Breve inventário da fauna e da flora 20/11/2018 - 17:00

Gêmeos irlandeses

a clarice lispector
se parece com a regina
spektor
e o bob dylan
é um tanto
rimbaud


mas
tudo depende
de onde está o olho
de quem vê


marcel duchamp disse que no
nu descendo a escada
o movimento não estava no quadro
mas no olhar do espectador


tanta coisa depende
desta xícara vermelha
esmaltada
sobre a mesa
enquanto digito
uma xícara vermelho-sangue
fumegando de chá
que faz lembrar a fala se turvando de vermelho:
uma ‘fala vermelha’ é uma ‘fala tensa’
ismênia para antígona:
aconteceu alguma coisa?

uma xícara de chá é só.
uma xícara de chá.
mas uma fala
pode ser avermelhada.


um poema pode ser
gêmeo irlandês
de outro poema
por exemplo
você decide escrever
um poema
sobre a ‘cidade das abelhas’
mas se depara com outro
sobre uma ‘caixa
de abelhas’


tanta coisa depende
das abelhas a importância delas
para a vida do planeta
era o que deveria estar
naquele poema que não foi escrito
tudo o que era preciso dizer
sobre abelhas
mas de repente
só é possível
descrever uma caixa vermelha
trancada a sete chaves
que pode estar cheia da abelhas
dentro                cheia de abertas mortas e
vivas.

...

a teoria do gato de
schrödinger diz que um gato
encerrado em uma caixa
está vivo e morto
ao mesmo tempo
porque não temos como abrir
a caixa para verificar isso
sem interferir na situação real
do gato.


como naquele poema
do trem que esconde outro
trem, um gêmeo irlandês
pode acabar eclipsando
o outro


tanta coisa depende
de uma caixa vermelha
fechada
contendo abelhas
ou gatos.
ou ainda galinhas
brancas.

Frère Jacques

você era criança
e os pais disseram
que precisava ir às sessões.

eles estavam se
divorciando e a casa caía
aos pedaços:
a mãe chorava e o pai ficava
mudo. os gritos passavam
por debaixo da porta e
os pais diziam
que era a criança que
precisava de ajuda.


em todos os encontros
a senhora perguntava:
                      — você quer conversar
ou desenhar?
você sempre queria desenhar
mas às vezes achava
que deveria responder “conversar”
só para agradar a ela.


nos dias de conversa,
ficava muda e a senhora
dormia sentada.
na janela, o macaco de madeira pendurado
testemunhava a sua aflição 
e o cochilo dela.

quando conseguiu
dizer que não queria mais ir lá,
fez um jacaré de argila pintado de verde
que tinha uma boca enorme aberta.
ela concluiu
que você finalmente tinha conseguido
abrir a boca
como o jacaré
finalmente você tinha conseguido dizer
alguma coisa.


na saída sempre ia com a mãe comer
croissants
numa lojinha
que ficava na esquina do prédio.
hoje pensa que a sua cura
foram os croissants de queijo
que comia semanalmente.


ao entrar na lojinha
a mãe citava a anedota
da maria antonieta
“se o povo não tem pão
que coma brioches”
mas eram croissants
de queijo
que vendiam lá.

a loja se chamava frère jacques
mas essa parte pode ter sido
inventada.

Still life

as crianças iam juntas
para o fundo do quintal
cada uma deveria escolher
no meio das folhas
uma lagarta.


as lagartas eram pretas e moles,
com riscos amarelos
e, numa das extremidades,
a cabeça enorme e redonda
e vermelha.


você tentava imitar
as crianças maiores. para fazer
parte do grupo, tinha que
obedecer e fazer o que
elas mandavam.


cada criança deveria
pegar uma lagarta
com as mãos
e puxar as extremidades da lagarta
até arrebentar a lagarta.
a brincadeira era essa:
arrebentar lagartas.

você segurava a lagarta preta na mão
ela tinha o corpo mole
e ficava se mexendo na mão
você segurava e pensava:


1. ir rápido
se for rápido
pensava
se for rápido
acaba


2. é só fazer
e pronto
um puxão com cada mão
e pronto


3. rápido
pensava
segurar a lagarta e.


você ficava passando mal
olhando a lagarta preta e mole se mexendo
olhando a lagarta preta
bicho colorido andando
na palma da mão.
as lagartas muito coloridas viram mariposas
chamativas               as lagartas muito coloridas
são indigestas para os pássaros.

...

Descrição de um quadro para cegos

me chamam abaporu:
do tupi, ‘homem que come gente’.
vivo num espaço retangular
com mais 3 elementos:
o chão, um cacto e o sol.


estou sentado de lado no chão,
com a perna dobrada junto ao tronco.
meu corpo é um corpo arredondado
e sem detalhes. não tenho boca,
nem orelha e estou sem roupa.


um dos meus braços é comprido
e tem o diâmetro da coxa.
ele está caído e, na extremidade,
tem minha mão que é maior do que a cabeça.


minha perna dobrada é imensa,
a coxa maior que o tronco,
a batata maior que a coxa,
e meu pé ocupa quase todo o chão.
a parte de cima do pé
tem a textura diferente, é mais lisa.


minha cabeça, pequena,
está reclinada e apoiada sobre a outra mão,
que também é minúscula.
meu rosto tem um relevo no nariz

e dois riscos,
que talvez sejam olhos.


no alto do retângulo está o sol.
é um círculo que fica à direita
da minha cabeça. dentro do círculo,
outro círculo menor
e mais áspero.
ligando os dois círculos,
linhas perpendiculares e finas
que constituem os raios de sol.


o sol esquenta a tela
e divide o espaço em dois.


eu estou de um lado e,
do outro, tem um cacto,
eis o terceiro elemento.
planta do deserto,
que deveria ter espinhos,
mas essa não tem detalhes.
é apenas um tronco que sai do chão,
com dois galhos que são braços arredondados
erguidos para o alto.


por fim, o chão no qual estou sentado.

deve fazer silêncio
nesse espaço:
talvez haja apenas um som seco
de planta que estala
sob o sol.


deve fazer silêncio
nesse espaço de quase 1 metro quadrado.
tenho a cabeça levemente caída
apoiada na mão
e espero.

Equinácea

desde que chegou
a grama do canteiro em frente
está em repouso invernal


todos os dias lê a placa
grama em repouso invernal
e sai de casa encasacada


todos os dias sai de casa, lê
a placa e pergunta:
o que vai acontecer com a grama
quando acabar o inverno?


há 3 dias foi o equinócio
e neste dia deveria chegar a primavera

do lado de lá do hemisfério.
mas o tempo fechou
fez frio, muito frio,
e você adoeceu.

...

quando conseguiu sair de casa
foi até a farmácia
e pediu: um remédio pra gripe?


há 3 dias estava doente
sem conseguir levantar
há 3 dias o tempo parecia melhor
e pela primeira vez
achou que fosse entender
o que significa o spring fever
mas acabou esquecendo
que aquele era o dia
do equinócio
e não contou as horas do dia
não reparou na luz
e nem nas equivalências
só no frio
e na grama achando
que acabaria o inverno


quando chegou em casa
já gripada, pensou:
eis o clima febril
pronto
de volta ao repouso.

na farmácia
pediu um remédio
e a moça da farmácia
olhou para você
e trouxe uma flor:
equinácea
falou


você esperou
achando que ela ainda traria
um comprimido
mas ela disse que era o que
tinha para gripe
equinácea?
você estava com febre
sem força para discutir
os franceses
adoram discutir


os franceses muitas vezes
ralham e os franceses
muitas vezes querem que
você responda
e os franceses
querem que você dê
um motivo lógico
para tudo

nem sempre
a gente tem motivos
lógicos
mas é preciso explicar isso
num francês correto
senão, eles mudam de língua
querendo dizer,
acabou


você estava com febre
e aceitou muda
a equinácea
às vezes você perde a língua
o outro não entende
o que acontece e nem você
que fica só muda
tentando achar alguma linha
agora acabou, pensa


no dia da equinácia
não conseguiu dizer
mais nada
voltou pra casa
e para a grama em repouso
começou a tomar
a outra grama
e aí se lembrou
da expressão que
diz que em abril
não se deve descobrir
nem um fio


abril é o mais cruel

Expedição nebulosa

as linhas verticais no quadrado
da janela     dójd idiot dójd assim
se diz que chove     o verso anda
sempre na horizontal mas quando
troca de linha o movimento é
diagonal
                 assim se diz está
chovendo 
ele dizia puxando as
linhas ao abrir a janela:      
a chuva na diagonal agora respinga
pra dentro e cada coisa com
a própria história: 
chuveiro, arraia, uma
expedição nebulosa.


agora lê na mandíbula dela
o que está faltando, lê nas
formas arredondadas a geometria
das coisas: uma tempestade 
num copo d’água. 
                              e ele? 
vivia debaixo do céu, arraia se
arrastando, e percorria
as cartas que podia
ter escrito:

1. “te procurei pelo cabelo, mas estava muito cheio”. 
2. “era algo parecido com a solução final”.
3. “escrevo pois me mudo em breve”.

..

 

Marília Garcia é escritora, tradutora e editora. Publicou os livros 20 poemas para o seu walkman, Engano geográfico, Um teste de resistores, Paris não tem centro e Câmera lenta.

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