REPORTAGEM | O Oscar de Cutitiba – a história do festival de cinema Tribunascope 09/06/2025 - 14:57

Por Carlitos Marinho 

 

A vitória do filme Ainda Estou Aqui na categoria Me­lhor Longa Metragem Internacional no Oscar trouxe à tona uma discussão fundamental para o cinema: a importância da memória visual e fotográfica na construção de narrativas. A obra, estrelada por Fernanda Tor­res e Selton Mello, utiliza registros familiares e fotogra­fias para compor sua ambientação e reforçar o peso do resgate histórico. O processo dialoga diretamente com o trabalho desenvolvido pelo Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR), que tem sido um importante guardião de acervos e referência para pesquisadores e cineastas.

No Paraná, diversas produções já se valeram do acervo do MIS-PR para trazer à tona fragmentos do passado e recontá-los sob novas perspectivas. Um des­ses casos é o livro Tribunascope – de calçada da fama à guia da calçada: memória de um festival internacional de Curitiba, dos historiadores Vidal Costa e Christina Pinto, da editora Factum. Os autores resgatam a história do Festival Tribunascope, o "Oscar de Curitiba", evento que premiou produções nacionais e internacionais de 1960 a 1965, mas que foi gradativamente esquecido ao longo das décadas.

 

Elenco do Psicose em Curitiba

A pesquisa de Vidal e Christina teve início em 1992, quando buscavam o tema apropriado para o trabalho de conclusão de curso em História, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Apaixonados por cinema, gostaram do tema proposto em uma conversa com o historiador e galerista Marco Mello, que revelou para eles a curiosa história de um festival internacional realizado em Curitiba na virada dos anos 50 para 60.

A partir de diálogo com o jornalista Aramis Millarch, que noticiou os eventos do Tribunascope na época, os jovens passaram a conhecer mais sobre os anos per­didos do festival. Também buscaram informação em curso realizado por Valêncio Xavier e Jean-Claude Bernadet nas antigas dependências da Cinemateca de Curitiba. Contudo, foi numa missão investigativa bem su­cedida na sede da então TV Iguaçu, o Canal 4, que os pesquisadores encontraram dados relevantes.

O historiador detalha como, durante suas pesquisas, teve acesso a documentos originais da época, como notícias sobre as aventuras do estrelado elenco do filme Psicose (Alfred Hitchcock, 1960), que foi ao festival em Curitiba. "Fomos ao Canal 4 da TV Iguaçu, onde, no subsolo, funcionavam as instalações dos jonais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná. Tivemos acesso ao necrotério do jornal, que era 'extremamente organizado', com pilhas e pilhas de caixas amontoadas em um salão imenso", relata.

 

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Da esquerda para a direita: Irma Alvarez, Jece Valadão, Vanja Orico, Janet Leigh, Anthony Perkins e Karl Malden, no festival de cinema em Curitiba

 

Em busca dos acervos perdidos

O resgate da história do Festival Tribunascope passou por diversos desafios, sendo um dos principais a falta de registros organizados. Vidal Costa lembra que o curso de História da UFPR, onde iniciou a pesquisa, não possuía computadores na época. "Nós tínhamos um computador que ficava no meio do corredor e não existia Word. Ele não tinha Windows e usava o programa de edição de texto WordStar, que era toda tela preta com aquelas letrinhas verdes", conta.

No último dia antes da entrega do trabalho, um vírus chamado "ping pong" apagou todo o material. Sem alternativas, o pesquisador solicitou um tempo extra à orientadora e conseguiu que um amigo recuperasse o texto bruto, que veio sem formatação, sem parágrafos, acentos ou pontuação. Todo o conteúdo precisou ser reescrito manualmente antes da impressão e entrega. O trabalho foi aprovado, mas a única cópia foi arquivada pela orientadora Ana Maria Burmester, que faleceu anos depois, resultando no desaparecimento do material.

Em 2018, na tentativa de novamente resgatar a his­tória do Tribunascope e transformá-la em livro, os pesquisadores não conseguiram encontrar a monografia do TCC no acervo pessoal e nem na UFPR, já que monografias de graduação não eram arquivadas na instituição. A única referência disponível era o texto de qualificação do artigo, que Vidal manteve arquivado ao longo dos anos. "Nunca jogue fora nada. Como dizia minha avó, quem não joga fora nada sempre vai ter o que precisa", brinca.

Além das dificuldades acadêmicas, também houve obstáculos na imprensa. O acervo do jornal Tribuna do Paraná, que cobria o festival, foi adquirido pela Gazeta do Povo quando O Estado do Paraná faliu, ficando sob a guarda da GRPCOM. Como esse material não foi integrado ao projeto da Hemeroteca Digital, ele se tornou inacessível para pesquisas.

Os pesquisadores também recorreram à Casa da Memória, onde conseguiram acessar documentos e listas de premiados que não estavam disponíveis em outros acervos. Lá, encontraram informações cruciais sobre os festivais de 1964 e 1965, além de registros pu­blicados em revistas de cinema nacionais fora do Paraná.

O Museu da Imagem e do Som também foi fundamental neste processo. A instituição forneceu diversas imagens que compõem o livro. "Disponibilizamos fotografias do nosso acervo, permitindo que esse resgate fosse feito com a riqueza e a autenticidade que só as imagens da época podem oferecer", explica Mirele Camargo, diretora do MIS-PR.

 

Festival de Veneza + Oscar: Tribunascope

A preservação desse tipo de material torna possível reconstruir contextos e entender como o cinema foi utilizado não apenas como expressão artística, mas tam­bém como ferramenta de influência cultural e ideológica. Os pesquisadores entendem que o júri do festival se inspirou no modelo europeu que inaugurou o tipo de evento filmográfico. Ao repetir o padrão de festival da época, como o de Veneza (1932), os prêmios refletiam as diretrizes políticas deste período. 

Ainda que em contexto e formato diferentes do ita­liano, o Tribunascope foi divulgado como "Oscar de Curitiba", sem sessões de filmes e com intuito de nacio­na­lizar Curitiba que, até então, somava 360 mil habi­tan­tes em 1960, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

O jornalista correspondente dos EUA

Vidal relembra que o Festival Tribunascope foi cri‐ ado em 1959 por Júlio Kogut Neto (1931-2020), que as‐ sumiu a coluna de cinema do Tribuna do Paraná e deci‐ diu retomar a iniciativa de um festival internacional de cinema em Curitiba. O evento rapidamente ganhou no‐ toriedade ao premiar filmes não apenas nacionais, mas também internacionais. "Nunca imaginaram que fosse algo grande, pensaram que renderia um ou dois even‐ tos no máximo", conta Costa.

A investigação também trouxe destaque sobre a função profissional de figuras importantes envolvidas no festival. "Tive acesso a material, artigos de jornal sobre o falecimento do Júlio Kogut. E só nesses artigos é que tive a informação da importância dele para o jornalismo curitibano", relata. A nota cita Kogut como Diretor do Serviço de Informação dos Estados Unidos (USIS) e ganhador de medalha do governo americano entregue na sede da Agência Central de Inteligência (CIA), em 1990.

De acordo com a nota de falecimento publicada no Tribuna do Paraná e republicada no livro, Júlio Kogut também trabalhou por duas décadas como correspondente do Governo Americano e diretor do United States Information Agency (USIA), sendo condecorado em 1974 com o Meritorious Honor Awards, pela criação e condução da coluna Panorama das Américas. Esses detalhes ajudam a compor um quadro mais amplo sobre as motivações por trás do festival e seu impacto na cena cultural da época.

 

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Janet Leigh, atriz do filme Psicose, subindo ao palco do Cine Vitória, em Curitiba

 

Expansão midiática norte-americana

No livro, os historiadores explicam que USIA foi cri­ada em 1953 com o objetivo de expandir e solidificar a esfera de influência cultural norte-americana para os povos estrangeiros. Com um grande orçamento de US$2 bilhões anuais — uma grande bolada para a época —, a agência tinha mais de 10 mil funcionários diretamente contratados pelo governo americano, espa­lhados em 150 países, envolvendo mais de 70 línguas diferentes.

De acordo com o levantamento, a atuação da agência intermediou a programação de rádios, criação de acervo de bibliotecas, publicação e distribuição de livros, produção televisiva e cinematográfica, além de promoção de instituições de ensino de língua inglesa, sob orientação prévia do material didático utilizado.

Também passou a coordenar a agência de notícias Voice of America (VoA), que publicava 66 revistas, jornais e outros periódicos, e alcançou tiragens anuais de 30 milhões de edições distribuídas em 28 línguas com estas publicações. Também foi responsável pelo fomento de um sistema de bolsas de estudo para alunos estrangeiros fazerem intercâmbios estudantis culturais. 

Como constata pesquisa interna feita em 1959 pela agência americana e relatada por Fernando Santomauro, autor do livro A atuação política da Agência de Informação dos Estados Unidos no Brasil (1953 – 1964), a USIA conseguiu emplacar seu boletim infor­mativo para boa parte dos veículos de imprensa. O le­vantamento apontou que quatro dos cinco jornais, no­ve entre dez radialistas e três entre cinco revistas rece­beram propaganda norte-americana. Quase um ter­ço das estações de rádio e TV cobertas pela pesquisa usaram mais de 50% do material – número que era maior nas capitais e no Norte brasileiro.

Os pesquisadores chamam a atenção para o fato de que Júlio Kogut Neto, responsável pelo evento de cinema, se tornou diretor de divulgação e relações culturais dos Estados Unidos em Curitiba, condecorado com a Meritorious Honor Award, que pre­mia especificamente "atos ou serviços especiais ou performances contínuas de caráter excepcional". Por ser uma honraria mui­to posterior ao evento, não é pos­sível associar à produção do festival, contudo, o jornalista testemunhou uma rede onde usuários das agências de notícias poderiam passar de colaboradores a associados.

Graças ao trabalho dos historiadores, somado ao apoio de acervos – como o do MIS-PR, e a publicações que também registram a história cultural do Paraná, feito pela editora Factum – a história do Tribunascope, antes restrita a poucas lembranças, ago­ra ganha um novo fôlego.

 

Carlitos Marinho nasceu em Mariluz no Paraná. Formado em jornalismo pela Unicentro, em Guarapuava. Atualmente, trabalha na Secretaria de Comunicação do Paraná e é colaborador do jornal Cândido.

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