Poemas | Mariana Vieira 28/06/2021 - 12:45
A vela
caminho diariamente como se escrevesse um diário ou carregasse cuidadosamente uma vela cuja chama não deve ser apagada. todos os dias repito mentalmente que no dia seguinte contarei os passos e medirei as distâncias percorridas — o que acaba sendo sempre adiado.
Tarkovski, que não caminhava diariamente, escreveu em seu diário:
No dia 18 de outubro de 1970
Scherbakov enviou um telegrama dizendo
que foi queimada
a nossa casa
toda parte central foi queimada
a madeira toda
na véspera do incêndio
alguém que estava lá acendeu o fogão
talvez tenha sido isso
Em todo caso
a casa foi queimada
provavelmente o telhado deve ter desmoronado e as telhas devem ter sido quebradas
temos que saber sobre as telhas
De todo modo
não é nada alegre
Na primavera teremos que reconstruir
tudo
como queríamos antes
Ofélia I
este é um alecrim
serve para lembrar
não esquece
Ofélia II
talvez haja um erro lógico
na conclusão de que sou o corpo
que carregava
compridas orquídeas encarnadas
pendurava coroas de flores
botões-de ouro, urtigas, margaridas
nos ramos de um salgueiro
[à beira de um riacho]
e cantava fragmentos de velhas canções
quando um ramo invejoso se quebrou
Mariana Vieira é poeta, artista visual e arquiteta. Natural de Campina Grande (PB), vive no Rio de Janeiro, onde atua como professora da PUC. Publicou o livro de poemas Numa Nada Dada Situação (2020) e participou da antologia Alto-Mar (2017), ambas editadas pela 7Letras.