Rara relevância 11/06/2019 - 06:00

Publicado há 45 anos, o romance Os sinos da agonia, de Autran Dourado, revela um intelectual refinado, com cultura sólida e seguro dos seus meios expressivos

Luiz Antonio de Assis Brasil

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   Ilustrações: Marcelo Clapp

Se os especialistas dizem que nosso cérebro suspende determinadas lembranças para que não fique sobrecarregado e possa funcionar melhor, também é verdade que esse mecanismo, quando transplantado ao plano coletivo, pode levar a esquecimentos funestos, e basta, aqui, evocar o genocídio armênio. Dele, ninguém mais fala, a não ser nos livros de História e nalgumas páginas da internet, as quais devem ser procuradas com lupa e paciência. No plano cultural, e, assunto que nos interessa, no plano literário, nossa desmemória cíclica assume um tamanho alarmante e francamente deletério. Digo deletério porque são obras e autores que poderiam ser lidos em escolas e universidades, com efetivo ganho intelectual e emocional de alunos e professores, que depois expandiriam extramuros essa experiência de conhecimento e prazer estético.

Vítima de injustificado apagamento estão os livros do mineiro Autran Dourado (1926-2012). Durante seu período mais fértil, que abrange as décadas de 60, 70 e 80 do século anterior, sucederam-se importantes romances e livros de contos, que logo impressionam pela conotatividade de seus títulos, tais como: A barca dos homens, Uma vida em segredo, Ópera dos mortos, O risco do bordado, Os sinos da agonia. Sobre este último romance, publicado 1974, é que desejo dizer alguma coisa a seguir. Não são títulos apenas encantatórios, mas metáforas de enredos escritos numa linguagem densa e tensa, em que prepondera a indagação sobre os destinos humanos — tarefa natural de qualquer literatura que mereça o nome —; mas inserindo-a num quadro histórico e sociológico, o que significa: são tratados sobre a alma captada no ato, por vezes desesperado, de estabelecer pontes com o outro.

Autran Dourado, por tudo isso, foi famoso em vida. Sua obra era estudada, sucediam-se as teses e dissertações de que era objeto, seus livros eram traduzidos e viam sucessivas tiragens. Conheci-o. Como jovem escritor, tive uma longa conversa com ele, em sua casa. Esse fato não tem qualquer relevância para ninguém, a não ser para mim mesmo — aprendi muito com ele nesse encontro —, mas naquele dia foi possível perceber, ao vivo, o quanto ele se interessava pela escrita criativa, numa época em que ninguém se importava com isso e considerava que a competência literária era um dom misterioso de iluminados, uma coisa que jamais poderia ser aprendida. Ele era autor de uma obra seminal no gênero, chamada Uma poética de romance, de 1973. Durante as quatro horas que com ele passei, vi-o falar, de maneira deslumbrada, sobre a feitura de seus romances, e não se negava a responder as 17 perguntas do neófito que foi ao Rio apenas para conhecê-lo e importuná-lo com questões que iam desde o uso dos verbos dicendi até a consistência das personagens coadjuvantes. Ele foi impecável como professor ad hoc. E me deu um bônus, referente à estrutura de seus romances e de como tinha muito gosto em fazer experiências narrativas que implicavam jogar capítulos para lá e para cá, e isso numa época anterior aos processadores de texto, em que tudo funcionava à base de recorta-e-cola com tesoura escolar e cola de tubinho. O pagamento foi um quilo de passas de pêssegos de Pelotas, que ele me disse adorar. Reencontrei-o depois, ele já bastante combalido pela doença e, mesmo assim, perfeitamente lembrado daquela personalizada oficina-relâmpago.

Na altura de minha visita, minha atenção voltava-se para Os sinos da agonia, um livro novo em sua trajetória. Essa obra revela um intelectual refinado, com cultura sólida, seguro dos seus meios expressivos. A história se passa na Vila Rica do final do século XVIII, quando o burgo vivia um esplendor que já mostrava quase imperceptíveis, mas pertinazes, sinais de uma decadência que se iria acelerar. Ninguém se apresse em pensar em romance histórico. Está longe disso, a começar pela não obediência à sincronização diacrônica: fala-se em “El-Rei”, quando, na época, reinava D. Maria I. Não há menção a datas, nem verdade no que se refere ao meio circulante. O autor fugiu dos alçapões da História, já antecipando a crise que viria a ocorrer com essa disciplina. Isso não significa que é um romance esquizofrênico e descontextualizado. O que vemos nele é uma rigorosa fidelidade ao zeitgeist colonial e autoritário, com os hábitos e costumes destilando verossimilhança — convencendo-nos, enfim. Mas é justo nesse ponto que o autor nos mostra sua virtuosidade: durante suas centenas de páginas, lemos uma história que estranhamente nos leva ao pensamento de nossos dias. Na época, muitos viram nessa obra a representação do enclausuramento das mentes submetidas à feroz ditadura militar-civil brasileira. Pode ser que o seja, embora o próprio Autran tenha negado essa possibilidade. Tal interpretação redutora desmereceria a obra. Os sinos da agonia impõe-se, com sua trama e com sua linguagem, como obra de arte que não presta tributo a nada, a não ser a si mesma.

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MITO CLÁSSICO
E qual é essa trama? Se o leitor tiver tempo para tal, e se andou pela escola de antes da reforma que a degradou, deve lembrar-se dos mitos gregos e, por consequência, das literaturas dramáticas e poéticas que deles trataram. Quero referir aqui à lenda de Hipólito-Fedra-Teseu, tratado desde Eurípedes até André Gide, cruzando por Racine e outros tantos. São muitas suas variantes, mas é possível ter algumas constâncias: Fedra é mulher de Teseu, e Teseu já tinha um filho com Antíope; é Hipólito. Este é um jovem puro, a quem mais interessava a caça do que as mulheres e, assim, vê- -se perplexo e recusa o amor incestuoso que sua madrasta lhe destina. Está tudo preparado para a tragédia. Ferida em seu orgulho, Fedra denuncia a situação a Teseu, que o amaldiçoa o filho e o expulsa do palácio. Hipólito, com seus cavalos, morre no mar, o reino de Poseidon. Logo que sabe da morte de seu amado, Fedra confessa a própria vileza a Teseu e se suicida.

O romance de Autran Dourado transpõe para seu romance o mito clássico. Teseu é o potentado João Diogo; Hipólito é seu filho, Gaspar; Fedra é Malvina. A esse trio o autor acrescenta mais uma personagem, Januário, que vem a ser o sombrio duplo de Gaspar.

O leitmotiv são os sinos das igrejas que, na tradição eclesial, marcavam os passos da vida: os nascimentos, as festas, e, ainda, pontuavam a passagem da vida para a morte de algum membro da comunidade paroquial — eram os sinos da agonia. Na obra de Autran, esses toques desempenham um papel altamente dramático; em certos momentos, são arrepiantes. Diz-se que um bom romance deve apelar para todos os sentidos, de modo a envolver o leitor; se é verdade, a audição, em Os sinos da agonia, assume uma rara relevância; mas não só: a obra é recheada de cores, cheiros, asperezas tácteis, enfim, é de uma abundância barroca — o que é reforçado por uma linguagem que evoca os autores do século XVIII, caudalosa, com longos períodos subordinados e com os diálogos incluídos na narrativa como se tudo fosse uma coisa só.

É, talvez, na organização estrutural que Autran mostra sua máxima competência, utilizando um artifício que é contar a mesma história sob três focalizações diferentes e, portanto, o que era o mesmo transforma-se em algo novo, a ser descoberto pelo leitor. No bloco inicial, a perspectiva é de Januário, filho bastardo, que cometeu um crime: matou o pai de Malvina, mulher por quem se apaixonara; já no segundo bloco temos a perspectiva incidente em João Diogo Galvão (o Teseu do mito) e em seu filho Gaspar, abrindo um largo espaço para Malvina, que considero a personagem central do romance, por força de sua questão essencial, ao qual se liga ao sentimento de inferioridade frente a uma sociedade aristocrata, já que ela não pertencia ao mesmo estrato social de seu marido. A seguir, a focalização é de Gaspar, que “conta” a sua chegada à casa depois de uma longa caçada, o amor que ele percebe nos olhos de Malvina e, por outro lado, sua paixão incipiente e incestuosa pela bela madrasta. A tragédia segue seu rumo: Malvina se associa a Januário e, numa astúcia manipuladora, faz com este assassine João Diogo. Rejeitada depois por Gaspar, não lhe resta senão o suicídio.

A trama, contada dessa forma, poderá conduzir a uma ideia de dramalhão ao gosto romântico, mas são os impecáveis artifícios técnicos — e perceptivos — de Autran que salvam o romance do desastre melodramático. A meu ver, o uso da focalização desempenha um papel primordial nessa operação, pois, penetrando na cabeça e nos sentimentos das personagens, faz com que o sentimento “romântico” — não o é, tout court — passe como natural e perfeitamente digerível pelo leitor. Não é Autran que é romântico, mas, sim, suas personagens, ainda que vivam imersos numa simbologia barroca.

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PERSONAGENS PODEROSAS
Ao fecharmos as páginas de Os sinos da agonia somos possuídos por vários sentimentos: em primeiro lugar, o de que lemos um grande romance, e essa é uma sensação cada vez mais difícil de encontrar por aí; isso decorre de vários fatores que nele interagem, como a frase plena de conhecimento, mais o poder de suas personagens, tanto centrais como coadjuvantes, a que se unem os espaços descritos com sabedoria e o entrevero de tempos que, se nos perturbam de início, logo se apresentam limpidamente pavimentados. Em segundo lugar, é um grande romance pela competência profissional que se constata na organização interna dos diferentes planos narrativos. Isso é uma bênção literária, se é que posso usar esse sintagma esquisito. Mas o mais relevante para a certeza de que é um grande romance está na composição psicológica de suas personagens que nos passam intensa verdade. Isso faz com que todas sejam moralmente compreendidas, ainda que pratiquem suas indignas ações. Mesmo Malvina chega absolvida ao final, pois, antes de tudo, vemos nela uma mulher que busca desesperadamente sua felicidade e sua realização erótica num meio que lhe negava tudo isso. Nesse sentido, aproxima-se da Bovary; mas se há coincidências, como o suicídio, ambas divergem no plano da busca da realização de seus afetos; se a personagem de Flaubert igualmente se vitimiza, apagando-se solitariamente deste mundo, Malvina leva consigo outras pessoas e, talvez, uma sociedade inteira que começa a apodrecer e nunca quis aceitá-la.

Esta breve nota não tem outro desejo senão trazer luzes sobre um livro e, mais do que tudo, uma obra inteira. Talvez ela ressurja do olvido em que se encontra, cumprindo-se a frase de Lope de Vega: acabam por ser novidades as coisas que andavam esquecidas.

 

Luiz Antonio de Assis Brasil é escritor e professor universitário. Publicou mais de 20 livros, entre eles Concerto campestre, O pintor de retratos e Escrever ficção: Um manual de criação literária. Coordena, há 34 anos, a Oficina de Criação Literária da PUCRS.

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