CONTO | Em busca de um vampiro escondido 09/06/2025 - 11:54

Por Carlos Machado 

 

 

Mau, mas meu – pipia você, grão−barão patusco. Mau, sim, nem seu, paráfrase, pasticho, pálido eco alheio.

Dalton Trevisan em Dinorá (1994)

 

Joaquim está estirado no chão de seu quarto segurando em suas mãos um livro que cobre todo seu rosto suado. Durante a semana, Curitiba viveu a maior onda de calor dos últimos cinquenta anos! E hoje parece ter sido o dia mais quente. Na rua, o movimento de pessoas já padeceu há muito tempo — passa das quatro horas da manhã — mas dentro de seu quarto, Joaquim ainda parece sentir a presença de dezenas de vozes acalentando e perturbando sua madrugada. Sente arrepios na barriga. Ansiedade. Ele está prestes a conseguir o que muitos já haviam tentado e não tiveram sucesso: a entrevista com Dalton Trevisan havia sido marcada para às quatro horas da manhã, na antiga Boate Marrocos. Tudo estava acertado: pela manhã Joaquim telefonou para o contista, que o tratou muito bem, dizendo que estava decidido a contar tudo que sempre fez questão de esconder. Joaquim não se continha de alegria. E não era para menos: iria encontrar-se com Dalton Trevisan!

Com muita dificuldade, ele tenta apoiar-se na estante de livros para levantar-se. Consegue ficar em pé. Cambaleia até o interruptor e acende a luz. Percebe que, ao se levantar, derrubou dezenas de livros pelo chão, amassando alguns deles. Ele sempre detestou folhas maltratadas, sempre cuidou muitíssimo bem de seus livros como se fossem sua família, mas neste momento não se motivou a ir até eles e catá-los. Deixou-os por lá. Precisava ir até o banheiro para lavar o rosto que minava suor. Enquanto caminha até a pia de seu banheiro, dá-se conta de que, desde o momento em que desligou o telefone pela manhã, após ter combinado tudo com Dalton, ficou deitado no chão de seu quarto sem se mover, imaginando como iria ser o encontro com o escritor. Sim, ele está com medo do Vampiro. Não conhece seu rosto e as únicas imagens que tem dele são os desenhos do Poty que mostram um Dalton que sempre caminha para frente, nunca voltando. Joaquim sabe que se o visse de costas facilmente o reconheceria.

Sente vontade de vomitar. Depara-se com sua pálida e suja imagem no espelho, e por trás dele observa a passagem de inúmeras musas pernetas. Tenta abrir a boca para olhar os buracos nos dentes, mas o máximo que consegue é um tímido mover dos cantos de seus lábios. Seu rosto parece sumir e dar lugar a uma outra silhueta: vê um brilho saindo da boca, parece um dentinho de ouro que brilha incessantemente, querendo aparecer. Vê uma bigodeira adornando sua cara branca e maltratada. Embriaga-se com a fumaça do (eterno?) cigarro. Joaquim sabe que não é ele quem está ali. Talvez seja o Dalton. Tudo que conhece sobre a não-sabida aparência do escritor, leu em seus contos. Ouve uma voz: “Para que entrevistas? Tudo o que tenho a dizer está nos meus contos; sou as palavras que você lê em meus livros!” Tem medo. Com esforço, livra-se do espelho abaixando a cabeça para dentro da pia já cheia de água. Mergulha todo o rosto. Fica assim por alguns segundos. Logo, volta a reconhecer sua face bolachuda.

Joaquim escuta alguns gritos vindos da sala. Estranha a presença de alguém em seu apartamento: nunca traz ninguém para dentro. Mesmo sentindo uma forte tontura, corre em direção às vozes que ouve. Vê um casal e suas cinco filhas encostadas no canto da parede, entristecidas: duas mais velhas e as outras três bem novinhas. Os dois discutem. O homem, que parece estar muito bêbado, bate na mulher sem piedade e não perdoa nem as crianças. Joaquim tenta impedir, mas não é visto pela infortunada família. É como se estivesse assistindo a um filme. Ele reconhece a história. Sabe quem são. Grita para João parar de bater em Maria, mas ninguém o escuta. De súbito, Rosinha, de treze anos, pede para Joaquim sair de lá porque, se o pai dela o vir parado ali, é capaz de bater nele também. Agora todos parecem tomar consciência de sua presença
na sala. Joaquim sente uma forte vertigem: não sabe o que está acontecendo. Percebe que João carrega um reluzente facão em sua mão. Refugia-se na cozinha.

A cozinha havia virado um harém. Havia algumas mulheres seminuas mostrando seus deliciosos corpos. Joaquim vai até elas. Sente que, apesar de todo o cansaço, seu sexo começa a enrijecer. Está acostumado com esse tipo de mulher, sabe como agem: entrega-se em seus braços. Gosta delas. Elas começam a tirar sua roupa, a começar pela calça, até chegarem na peça mais importante a ser retirada: a cueca. Algumas delas ajoelham-se e colocam o sexo de Joaquim na boca, uma por vez, enquanto as outras, inteiramente nuas, acariciam umas às outras. Espasmos. Toda a casa é infestada pelo cheiro do sexo vindo da cozinha. Gozo. Enquanto colocava sua roupa, Joaquim escutava as meninas conversando entre elas. Ele as reconhece: Dinorá?, Célia, Nataschesca, Valquíria, Alice, Uda e Otília, todas felizes teúdas e manteúdas! Joaquim apavora-se: já são quase cinco horas da manhã. Passa correndo entre as meninas e volta para a sala. Vai direto para a porta. De lá vê João e Maria, nus, deitados em um sofá vermelho. Eles parecem amarem-se.

Na rua, já começam a aparecer as primeiras pessoas pegando seus ônibus para trabalhar. A boate Marrocos não fica longe de seu apartamento, mas Joaquim já está uma hora atrasado, portanto corre. Vê de longe uma fraca luz em cima do nome Marrocos. Sente-se vazio. Para ao lado de uma árvore e vomita uma água rala. Aguarda diante da porta da boate. Não sabe se vai encontrar um Dalton receptivo ou furioso pelo atraso. Joaquim esquece-se das perguntas que havia pensado em fazer ao contista. Entra na boate. Está vazia. Não vê ninguém por lá, escuta apenas uma música saindo de umas velhas caixas de som penduradas nos cantos da boate. Caminha em direção a um pequeno balcão — parece ser o bar da boate. No canto esquerdo do balcão, encostado de lado, Joaquim vê a presença de um homem. Ele força os olhos para tentar identificá-lo. Percebe que o homem está segurando um copo cheio de bebida e fuma um cigarro. De relance vê um brilho vindo da boca (com bigode) do homem: dentinho de ouro. Dalton, o cabotino. Nesse momento, sente um vento quente efervescendo seu corpo. Alguém desliga o rá‐ dio abruptamente. Joaquim vira-se por um momento para ver quem mais está ali. É uma mulher. Quando volta o rosto na direção do homem, nada vê. Ao seu la‐ do titubeia um morcego em um voo rasante. A mulher abre uma das janelas da boate. O animal dá algumas 63 voltas por ela antes de desaparecer pela fresta: o dia está nascendo.

 

 

Carlos Machado nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor, músico e professor de literatura. Escreveu 12 livros, entre os quais A voz do outro (2004), Poeira fria (2012), Era o vento (2019), Olhos de sal (2020), Flor de alumínio (2022) e Imagem invertida (2023), vencedor do 1º Troféu Capivara. Participou de algumas antologias como 48 Contos Paranaenses (2014), organizada por Luiz Ruffato, e Mágica no Absurdo (2018), feita para o evento Curitiba Literária 2018, curadoria de Rogério Pereira. Também integrou as listas de finalistas do concurso Off Flip 2019. Como músico, entre diversos trabalhos, tem seis CDs lançados. Este conto publicado no Cândido está no livro A voz do outro (7letras, Rio de Janeiro, 2004).

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