Poesia | Prêmio Biblioteca Digital 22/12/2020 - 12:14
Leia três poemas do livro Pangeia: A Etimologia do Ser, de Mariana Basílio, vencedor do concurso promovido pela BPP e disponível gratuitamente em e-book
Origens
I
O som do primeiro sopro.
A vogal submersa, sola.
A luz veloz é contínua.
O forro da forma dobra.
Ele senta, ela fala. A língua
solveu sentidos e os molda.
Ele, mundo, sereno salivar:
Sopram o desejo na maçã.
II
O que chamaram de Jardim;
Era uma vez, a mata. Frutos.
O sol chispa pela letra curva.
Era uma vez, árvore primária.
Húmus era o céu rangendo.
O silêncio, formado da pedra.
Humanos como bichos turvos,
o antes de qualquer incêndio.
III
A casa foi antes oca, antes chão.
CASA, CASCA, CAVA. O corpo
vem e dorme, séculos depois.
O primeiro ronco é rotineiro:
Distribui aos sons um novelo.
**
O berço foi antes tronco, antes gozo.
BERÇO, BAÚ, BOCA. O corpo
ainda regurgita, milênios afins.
A túnica única, fuga, nascimento:
Os últimos serão os primeiros.
***
O sangue foi antes água, antes óleo.
SANGUE, SUOR, SUMO. O corpo
ainda aguenta, segundos antes.
O fundo díspar, repente à caça,
um grito profético é descoberto:
eles serão o que não se mede.
A guerra originária
(Como sangue, existimos dentro dos gestos.)
Na disparidade laranja, o caminho do corpo
queima nas lascas e nos olhos do outro,
captando o prazer da nova vivência:
fumaça e duas mãos estendem-se.
O silêncio cobre com força a fauna:
A nuca que aquece outra, a abraça.
Faíscas rasuram o instante de dor,
mas também dessa glória farta:
humanos descobrem o fogo.
**
Um diorama mostra, séculos depois,
dois Homo erectus – a espécie
mais antiga a controlar o fogo,
cerca de 1,8 milhão de anos atrás – no
Museu Nacional de História Mongol.
Ambos vagam pela imagem, frios
na ausência quente de seus calos.
Uma educação pela pedra, no fundo
desses gestos, revistos em 3D,
será a montanha intransponível.
Grunhidos cospem ardor e alegria.
Dentes resistem à feição dos bichos.
Soterrados pela vagueza da realidade,
enquanto uma só chama sobe, dura,
os dedos moles, entre ferro e retina.
O fogo é ali mantido, em desespero.
Palmas nascem pela primeira vez.
Uma barriga ronca, a outra cozinha.
Pelos crescem muito rapidamente,
pois a velocidade da luz etérea é
a seca acesa na bruma da noite.
No filme A Guerra do Fogo (1981),
de Jean-Jacques Annaud, a tribo Ulam,
menos desenvolvida, cultua o fogo
como o vento divino e sobrenatural.
Quando a fonte de fogo deles apaga,
outra tribo, Ivaka, mais desenvolvida,
os ensina sobre o amor da linguagem,
com gestos e grunhidos bem-feitos.
A língua acesa: o início da comunicação.
– Ahhnhubrbrrmmm?! Brrrrmmmmm.
Senta um homem ao lado da mulher.
Os dois observam o homem visitante.
– Brbrrrruruhm?! Ahhhhhubrbrmmm.
A mulher esfrega uma vareta na outra.
Os dentes apertam o seu lábio inferior.
Os cabelos são lascas, as unhas, cascos.
O visitante, Ulam, mexe mais as mãos,
côncavas, como duas fartas alavancas.
A fumaça logo extirpa o fio do fogo.
Ele então responde. Os dois se ouvem,
mas não conseguem expor uma só fala
que possa se compor superior à luz.
Dois olhos de íris castanhas refazem
o interior do fogo, enfim, azulado,
expandido na irradiação amarelada —
feito do vermelho sangue da caça.
***
Em seu ensaio sobre a origem das línguas,
Jean-Jacques Rousseau diz que não se sabe
de onde vem uma pessoa antes de ter falado,
“O amor, dizem, foi o inventor do desenho;
pôde também inventar a palavra,
porém com menor felicidade”.
Ao fundo da imagem do Museu, há
um desenho ainda pré-cuneiforme, um
barco pálido que possui braços de trovão:
“não é a linguagem que é natural ao homem,
mas a faculdade de construir uma língua,
vale dizer: um sistema de signos distintos
correspondentes a ideias distintas”.
Ferdinand de Saussure desenhava balões
quando era criança, pois o pai o havia deixado.
Enquanto viajavam em florestas tropicais,
os humanos erectus, antes de serem
sapiens, guerreavam pelo fogo
defendendo-se de sua fome: a carne
imóvel do animal logo capturado,
a carne viva dos dedos no inverno.
A magia do fogo fazia da névoa reflexo,
mesmo que a noite continuasse pesada.
Eles acumulavam finas e precisas brasas,
e assim as abrigavam das chuvas, formando
o primeiro arco-íris artificial do mundo.
Azuis e verdes escapavam dos olhos,
Marrons e vermelhos cobriam lábios,
Rosas e púrpura eram o topo dos dentes.
Mães e filhos brincavam de sol e de lua,
na tarde que juntos arqueavam o fogo
que se queimaria nos terrenos de mata.
Sem a fala, o tempo parecia imóvel.
Quando tornaram lar o Ártico estéril,
enquanto pessoas como nós eram ainda
deserto, eles levaram consigo a memória
do fogo até o infinito, pela gordura animal.
Charles Darwin considerou essas conquistas
como as mais significativas da humanidade.
****
Logo, as pessoas puseram o dedo no eixo do
globo, inclinando-o sobre o eixo do universo.
Fogo sobre fogo, lume sob lume, faiscaram
na antevida crescente do ser que ilimitado.
Milhares de varetas depois, um isqueiro se
dispõe por cinco dedos, pois há incensos:
uma janela foi aqui desenhada e moldada
sobre a minha tristeza, no ego persistente.
Ferro e fauna novamente se entranham,
com um gato dependurado na falange —
vespertinos, no meu canto de mágoas.
A linguagem do fogo é a palma das mãos.
A origem da fala é a captura da escuridão.
O sagrado, em hieróglifos
Os ossos espalhados ao chão.
Distante de uma composição final,
há um crânio largo e jogado, de bruços,
quando todo o cimento é misturado pela
pá enferrujada, unido à crua argamassa.
Hemisférios residem milenares no
18º andar deste Edifício das Plumas,
subúrbio remoto do Rio de Janeiro.
Hieróglifos da Anatólia não exprimem
com a pura verdade as lágrimas da mãe
descendo cruas nos lábios moribundos
e ocos da filha, incinerada pelo tráfico.
Os anéis espalhados são júbilos,
ondas finas que não vestem o mar:
o pódio da linguagem, um adeus.
Como também já cantaram o amor
na lâmina afiada das horas, quando
não pôde dizer o que comunicava
necessário: nos ausentes, exaustos.
Ceivavam o som na cunha da pedra.
Estralada e assassinada no monte
desprezado do silêncio, arriscando
nas mãos dos ignorantes humanos
a promulgação de leis em sua língua.
Astecas, cretenses, egípcios e maias,
olmecas, além dos povos de Mi’kmaq,
Muisca, Ojibwe escreviam argilados —
tontos de querer a retomada do fogo —
talharam o nascer do sol no crescer
do trigo, às vésperas da chuva —
tralhando o canto da sereia perto do
nascimento do bebê, que morreria.
O assassino, a rainha, a escrivã:
em todas as formas dos órgãos,
desenhos se tornam a própria vida
nos punhos rasos dos antepassados:
a todos é o que ela foi se tornando.
Desenhos amontoados são vazios.
Ambos seguram cunhas moldando o
destino precípuo de homens e mulheres:
a muralha tostada é sempre a eternidade.
O sol cingido no trajeto, antes e depois.
A nuvem da noite o guia mais veloz.
Símbolos formam os feixes dos sons.
Viver é a conformidade da exaustão.
Mãos negras se tingem no vasto azul,
trazido pelas correntes da planta rara:
os dedos molhados coroam nas grutas
magdalenienses da Europa Sul-Atlântica
esses longos ossos cariocas, com afeição.
Do azul da água, do cume daquela noite
nas intempéries até o presente, ouvem
o escombro fatal do fundo logograma:
ancestrais e fuzis dos matos da cidade
formam os pés que não se caminham.
Mariana Basílio nasceu em 1989, em Bauru (SP). Mestra em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), é prosadora, poeta, ensaísta e tradutora. Autora dos livros de poesia Nepente (2015), Sombras & Luzes (2016), Tríptico Vital (2018) e Mácula (2020) e da plaquete As Três Mal-Amadas (2018). Mantém o site www.marianabasilio.com.br.
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