ESPECIAL CAPA | O futuro do daltonismo 11/06/2025 - 09:01

Por Cristiano Castilho 

 

Foi por volta de 2003, quando estava no meu primeiro ano no curso de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR), que Dalton Trevisan encarnou. A proposta do professor (e hoje vencedor do prêmio Jabuti, Cristovão Tezza) era encenar um texto. Personificar a palavra, por assim dizer. Eu, com mullets não deliberados, e minha turminha, embalada por The White Stripes e Franz Ferdinand, escolhemos o conto "Uma Vela Para Dario", publicado originalmente no livro Cemitério de Elefantes (1965). O texto virou um clássico do repertório daltoniano ao escancarar as múltiplas crueldades de nós mesmos. Então, numa manhã qualquer, bem cedinho, em frente à turma, eu estava lá, desfalecido tal qual Dario, sendo afanado vagarosamente por alunos de jornalismo que se passavam momentaneamente por curitibanos mais do que comuns.

O texto, e principalmente, a interpretação – menos por seu talento, e mais por sua força realista – nunca saíram da minha cabeça. O desfecho do conto – "o toco de vela apaga-se às primeiras gotas de chuva, que volta a cair" – retumba ainda como uma marca que, anos depois, percebi ser um marco. Dalton Trevisan sempre pensou no arremate, seja na obra ou na vida. Saiu de cena em eterna paisana, em 9 de dezembro de 2024, pouco mais de seis meses antes de completar 100 anos (14 de junho de 2025), quando convescotes, reedições, eventos literários e tais eram planejados em sua homenagem. Colocou água no chope, diria um Nelsinho contemporâneo.

Uma das trajetórias mais longevas e prolíficas da literatura brasileira certamente deixa um legado. Para leitores como eu, a sensação de que Trevisan foi capaz de perceber tão a fundo a realidade ao ver o mundo dessa forma mais espiada, inibitória, sem não algum romance providencial ou um não-romance cauterizado por violência, animalidade e sátira social. Mas para escritores da nova geração, que daltonismo é esse? Qual a influência de alguém que começou a escrever ainda nos anos 1940, que simbolizou a transição entre regionalistas e urbanos? Que dedicou oito décadas aos livros? De alguém, enfim, que fazia questão de desaparecer para que sua obra se concretizasse?

"É como pegar o que o [Ernest] Hemingway fez em termos de 'redução de palavras' e elevar à milésima potência", diz Lucas Mota, vencedor do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Romance de Entretenimento com o livro Olhos de Pixel. Lucas tem 35 anos, nasceu em Umuarama, mora em Curitiba há 15 e lançou recentemente Moeda de Troca, livro de fantasia urbana permeada por críticas sociais e referências à cultura pop. "Fiquei impactado. Um livro da década de 1960 traz a figura do homem tradicional, aquele que acredita que as mulheres são meros pedaços de carne, e trata-o literalmente como um monstro. Afinal de contas, é isso o que ele é. Para nós, é muito fácil enxergar dessa forma hoje em dia, mas repito: estamos falando de um livro de 1965, publicado um ano após o golpe militar. Há uma acidez, um sarcasmo e uma crítica muito à frente do seu tempo", completa Mota, referindo-se a O Vampiro de Curitiba.

 

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À esquerda, primeira edição do livro O Vampiro de Curitiba pela editora Civilização Brasileira S.A., 1965, e a versão mais atualizada, pela editora Todavia, lançada este ano

 

A superação do mito

Em 2012, Dalton Trevisan não deu as caras na cerimônia de entrega do Prêmio Camões, o máximo reconhecimento da literatura em língua portuguesa. Ora bolas, nenhuma surpresa. Segundo Sonia Jardim, sua editora à época, ele enviou por fax uma carta de agradecimento em que se lia "os muitos anos, ai de mim, já me impedem de receber pessoalmente o prêmio". A ojeriza a aparições públicas foi marca indelével de Dalton depois de certo tempo. E é curioso pensar sobre isso num momento em que o culto à imagem e o narcisismo virtual predominam, inclusive na literatura, com booktubers e afins. Mas, cá entre nós, não seria a própria essência de Curitiba um ingrediente a mais nesse caldo de autorreclusão? "Ele esporrou uma capital em sua ficção, tendendo ao mito, com a dedicação de alguém que leva a sério seu ofício. Pode não ser minha literatura de predileção, e é isso até hoje, mas Dalton é inegavelmente importante. Quem se doa ao ofício como ele fez merece tudo que há de melhor", diz João Lucas Dusi, autor de livros como O Grito da Borboleta (2019) e O Diabo na Rua (2022). Dusi esbarrou com o autor pela primeira vez aos 20 anos, quando era estagiário na Biblioteca Pública do Paraná. Hoje, aos 30, está à frente da editora Madame Psicose, com seis li‐ vros no catálogo até o momento.

A relação Dalton-Dusi começou com tretas e sobressaltos típicos da adolescência. "Li O Maníaco do Olho Verde e não gostei. Não me tocou, é verdade, mas certamente fiz o que fiz sem pensar direito: a arrogância da juventude; a necessidade de autoafirmação; a superação dos ídolos. Com o passar do tempo, principalmente ao exercer a função de editor, tive maior clareza da importância da proposta do Dalton: a meticulosidade da prosa de cortes rápidos, bem pensadinha em seus mínimos detalhes, em busca de uma composição funcional para cada peça ficcional", afirma o escritor e editor curitibano, que está "empacado" em seu segundo romance, Redemunho, e que, com a rotina das letras, não se furta em saber "qual a nova presepada do ganhador do Big Brother". Depois da relação apaziguada, a valorização e a influência de Dalton vêm de maneira curiosa, e cheia de uma autoestima justificável: "Eu quis criar a minha Curitiba, e não seguir a dele. Acho que, pensando assim, foi bem importante: buscar superar quem é parâmetro ajuda muito um escritor".

 

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Dalton Trevisan

 

Dalton cancelado?

Em alguns nichos literários, clubes de leitura, e principalmente em comentários em redes sociais, há a sensação de que gerações mais novas promovem um cancelamento automático de Dalton Trevisan, acusando-o de machismo, misoginia, LGBTI+fobia e mais. "Se você perguntar a essas pessoas quais textos do Dalton leram, elas não sabem responder. É claro que nenhum autor, vivo ou morto, deve ser idealizado. Mas quem realmente lê Dalton a fundo sabe distinguir o autor de seus narradores. Sabe que ele constrói estereótipos justamente para criticá-los, que a ironia e a crítica social estão presentes em cada linha, e que o desconforto causado por seus personagens não é gratuito: é literatura em seu estado mais inquieto", diz Alexander Brasil. O curitibano tem 27 anos e é um dos coordenadores do Tirésias: Clube de Leitura, com foco em obras com temáticas de gêneros, sexualidade e outras intersecções. Em 2014, recebeu o Prêmio Visibilidade pela ONG Aliança Jovem LGBT; em 2019, venceu o Concurso Literário Luci Collin.

Alexander lê Dalton desde a adolescência, e tudo começou (também) na sala de aula, quando foi apresentado ao conto "Apelo", em que um homem, narrador da história, se dirige à companheira ausente, refletindo sobre o impacto dessa ausência no cotidiano da casa. "Este texto é notável pela amplitude de significados que oferece. À primeira vista, pode ser lido como um conto romântico, melancólico — a súplica de um homem diante da ausência da companheira. Mas, sob outro olhar, mais contemporâneo, é possível enxergar camadas que problematizam as relações de gênero, o lugar da mulher na estrutura doméstica e até os limites entre afeto e posse, por exemplo", explica Alexander, formado em Letras pela UFPR e mediador de leitura no programa Curitiba Lê. "Outro conto que levo comigo sempre é 'Rita, Ritinha, Ritona'. Sob uma leitura contemporânea dos estudos de gênero, o conto revela a trajetória de apagamento da subjetividade feminina por meio do controle patriarcal disfarçado de amor. A narrativa joga com estereótipos, ao mesmo tempo em que os subverte. Cada conto é como uma pequena armadilha literária — e a gente nunca sai ileso", argumenta o curitibano.

Alexander Brasil ainda não publicou livros. Nada que o encasquete. "A juventude tende a achar que ser jovem é a coisa mais legal do mundo — e essa arrogância, essa ideia de ser genial, de ser um prodígio, é algo que, com o tempo, vamos deixando para trás. Sou só um cara tranquilo escrevendo coisas não tão tranquilas assim. Um dia, o livro sai", diz o jovem, que guarda com carinho a antologia Gente de Curitiba (2023), edição do autor, com contos selecionados pelo próprio Dalton Trevisan.

 

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Ilustração de José Guadalupe Posada usada na capa de O maníaco do Olho Verde (2008)

 

A magia de Dalton

Com algum risco, é possível dizer que Dalton tem a sua magia. Na literatura, o gênero tomou conta das livrarias principalmente a partir do lançamento de Harry Potter e a Pedra Filosofal, publicado pela escritora britânica J. K. Rowling em 1997. Muita gente, como a carioca radicada em Curitiba, Clara Madrigano, de 38 anos, começou nas letras por aí. "Sou da geração que cresceu lendo Harry Potter. Fui ler Dalton quando adulta – quando decidi que escrever era mesmo o que eu queria fazer, e procurei entender melhor o conto como uma forma própria, não como um mero 'treino' para a escrita de algo mais longo", diz Clara, que chegou a abrir uma editora independente chamada Dame Blanche, e que hoje é o que se chama de slush reader de uma revista gringa – ela lê os originais que são envia‐ dos e recomenda ou não a sua publicação.

O jeito despojado e irônico de Dalton Trevisan causou estranheza em Clara. Desafiou a sua zona de conforto, ao ponto de ela se perguntar "é assim mesmo a tal da literatura séria?". O fato é que Dalton paira sobre nós, curitibanos em especial. Mesmo que tenha sido cabreiro com a vida, e porque, a seu jeito, foi afeito às gentes. "Saber de seu falecimento me comoveu. Quando me mudei para Curitiba, um amigo disse: 'todo mundo que quer ser escritor vai para Curitiba'", sentencia Clara, como se conjurasse um avada kedrava, de repente, em todos os pupilos inconscientes do Vampiro.

 

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lustração de Poty Lazzarotto

 

Cristiano Castilho nasceu em Curitiba (PR). Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e tem pós-graduação em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Foi editor, repórter e colunista do jornal Gazeta do Povo. Colaborou com os veículos VICE Brasil, Folha de São Paulo e Bem Paraná. É apresentador e produtor do programa Papo Educativa, da Rádio Educativa e da TV Paraná Turismo. Em 2019, lançou o livro Crônicas da Cidade Inventada, pela Arte & Letra.

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