POESIA | Lorraine Ramos Assis 30/11/2022 - 11:33

Sem proveito e outros poemas

 

Lorraine Ramos Assis


 

Sem proveito
 

nesta tarde a surdina rasgará minha corrente de metal com um canivete

Smith e Wesson

Disse a mim mesma com uma caneta que me

foi dada a cinco meses em um papel

fixado em sua parede multicolor, arraigado

e agora rasgado

 

perfurar a linha encardida das velhas moças

arrancadas das águas da rua passo da bandeira

e colocá-las em um montante de pedras do que um dia foi

o real

imaginado

agora emergido do medo

me é espera de um ano de uma aula não ida
 

sempre cumpri com prazos, mas você não

 

refaço os andares como quem talhou as

abóbadas

tijolos de um sedento edifício

na pele escorada

agora com seu nome

inscrito


 

Antemão
 

intensidades variáveis se acumulam no papel

parasitário

parasita no entanto está aqui nas mesas do

trajeto de minha mente nos salões da ficção

de fato não há mais perspectiva por respostas

acredite

se não o de ilustrar minha mais autoexpressão

por inesgotáveis demandas

todas elas mais uma vez ilusórias

e afundar-me no balanço da vida

(o som elétrico repõem a vigilância dos nossos olhos…)

 

eu me falto ao longo de mim

quando as dívidas batem em minha porta

como um síndico

contador de meus rasgados débitos


 

As chamadas de Diderot

 

A solidão é composta por três unidades, não necessariamente

equivalentes.

Um, o alicerce: medo da morte.

Dois, a indiferença diante uma base relacional.

Três, a impotência perante o desejo do outro

 

Mamãe relatava sentir cheiro de flores nas

vezes em que

ao preencher os vagões com seus requintados

adornos

inalava a presença do cemitério do Caju

com os corpos clamando por ajuda
 

Cajueiro, cujo fruto é uma noz de amêndoa

suculenta e purificadora de ambientes

a que se come no momento a defumar

ou a deformar

 

Eles não sabiam mas

te invejava por sua indiferença registrada em

camisetas pretas dotadas de uma baixa

saturação e

um dia

fatídico dia

uma enfermeira me disse

 

O seu acesso está irregular

intravenoso

o ar não mais suturando a ferida

alarme disparado

o coração

a parar

 

Quando você olha de lado, lembro de meu pai

também foi um escritor

gostava de ser bajulado

e a redigir textos nas madrugadas

 

Você sempre preferiu a escuridão.

 

Quando a língua se abriu à crítica do conteúdo

formal

senti o ódio

ódio a formular nossa relação

tens ódio e amor mediante um dizer a

quilômetros de distância

escrita a quem cumprimenta

e finge um novo nome

 

Como faremos para desaparecer se tudo o que diz é

uma autoficção?

 

Eu te amo Eu te amo Eu te amo

com as hemácias inscritas no osso

temporal

caído no mesmo vagão no qual as mães

ao tentarem pegar nossas calejadas bagagens

pressentem a última flor a cair


 

Lorraine Ramos Assis (1996) é poeta, resenhista e editora. Teve trabalhos publicados em diversas publicações nacionais e estrangeiras, entre elas Vício Velho, Cult, São Paulo Review, Relevo e Granuja (México). Colabora com a revista Caliban (Portugal), além de integrar o corpo de poetas do portal Faziapoesia. Pesquisa a marginalização feminina em obras ficcionais e biográficas.