Água branca e outros poemas 11/04/2018 - 16:10

Angélica Freitas


Rômulo Fróes toma uma decisão 

Para ir da tua cama à padaria
precisas vestir roupas de frio.
É inverno. Descer a rua e, pela calçada
(apenas pela calçada), caminhar
até o teu destino. Talvez a padaria
seja mesmo o teu destino,
a mão no bolso constata a carteira,
é melhor levar dinheiro,
sem dinheiro nada feito,
fiado só no dia de são nunca,
e com isso tu concordas.
Mas ao chegar na esquina,
confluência da tua rua com a da padaria,
precisas parar por tempo indeterminado,
pois são dois sinais de trânsito.
Carro sobe e carro desce.
E ao observar essas armaduras
metálicas que os teus semelhantes trajam,
não te deixando atravessar,
não deixando a senhora de calça de moletom rosa
e seus cachorros atravessarem,
nem o homem resignado, todo de cinza,
ao celular, do outro lado da rua,
que provavelmente acabou de sair
da padaria hipotética, destino agora distante,
ao observar quaisquer-uns ao volante
(teus assassinos em potencial),
que não dão nenhuma passagem
(a não ser desta vida para outra),
decides viver numa árvore.
Que árvore? Foda-se, qualquer árvore.
Uma que seja bem robusta.
Onde vais encontrá-la?
No Parque Buenos Aires.
E se as autoridades vierem atrás de ti?
Que venham.
O homem ao celular afinal atravessa a rua
antes de ti, sem tirar os olhos do aparelho.
A senhora de calça de moletom rosa
junta o cocô fresco de um dos cachorros.


Água branca, 1

No parque, sob uma luz chumbo
coada por nuvens espessas
estamos, sentados nos bancos
ao redor do campo de equitação vazio.
Atestamos a areia grossa
e alguma bosta úmida. Nenhum animal à vista.
Observamos a cancha,
os velhos que não temos celulares.


Água branca, 2

A esta altura da manhã
Em que o parque é povoado
Por velhos e por bebês de colo
O relógio digital do poste
Nunca informa o horário certo

...

Ilustrações: Rony Bellinho


Um excelente negócio

“Ya leíste a Carver?”, ela me pergunta,
e puxa da estante um volume fino,
capa azul marinho.

“Hay que leer a Carver”, e eu abro o livro,
e tomo um mate. Estou de jaqueta
e cachecol dentro de casa,
pareço um boneco de neve.

Fizeram a tradução com amigos,
depois fotocópias e, num fim de semana,
neste apartamento, montaram a edição truta.

Vendida a 10 pesos argentinos em 2006.

“Tenés hambre? Podemos hacer una pasta.”

Eu assinto com a cabeça. Largo o livro
e descemos para o mercado,
compramos espaguete e tomates.

Passo a tarde inteira de estômago cheio,
faço um café fraco e termino o livro.

Quando anoitece, ponho um gorro
e vou a pé até a praça no centro da cidade.

Meus sapatos não me protegem do frio.

A praça está vazia salvo por alguns cachorros.

...

...


As roupas vêm da Ásia

A calça é do Camboja
A camisa, de Bangladesh
Do Nepal veio a jaqueta
Os sapatos, da Indonésia

O blusão veio da China
A mochila, do Paquistão
As meias são da Tailândia
E os óculos, do Japão

As roupas vêm da Ásia
Vêm da Ásia nos vestir
Transportadas em contêiners
Vêm da Ásia pelo mar:

São milhares de milhas

Nunca pûs os pés na Ásia
Grata à indústria nacional
Que me fez sentir o vento
Num longínquo bambuzal

Ou as gotas de um rio sagrado
Que começa nos Himalaias


Poetas de festival

Os poetas de festival
seis senhores que se encontravam
havia muitos anos
em eventos literários
decretaram após o jantar
que poetas têm de permanecer solteiros

“Não existe poeta casado”, chegou a dizer o chileno
pançudo, quinze livros publicados
 
Após a refeição, se dispersaram
uns foram pro bar
outros, pro quarto

Evitei sua companhia o mais que pude
não por acreditar no matrimônio
mas pela simples razão
de não gostar de seus poemas

Eram poemas ruins, quem iria dizer
que não eram? 

Mas esses mesmos cavalheiros
em seus respectivos países
tinham a força de pequenos vulcões
quando se tratava de pôr
um selo de aprovação
no que se considerava poesia

Só fui encontrá-los no último dia
no mercado campesino
Compravam blusas de lã
e bolsas de couro para as esposas.

...

 

Angélica Freitas é poeta e tradutora. Publicou os livros Rilke shake e Um útero é do tamanho de um punho.