POEMAS | Samantha Abreu 29/11/2021 - 15:37

MAPAS E OUTROS POEMAS

 

Mapas

 

I

Quando nos encontramos sob o clarão

de um dia —

na hora mais viva —,

a luz que escapa pela fresta do corpo

te cega,

aí tateias meus meandros

enrolas os dedos nos contornos

 

também cobres teu rosto: o prisma

dos deslumbramentos.

e eu fecundo maravilhas,

enquanto teus pelos propagam o brilho.

 

tenho tonturas, ensaio vertigens,

uma respiração de cócegas,

eu sinto,

suave,

tua mão me avançando pelas costas

e desatando

meu desejo de pássaros.

 

II

Quando teu corpo se aproxima no meio de uma noite,

no breu,

eu vejo espatifamento de astros, eu acarinho

o céu com as pontas dos dedos.

 

Algo dentro de mim se debate

buscando

algo dentro de ti que te acalma

e que paira solene entre rajadas de vento.

 

Algo dentro de mim se debate

tentando

rasgar, tentando nascer no silêncio do teu hálito

em meu ouvido:

 

— teu voo é pleno; a rapina dos teus lábios me descobre.

 

Então

suscetível aos teus manejos na escuridão do quarto

uma arfada ávida me faz explodir

asas enormes.

 

*

 

Babilônia

 

Estou na casa do sempre
quando abres teu peito e crias imagens que reconheço profanas
desde tempos

 

atrás, o tempo do retrovisor, um pretérito,
outras formas de vida, suor,
uma arfada,
gametas e cigarros,

 

de memórias hieroglíficas,
dos símbolos: uma palavra é desenho com som.

 

Agora faz de conta que somos fluentes; que deciframos
a linguagem das caixas torácicas. Faz de conta
que já pronunciamos todas as
falas que dominam os gestos;

 

que já percorremos
todos os traços feitos por meus dedos em teu corpo.

 

Depois saltamos — juntos e destemidos —
na grande fornalha de fogo
que é teu coração-babilônia pulsando exposto.

 

*

 

As rezas que inauguram o dia

 

Há algum tempo eu me convenci de que poemas estão no início e no fim.

 

Então me levanto pela manhã
com metáforas enroladas na língua; com visões plenas de abismos.

 

Não respondo um bom dia sequer,
mas já repeti dois ou três versos em silêncio, um ritmo mental,
a incandescência do dia.
O poema do início, uma fundação.

 

Quando as lutas se acalmam e se abaixam as espadas,
eu volto ao poema em busca do fôlego, o fim da fadiga.
Abro os vãos da casa e avisto um descampado,
infinito campo de unguento.

 

O poema que é fim de tudo,
o impronunciável: um soluço que interrompe a lágrima.

 

 

Samantha Abreu (1980) nasceu e vive em Londrina (PR). É professora, produtora cultural e mestre em estudos literários pela UEL. Lançou Fantasias para Quando Vier a Chuva (2011), Mulheres Sob Descontrole (2015), A Pequena Mão da Criança Morta (2018), Debaixo das Unhas (2020) e O Coração e o Voo (2021). Participou de diversas antologias com autores de todo o país, entre elas 29 de Abril: O Verso da Violência (2015), Sob a Pele da Língua (2018) e As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (2021). Também foi publicada em sites e revistas literárias e teve textos adaptados para o teatro. Faz parte do Coletivo Versa, que pesquisa e divulga a literatura produzida por mulheres. Em 2020, recebeu o Prêmio Outras Palavras, da Secretaria da Comunicação e da Cultura do Paraná.