Estranheza regeneradora 20/11/2018 - 16:50

Lançado há 45 anos, o romance Avalovara, do pernambucano Osman Lins, marcou a literatura latino-americana com uma prosa inovadora e de alta densidade poética

Lourival Holanda

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Ilustrações: Adriana Tabalipa

 

A literatura nasce da calma, do trabalho persistente e lento de muitas recusas. (Osmar Lins)

Num tempo de produção literária quase frenética, nas comunidades emocionais das redes sociais e, nas bordas, produção espetacular — exigência da simbiose mercado e literatura — parece oportuno voltar a rever alguns nomes norteadores: o GPS cobre um espaço enorme, mas precisa de seguros pontos de referência. O mercado, com seu canibalismo ontológico, faz ser literatura tudo aquilo que possa ser vendido como; arrogância consensual de mercado; isso facilita, de um lado, o encobrimento de certa esterilidade de invenção; e de outro, a generalização do princípio do “vale, desde que venda”. 

Traduzido na Alemanha, em 1974, e na Itália, em seguida, pouco depois, era a vez de os norte-americanos terem contato com Avalovara, de Osman Lins. O crítico e tradutor norte-americano Gregory Rabassa colocava a poética de Osman, na América Latina, ao lado da de García Márquez e de Julio Cortázar. Na França, um crítico bastante considerado, Maurice Nadeau, julga Nove, novena, um dos melhores textos aparecidos naquele momento, entre livros franceses e estrangeiros. Entre nós seu reconhecimento veio cedo, com a admiração de Antonio Candido, que em Avalovara via na literatura brasileira atual um momento de decisiva modernidade. Com a crítica aguda de João Alexandre Barbosa (Ele não conta: escreve). O mesmo reconhecimento admirativo em José Paulo Paes, crítico agudo. Também cedo ainda Glauber Rocha (no Pasquim) reconhecia que o livro não devia nada ao Nouveau roman. A técnica da simultaneidade psicológica, nos sinais gráficos, o intuito de assimilar a semântica do mundo contemporâneo, mais quântica que linear, em tudo o texto abria uma nova temporalidade.

Antonio Candido percebeu cedo o que trazia de novidade aquela aventura narrativa: uma topologia que revezava tempos e lugares, cidades e estados de espírito. Também no tocante à sexualidade mutante, rica de possibilidades: o sexo, no início, não se define, como não se define um cérebro senão pelo seu uso. Assim, Cecília se lembra que sempre se soube no modo mistério: desde os tempos de menina, no ritual arcaico — raspo as coxas (tenho doze ou treze anos?) E escondo entre elas o pênis ainda infantil. Claramente, delineia-se o Mapa. Imagino ser, ao mesmo tempo, macho e fêmea. E Abel ama esse segredo. O sexo de alguém, o cérebro, mesmo a mão — como se definem senão pela possibilidade de? Por um uso possível? Ho bisogno sempre di questo misterio. Na época, já Antonio Candido havia recebido sem espanto tanta singularidade: reversibilidade vertiginosa que traz à baila a evocação da herma de Jano e chega a uma mulher que é também homem, para um homem que poderia eventualmente ser também mulher.

Que melhor homenagem à argúcia de um crítico? Candido ainda aponta o essencial do processo escritural: Toda a narrativa converge para a plenitude amorosa, numa espécie de gigantesca câmara lenta, que concentrasse o tempo no espaço limitado e no limitado instante em que a plenitude é buscada.

Osman era a terceira vertente da poética moderna desde Pernambuco — fechando a triangulação com Manuel Bandeira e João Cabral. A prosa de grande densidade poética de Osman desfaz as fronteiras: porque seu sentido não se separa da musicalidade, de um determinado ritmo, próprios da poesia, da melhor poesia.

Quando alguns autores produzem algo muito inovador, são como abridores de picada, na floresta: forçam, a golpe de foice, um caminho, uma direção nova. Não se entregam inteiramente a seu tempo porque se reservam para estar, inteiros, no tempo posterior. Avalovara, de Osman Lins, primeiro desnorteou: não era fácil qualificá-lo, enquadrá-lo numa tradição. Sequer dava para pensá-lo como novo — o novo se define fácil por ser o reverso do velho. Mas ali estava um texto estranho — ou seja: sem filiação imediata.

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Tal estranheza vinha, certamente, dos elementos novos, inaugurais, de um repertório que as ciências renovavam desde algum tempo: uma percep- ção mais complexa da realidade, as inquietações da física quântica, como o princípio da indeterminação, de Heisenberg; e ali, a partir dos anos 1970, a crise da linguagem apontada em autores como Joyce, Beckett, os teóricos e questionadores radicais dos limites da linguagem: Fritz Mauthner, Karl Kraus — que os franceses descobriam quando justamente Osman está na França, partilhando e incorporando as novidades à aventura verbal que iria empreender. O texto de Osman vem marcado pela consciência da impossibilidade de garantir a realidade; e mais ainda: de poder dizê-la. A indeterminação, no mundo da quântica, deixa atual a aventura de Osman Lins.

Um escritor lida com palavras, mas sabe que elas levam além. Temos termos fetiches: razão, política, intuição, fé, verdade. A literatura, incauta em alguns momentos, até então se servia desses termos e, assim, findava servindo uma entidade perigosa, mascarada de elemento agregador — lugar, por excelência, dos investimentos afetivos: os credos sociais. O texto de Osman alerta para a catástrofe possível: as palavras se enrijecem em dogmas — que cedo se quebram, depois findam em universos hemiplégicos: esquerda ou direita, cada grupo, desde sua metade, reivindica toda a razão. Em Osman escrever responde a certa exigência interna: Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e mais elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar a minha vida. Daí ser, também, um compromisso, na acepção política: A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres. Osman é dos que focam seu engajamento através da exigência da forma: reorganizar a linguagem é desconstruir um poder, uma estrutura, alargar a liberdade do possível. Lida o escritor, na opressão, com um bem confiscado.

Como dizer a complexidade do real dentro dos limites de uma sintaxe subjugada à racionalidade consensual? Este desejo de coerência, convertido em dogma, transforma numa selva de sofismas sua afinidade da Justiça. Aqui está propriamente o desafio da literatura: ela toma elementos à ciência sem, no entanto, conceder à ciência o monopólio da razão como derradeira explicação do real. Surpreende que um teórico da quântica como Schrödinger diga algo bem nesse sentido: há, na ciência, coisas que são percebidas, mas que apenas podem ser ditas em linguagem alegórica, em imagens. Osman opera uma bifurcação descritiva máxima quando, para aludir à intensidade do coito feliz recorre a pavões suspensos em voo. Quando a personagem feminina fala da entrega de si, tema sutil, a narração escapa para o símile da ave-do-paraíso para dizer da singularidade desse momento intenso: Parecem vir do mundo privilegiado em que de prata — e não fulvo — é o pelo dos leões, em que os peixes voam quando querem e onde a Lua, todas as noites, surge acompanhada por um deslumbrante cortejo de pavões que se acasalam em voo. O narrador sabe o risco duplo que corre: descrever é beirar o lugar-comum num momento paradoxal; recorrer à metanarração não se faz sem o perigo de dispersar, mais que prender o leitor.

Num dado momento diz Octavio Paz que literatura é erotização da linguagem. Certo: quando alguém nos cita um bom texto, excita em nós um tipo de atenção expectante de satisfação pelo impacto da linguagem. A concepção de literatura em Osman Lins é algo visceral, toca sempre a espessura do existencial. O ato de escrever se identifica com o ato de viver, de perceber. No começo dos anos 1970 já a ciência deixa no ar a ideia de um real complexo, um sentimento de multiplicidades potenciais — que o escritor vai tentar traduzir na liberdade de signos polivalentes. E Osman recorre a registros variados: da ciência, da música, das artes gráficas. Daí a carga de poeticidade que o narrador empresta a Cecília quando aflora o tema de plenitude sexual: Tomo em minha mão seu sexo alteado, sinto pular a glande acetinada e as veias. O sangue pulsa, pulsa no seu sexo, no coração do sexo — esse pássaro. (...). Afago-o, afago docemente este obelisco, este arpão ereto e elástico, com seu focinho de lobo. Sondo, com a ponta dos dedos, dentro da carne, o seu começo ou seu fim e não o encontro, ele continua para dentro, para dentro do ventre, por mais que eu cave com os dedos não o perco, ele continua (onde começa? onde?), impressão de que prossegue pelo corpo adentro, enreda-se, dá voltas, uma planta, arbusto rijo e vibrátil incrustado no corpo deste homem, com flores nas raízes, flores e frutos, flores de um verde carregado, fruto de um rubro semelhante ao dos figos. Em carta de 1972, Osman dizia temer que esse texto fosse lido como obsceno, quando nada nele é gratuito, mas carregado de implicações simbólicas.

A narrativa parece se desenvolver em saltos quânticos; o código cifra aspectos complexos, apenas aludidos; a linguagem frequentemente cai para cima: em estado poético. A gravidade da concepção de linguagem própria a Osman já vem, de entrada, retomada a George Gusdorf: Chegar ao mundo é tomar a palavra, transfigurar a experiência em um universo do discurso. A arte é levada pelo rigor de um artífice, de um artesão consciencioso. Mas que também desconfia de seu instrumental: Osman, nos anos 1970, tem contato com os autores que precipitam a saudável e decisiva crítica da linguagem: O que eu digo é algo incompleto e falho. (Eles estivaram falando da imprecisão dos mapas antigos; mas, ainda assim, norteadores.) Os nomes e as coisas (a palavra tarde e a tarde, amar e a palavra amar), as coisas e seus nomes transformaram-se.

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Mesmo o registro romântico toma outra configuração. Ganha em pudor e intensidade. Quando transitas entre a multidão, ouço teu rosto, como se fosse um cântico, um solene e jubiloso cântico alçando-se da brutalidade. Em outro momento: Há inúmeras maneiras de amar e eu jamais conseguiria dar-lhe uma ideia do modo como a amo, um amor mesclado com o inalcançável e a geometria. Surpreenderá, por certo, o leitor, tal mescla de registro, entre o impulso romântico e a contensão quase clássica, como em João Cabral. Osman sabe — está dito e feito — seu desafio: O que eu digo é algo falho e incompleto. Contudo, essa consciência dos limites vai fazê-lo “criar” seu espaço de liberdade escritural. Desde Différence et répétition, Deleuze denuncia a deformação e o rebaixamento que é pretender dizer ou representar o real: isso sempre supõe redução.

O registro romântico parte do impasse: como na famosa escadaria desenhada por Leonardo da Vinci, as pessoas passam contíguas, mas não se encontram, de fato. Tento perguntar — e desisto, enervado, invocando um auxílio verbal que não possuo — se atentou em Chambord para a dupla escadaria no centro do castelo. Duas pessoas que usem ao mesmo tempo, Roos, essas duas escadas helicoides, veem-se mas não se encontram. Talvez ali esteja escrito, ou esboçado — eis o que desejo dizer-lhe e não consigo — o destino de muitos. O nosso inclusive. Não iremos subir a mesma escada, Roos, por mais que eu — e talvez até você — deseje o contrário. Tanto uma escada como outra levavam a belos aposentos, com leitos baldaquinados. Mas uma mulher e um homem só podiam ocupar a mesma cama se subissem a mesma escada.

O propósito de Osman Lins está na mesma linha de horizonte que o de Fernando Del Paso ou Lezama Lima. Também se poderia acrescentar Cortazar ou Clarice Lispector, escritores regeneradores: aqueles que não cabem ou querem um gênero tradicional e que por isso se inventam outro — um transgênero literário. Basta ver o cuidado com que fabricam um ritmo: Silva o vento, as ondas se sucedem, salta a embarcação, range o madeirame. Ou, em outro momento: Sou, dos convivas, o único, talvez, que não sai da mesa um pouco embriagado. Não há como não lembrar aqui do zelo de Euclides da Cunha pedindo ao revisor que guardasse sua virgulação luxuriante.

Isso permite percepção mais fina das sutilezas do amor: Mas ouve: o amor, artefato de difícil manejo, é cheio de botões secretos e de facas que à mínima imperícia ou distração saltam voando e lenham a pele. O narrador ama Roos? A encontra, de fato? Roos, uma visão, um impossível, a fugidia, a próxima, a ofuscante, a clara, a quase, a que entrevejo, a que perpassa, o relâmpago, a irisada, a apenas visitada, a intangível, a vinda inconclusa, o perene ir. As questões levantadas são inquietantes: Ama-se o que em quem se ama? O que, em quem amamos, faz com que o amor se manifeste?

Em Avalovara Osman vai proceder à alquimia extrema de sua poética. Em alguns momentos a fratura da sintaxe responde à hora atordoada em que o narrador perde o prumo: repetindo, as, palavras ouvidas de outra boca em outra hora cingindo. O leitor, se atento, deduz que, onde tresvariou a realidade, há de se seguir o desvario da sintaxe: em fins, de julho minha avó, setenta e nove oitenta, outras idades o sol; das onze horas eu; com Inácio nós eu & ele olhando os gansos que deslizam no lago não apenas. O testemunho do narrador é que, em dado momento, o real está aí — mas não faz sentido. Que sintaxe pode dar conta disso? Por isso o texto vai distribuindo, sobre o real suposto, o diagrama sinuoso do poético — cujo prazer de descoberta nenhum outro discurso substitui.

A narração literária é uma forma de represar o caos constante. Convivemos todos os dias com as narrativas escritas e isto esconde o seu mistério. Uma viagem está no texto, íntegra: partida, percurso, chegada. Nele, há o ir e o estar, isto é, coincidem o fluxo e a permanência. Longe dessa comédia in litteris, tão comum ao nosso meio, quando literatos hábeis e enganosos se creem representantes da cultura de um mundo em crise, Osman Lins é um ponto referencial no GPS da literatura latino-americana. Sobretudo quando seu sentido está sempre a ser reinventado.

É por onde avança um narrador fazendo da escritura um gesto grave de perquirição. É quando à sensibilidade se soma a reflexão, a análise do mundo imediato — pela mediação da escritura. Escrever para tentar opor ao caos alguma ordem possível. A começar pela ordem da frase, que vai da dissidência com a linguagem rotineira à integração com o mundo. Osman participa desta exigência de quem se contrapõe ao caos, sempre mais próximo, criando, com resistência e rigor, uma alegria mais intensa que a satisfação.

 

Lourival Holanda é escritor, crítico literário e professor da UFPE. Publicou os livros Sob o signo do silêncio e Entre fato e fábula.

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