panos de fundo culturais, amplos e silenciosos, não picuinhas anedóticas do momento. Para isso, temos o jornalismo diário. A literatura funciona em outra embocadura.
O realismo segue como uma corrente majoritária na ficção mundial, apesar do desgaste imposto pelo tempo. Para você, qual é o futuro da narrativa de ficção?
O realismo é uma corrente majoritária na ficção mundial desde Homero, digamos assim. Quer dizer, a literatura é, fundamentalmente, um modo de representação da realidade. E o princípio narrativo, isto é, a organização dos fatos no tempo, é parte constitutiva até da aquisição da linguagem. Identificar o conceito de realismo apenas com o estilo do “romanção” do século XIX é uma mesquinharia crítico-didática sem pé nem cabeça. Enquanto houver linguagem verbal, haverá narrativa de ficção e sua luta particular e solitária para representar alguma realidade, criando, pela linguagem verbal, hipóteses alternativas de existência.
Suas colunas no caderno “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo, sempre trazem muitas referências à literatura e aos livros, mas percebo que também procura entrar na pauta do País, falar do que está acontecendo nas ruas e nos gabinetes dos políticos. Como escolhe os assuntos?
Meio ao acaso, procurando descobrir qual é minha linguagem no espaço jornalístico, que, por origem, não é o meu. Comecei a escrever em jornal depois dos 50 anos, num aprendizado tardio. Não é fácil. É uma pegada instantânea e objetiva, muito diferente da perspectiva literária. Como você disse, as leituras e os livros estão no centro do que escrevo (é a minha área de uma vida inteira), mas procuro sempre relacioná-los com a vida presente. De qualquer forma, como se trata de uma coluna quinzenal, procuro refletir temas mais gerais, menos centrados no aqui e agora. Mas a realidade política brasileira está sendo tão brutal, e tão inacreditável, que é difícil escapar da reflexão imediata.
Um de seus comentários sobre política, na própria Folha, gerou muita repercussão entre seus pares. Esse texto sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff teve alguma consequência em sua carreira ou nas suas relações?
Não que eu tenha notado pessoalmente, talvez porque eu seja mesmo um sujeito de poucos amigos, à maneira curitibana. Mas tenho certeza de que não perdi nenhum. Quanto à carreira de escritor, também não aconteceu nada; continuei publicando normalmente. Bem, seria o fim da picada uma opinião no jornal acabar com a vida de alguém; aí, sim, estaremos definitivamente perdidos. Soube que eu levei uma “fatwa” de uma professora nas redes sociais e, nos “hurras!” dos adeptos que se seguiram, houve quem prometesse aos brados, emojis e vômitos, queimar meus livros. Enfim, é o espírito do tempo, num momento de polarização alucinada.
Há mais de uma década você lançou sua obra mais conhecida, O filho eterno, que ampliou seu público leitor. Quando um autor alcança um best-seller, fica tentado a produzir um novo sucesso comercial?
É uma pergunta que me fazem sempre. É engraçado, mas é verdade: nunca tive nenhum controle sobre o livro que vou escrever; não consigo viver nem mesmo a sensação de que “escolhi” um tema. Sou um escritor pouco inspirado, de imaginação limitada, com três ou quatro obsessões narrativas e existenciais, as quais venho testando livro a livro seguindo a intuição, o instinto, o faro. Avanço sempre sob o terror de me dar um branco. Quando começo um livro, tenho apenas um esquema muito magro na cabeça; é o ato de escrever que vai me revelando o que quero fazer e vai criando os desdobramentos narrativos. É como se, pela escrita, finalmente eu conseguisse entrar na vida e no mundo, que, tais como são na realidade, parecem não fazer parte do meu dia a dia. O sucesso de O filho eterno foi um acaso absoluto (eu me sentia quase um escritor em fim de carreira, já com uma dezena de romances publicados na mochila); e o livro que se seguiu, Um erro emocional, como qualquer leitor pode perceber, é completamente, mas completamente mesmo, diferente, em todos os aspectos, do sucesso anterior. E assim por diante, um depois do outro.
Você é reconhecido como romancista, mas já lançou livros de ensaios, contos, crônicas, uma coletânea com suas conferências e, mais recentemente, uma seleta de poemas. Por que atuar em tantas frentes? É a necessidade da escrita?
Há uma frase do Guimarães Rosa que define isso, se bem me lembro: “O sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”. Por partes: sempre tive um lado meio racionalizante na cabeça, e estudos teóricos já me interessavam desde os tempos do Colégio Estadual [do Paraná]. Anos mais tarde, virei professor e fiz carreira acadêmica. Isto é, por força da sobrevivência a reflexão literária acabou por acompanhar minha produção. Quando me demiti da universidade, passei a dar muita palestra, conferência, e acabei organizando uma coletânea. Também escrevi muita resenha e crítica em jornal. É um trabalho que me agrada. Na ficção, sou fundamentalmente um romancista, alguém que pensa sempre em 200 páginas, mas a vida real acabou me levando para a crônica (durante cinco anos assinei uma crônica semanal na Gazeta do Povo), e hoje para uma coluna cultural na Folha. Alguns contos me aconteceram e até renderam livro. E os poemas são uma edição praticamente secreta, uma coletânea artesanal da Tipografia Quelônio, de apenas 200 exemplares, para maior segurança do falso poeta.
Em seus livros de não ficção, você gosta muito de discorrer sobre o trabalho dos escritores de ficção. Essas “ruminações” sobre a literatura são essenciais para o seu trabalho de criação, quando escreve romances?
Não, não são essenciais, até porque são elaborações a posteriori. Eu comecei a escrever ficção armado apenas com alguma leitura e muita ingenuidade. Não tinha nenhuma concepção clara do que estava fazendo; escrever começa como um ato genérico de imitação. Entrei tardiamente na universidade, e só então a teoria literária começou a ocupar minha cabeça. Hoje, minhas reflexões sobre literatura são uma tentativa de entender, afinal, o que me levou a escrever, como a escrita me transformou e que sentido isso tem. O espírito da prosa, que é uma autobiografia literária, tenta responder a essas questões. Mas, sinceramente, jamais escrevi um texto de ficção como quem põe em prática uma ideia teórica do que deve ser um texto de ficção. Para mim, a literatura jamais funcionou assim.
Você sempre diz que escreve pela manhã, das 9 às 12 horas. O que faz no restante do tempo? Se não puder escrever em um dia útil, rola um peso na consciência, como se tivesse faltado a um dia de trabalho em um serviço convencional?
Rola sempre uma culpa por um dia perdido, é verdade, e eu sempre acho que isso acontece por causa dessa maldita ética do trabalho que nos atormenta a todos, especialmente os curitibanos. Primeiro é preciso lembrar que a escrita de um romance, para mim, é uma empreitada. Em 2018 não escrevi absolutamente nada de ficção; vivi apenas vagabundeando em torno do lançamento de A tirania do amor e de Literatura à margem, uma coletânea de ensaios. Além disso, viajei bastante, participando de eventos literários. Agora em janeiro comecei um novo romance, e a rotina mudou. Escrevo pelas manhãs, de segunda a sexta; à tarde, leio bastante, depois de tirar uma sonequinha de 30 a 40 minutos. À noite, vejo filmes — sou viciado em cinema. E isso é tudo, durante meses e meses, exceto por um ou outro evento literário de que participe.
Desde que saiu da Universidade Federal do Paraná, onde deu aulas por 20 anos, você ganha a vida como escritor. Gosta da vida literária? Participar de eventos para falar, com alguma variação, sempre dos mesmos assuntos não é cansativo?
Eu tive uma vida literária mais intensa quando jovem — no meu caso, que nunca fui precoce, essa juventude durou até quase os 40 anos. Eu frequentava os botecos, enchia a cara com aquela cerveja de milho que era a preferência nacional e discutia furiosamente literatura com quem aparecesse. Depois, o tempo foi me tranquilizando, e hoje sou um pachorrento senhor que gosta mais de cozinhar do que de falar de literatura. Mas me agrada viajar de vez em quando e participar profissionalmente de eventos, até porque hoje eu vivo dos livros e seus derivados, por assim dizer. Não sinto como um trabalho pesado. Cada conversa literária, pelo público, pelo espaço, pelas circunstâncias, é sempre única.
Quando começou a escrever, certamente tinha em mente o tipo de escritor que gostaria de ser. O curso que sua carreira tomou (em termos estritamente literários) foi o que planejou? Ou houve algum fato que o fez mudar de rota no meio do caminho?
Eu fui “formatado” como escritor pelo espírito, ou o caldeirão, dos anos 1960 e 70. Era um tempo em que toda atividade artística estava envolta numa aura de performance existencial. Era como se você escrevesse, pintasse ou atuasse não para produzir objetos culturais, mas para transformar a si mesmo e ao mundo. O artista teria de ser, antes de tudo, um revolucionário. Acontece que quando começamos, de fato, a escrever, a linguagem vai nos transformando e os projetos vão se refazendo. Além disso, o tempo passa, o nosso, e o do mundo em volta. Ter, digamos, 30 anos em 1970 é uma coisa; a mesma pessoa, com 40 anos, em 1980, já é outra história; se continuar exatamente a mesma pessoa, alguma coisa está errada. O que não muda, talvez, é o temperamento, a teimosia, o jeito. O resto é outro filme.
Conversando com autores de outros lugares, sempre fico com a impressão de que a obra de Dalton Trevisan é pouco lida fora daqui. Claro que os escritores o conhecem, mas parece que poucos o leram de verdade. Qual a sua impressão?
A boa literatura virou praticamente um nicho de mercado, reservado aos especialistas e aos iniciados, e mesmo nesse universo fechado a literatura brasileira parece um bicho mais oculto e secreto ainda. Assim, não surpreende que Dalton Trevisan seja pouco lido. Independentemente disso, é um dos mestres mais marcantes da literatura brasileira do século XX, particularmente de sua renovação radical, como linguagem e como visão de mundo, na virada dos anos 1970.
Curitiba caiu na boca do Brasil nos últimos anos. Mas em geral a cidade é explicada sempre com clichês. Vivendo há tanto tempo aqui, tem a impressão de que o país não compreende de verdade a cidade?
Uma pergunta difícil. Como eu vivo aqui há 60 anos, Curitiba já é minha pele. O estrangeiro sempre tem mais condições de julgar a cidade. Quanto aos clichês, são simplificações eventualmente úteis. O Brasil ama a ideia de uma cidade em que tudo funciona chamada “Curitiba”, mesmo que ela não corresponda à cidade real. Este espaço urbano, ao mesmo tempo de soluções práticas e de ideário utópico, foi uma criação de gênio de Jaime Lerner, nos anos 1970, elaborada sobre uma cidade que era opaca, sem marca, cinzenta, indistinta — mas, por mistérios de sua população e atmosfera, tinha um imenso potencial organizador. Faltava alguém para dar o estalo e criar uma imagem.
Você foi uma pessoa “contracultural” na juventude: fez parte de uma trupe teatral, reverenciava um guru filosófico (Wilson Rio Apa), era um rebelde contra o “sistema” e tinha restrições até mesmo em relação à universidade, que depois acabou aderindo. Hoje, aos 66 anos, o que pensa do jovem Cristovão?
Não sei ainda. Minhas opiniões divergem.
Você costuma receber escritores que estão de passagem por Curitiba. É bom conversar com outros autores?
Costumo receber amigos que fui conhecendo ao longo dos últimos 30 anos e, por acaso, muitos deles são escritores. Conversar é ótimo; sou um recluso do tipo social. Falamos de tudo, de futebol, de política, das técnicas modernas de emagrecer, de filmes, e até de literatura. Mas confesso: acho meio chato conversar sobre literatura. Ninguém gosta de relaxar falando da profissão.
O que está achando da nova fase do Athletico, com nome e uniforme novos? Tem ido à Baixada?
O Athletico é um time conceitual: veja só que diferença aquele discreto “h” fez na sua imagem! O destaque visual é instantâneo. A concepção de dois times, o de formação, da gurizada, que alimenta a equipe principal, está certíssima. Um belo planejamento, que vem dando certo. Eu e o Felipe, meu filho, temos grandes esperanças neste ano. Mas preciso ir mais à Baixada — um jogo ao vivo é sempre uma experiência fascinante.
Luiz Rebinski é jornalista e editor do jornal de literatura Cândido. Publicou o romance Um pouco mais ao sul.