Conto | Rafael Gallo
Tango
Os bandoneóns começam. Três notas apenas lançadas ao ar, que já se torna mais espesso, amadeirado. Ainda está completamente escuro. Nós nos colocamos em extremidades opostas do palco, e do seu lado parece tudo vazio, porém: a sua presença ressoa até meu corpo, por alguma acústica mais secreta. Não posso te alcançar, tampouco enxergar, mas não tenho dúvidas de que está ali. Eu sinto você.
O piano ataca o primeiro acorde; no mesmo golpe um feixe de luz branca arrebenta sobre você, outro sobre mim. Arrancados da penumbra de repente, por um rasgo de cima a baixo na escuridão, nos encaramos nos papéis que todos podem presumir ser de amantes. Ainda persiste aquela espécie de susto sedutor ao nos depararmos? Na plateia, há um frêmito sensível, mas e entre nós? Algum vestígio desse assombro delicado? Há para você, Lucía?
Vejo sua sombra no chão, seu pé a desprender-se dela, como se o corpo e o espírito se separassem para esse momento. O quanto da Lucía com quem partilho a cama e os dias está nesta que agora baila comigo? Ergo também meu primeiro passo. A música pulsa em foles ofegantes. No ritmo, caminhamos um ao encontro do outro, minhas pernas pisando o mesmo instante das suas pegadas. Por quê, Lucía? Por que acertamos tão exatos os nossos passos juntos nessa dança, mas não em todo o resto? As agulhas dos seus saltos arrancam do tablado estalos intencionais, como se farpas direcionadas a mim.
Eu antecipo cada movimento seu, formamos nossa simetria um no outro. Depois de tantos anos, de toda a intimidade, sabemos nossos corpos de cor. Será justamente esse o problema? Porque agora suas curvas conhecem exatamente os limites da moldura de meu abraço, e então você se posta junto a mim, de costas, mas, mesmo sem ver, você sabe como quedar-se nos pontos onde tudo em nós se tangencia, sem que nada se aconchegue. Posso sentir as lantejoulas de seu vestido vermelho me roçarem, enquanto suas costas se previnem do meu peito. Cenicamente perfeito. Para a plateia que nos vê pela frente, a ilusão de sua entrega é total. Você sabe todos os truques, Lucía. Nós dois sabemos, pois eu também não invado seus limites invisíveis. Nem para fingir um erro da minha parte, que talvez poderia nos quebrar esse encanto de distanciamento.
Iniciamos as voltas, te lanço em rodopios velozes. Nesse circo que montamos de nós mesmos, deveríamos ser os alegres malabaristas um do outro, mas me sinto desenfreado dentro do globo da morte. Onde erramos? Talvez não seja essa a pergunta, mas sim: quais acertos nos condenaram? Porque no começo, errávamos tanto nosso bailar e, ainda assim, ou por isso mesmo, éramos tão mais próximos. Trocávamos um sorriso disfarçado a cada desacerto, um pequeno gesto oculto dos holofotes e da música, que nos ligava em uma harmonia paralela, só nossa. Onde estão essas coisas que pertencem apenas a nós dois? Parece que nossos elos mais íntimos ressecaram justamente ao crescer nossa intimidade. Não faz sentido isso, Lucía, não deveria fazer.
E se voltássemos a errar? E se eu cometesse um deslize agora, fraquejasse diante de você e de todos? Você aceitaria de bom grado esse sinal de fragilidade? Será que eu conseguiria te fazer sorrir de novo? Mas você nem me olha. É como se tivéssemos envelhecido dez anos para cada um que estamos juntos. Cadê a menina em você, o menino em mim? As nossas brincadeiras? Mantemos a seriedade por toda a performance, preservamos íntegro o totem de nossa própria mitologia. Um casal romântico e impetuoso: marcados pelo pesado contrabaixo, o violino cortante, os bandoneóns acariciadores e o piano que percorre extremos. É isso que somos? Nada mais do que essa sombra de cores fortes? Talvez tenhamos, então, nos enganado ao nomear o que são os erros e os acertos. Porque antes éramos mais felizes, estimulantes um para o outro. Éramos apaixonados, não apenas unidos. É um destino inevitável nos perdermos assim? Eu não quero; você quer?
Passo a mão pela fenda de seu vestido e a trama de sua meia-calça parece uma grade a me prender do lado de fora. Há outras fendas por onde eu poderia me esgueirar e tentar te alcançar? Te impulsiono para o alto, você se monta ereta, de cabeça para baixo. Uma torre sólida, que demanda força e confiança. O violino, solo, mantém a nota mais aguda, como se denunciasse o fio perigoso que nos sustenta. É essa linha tênue tudo o que temos? Mas se ela basta para nos manter atados, firmes, então deve haver uma maneira de refazermos os laços.
O público aplaude nossa acrobacia. Sei que mobilizamos todos na plateia, desde a admiração até a libido. Claro, dominamos como ninguém os gestos da volúpia, conseguimos elevá- los ao grau máximo. Conseguimos mesmo? Ainda que você desenhe curvas no ar, caia de pernas abertas em meu colo e nos entrelacemos em um encaixe escultural, você não parece se abalar. Eu ainda te provoco algo? Nossos gestos eficientes parecem não surtir efeitos. Enleamos a todos, noite após noite; desconhecidos que têm a mesma ilusão turística quanto ao casal no palco e toda a Buenos Aires, crentes de compreender o que veem, pela superfície bem arrumada para recebê-los. Cada homem aqui fantasia contigo, cada mulher comigo; sonham em viver sob nossa pele. Mas se é justamente sob nossa pele que tudo se dissipa... Amar é esse sonho, Lucía, que sempre se esvai?
Não sei o que aconteceu, o que acontece. Por que o desejo não é algo que aprimoramos com o passar dos anos, como nossas outras habilidades? Por que não ganhamos destreza na paixão como ganhamos na dança? Por que essa natureza oposta no nosso erotismo, que não se tonifica, mas justamente arrefece, quanto mais experiência temos? Que outros ensaios precisamos repetir, que outras técnicas praticar até a exaustão, para apurar cada detalhe de nosso enamoramento? Que partes de nossos corpos, que músculos, que pontos de equilíbrio precisamos conhecer melhor, para nos amarmos mais fortemente? Ou é inevitável perder-se nessa contramão entre o tempo e o querer? Seria preciso um treinamento reverso? Desaprender todas as técnicas, todas as sincronias do envolvimento, todo o conhecimento de nossos corpos? E é possível isso, Lucía?
Tenho vontade de te perguntar tudo isso, bem aqui, bem agora. Não quero estender meus braços como leme e te conduzir, dessa maneira; quero me deixar à sua mercê. Quero parar tudo isso, calar o piano, os bandoneóns e as cordas. Quero gritar contra seu rosto todas essas perguntas. Quero saber o que você pensa, quem é você. Quem é você, que não abre para mim esses olhos de rímel? O que somos nós, Lucía, o que podemos ser? Eu gritaria agora, mas você nem me enxerga. É preciso manter as expressões impávidas: o meu rosto em um domínio grave, o seu sempre como à iminência de um êxtase melancólico. Olhos semicerrados e lábios entreabertos: a medida áurea da lascívia. Ninguém conhece esses artifícios tão bem quanto você. Ninguém. Eu queria gritar contra esse seu rosto, Lucía. Mas você me responderia alguma verdade?
Abandono a cabeça em seu peito, sinto seu cheiro de suor e jasmim. Você me agarra os cabelos. Alavanco seu corpo para levitá-lo, você ergue sua perna como uma foice, desaba o fio cortante sobre a minha coxa. Te aperto mais forte do que deveria, para lançar um sinal. Mas você zela pela ordem da performance, retesa ainda mais o corpo para não deixa-lo se curvar além do ponto. Não haverá erros, nem desvios, nem sorrisos. A coreografia segue intacta, nós seguimos intactos.
Alcançamos o centro do palco, os compassos finais do tango. Os três atos desse romance em miniatura fecham- -se agora. Posicionados sob o holofote, montamos a posição cinematográfica de um beijo. Você se curva toda para trás, os cabelos e o vestido como abertos feito cortinas de uma alcova. Eu a abraço e me debruço sobre você, uma perna dobrada em apoio, a outra estendida, como as suas. Aproximo meu rosto do seu, tão lento quanto o ralentar das últimas notas musicais. Chego perto, perto, perto. Posso sentir o gosto rosáceo da sua respiração. Meu nariz toca o seu. Entreabrimos os lábios em entrega. Prestes tocarmos nossas bocas, a banda risca o acorde final e no mesmo golpe os holofotes se apagam.
Na escuridão total, eu sinto você. Sua boca fechando-se, afastada os milímetros necessários para eu me sentir jogado a outra extremidade. A dança acabada, eis de novo a Lucía com quem partilho os dias. Seu corpo teso na posição, mas sem esforço de qualquer busca a mais. Habituado ao fim. Mesmo ainda nos meus braços, você já tão inalcançável. Como eu faço para te tomar de volta? Precisa haver um jeito. Eu quero seguir com você. Com que passos, Lucía, me diga: com que passos você me escapa?
Rafael Gallo é paulistano, autor de Rebentar (Record, 2015), romance que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como Desassossego (Mombak, 2014) e Machado de Assis Magazine (Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol. Gallo vive em São Paulo (SP).
Lucas Sevilhano é ilustrador e aluno de Design Gráfico da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A partir desta edição, alunos da graduação passam a colaborar com ilustrações para o Cândido. Sevilhano vive em Curitiba (PR)