POEMAS | Mariana Basílio 27/03/2024 - 13:11
Dez anos de labirinto (poemas de 2014 a 2024)
Domingo da Ressurreição ou da Menina Síria سوريا
A menina estuda no campo de Za'atari
''Para Sírios refugiados'' diz a a placa.
A menina do campo de Za'atari
Será que apreende sua localidade?
Sentada sobre a Jordânia,
ao lado da Arábia Saudita,
acima do Iraque, الأردن
a Síria eclode ao norte,
Israel e Palestina ao oeste,
o mar Vermelho ao sul.
A menina aprende em Za'atari
lições que a mente encandeia:
bichos, cores, números, fábulas.
A menina do campo de Za'atari.
Será que prevê essa habilidade?
Uma cabeça sobre uma cabeça.
A sentença sobre o que se sentou.
O silêncio da atenção, sem intenção.
A tempestade na cadência da memória
parece fazer com que ela até flutue,
pois a menina avança com o lápis.
Sentada sobre a Jordânia ela,
de repente, finalmente sabe ler:
''Para Sírios refugiados''.
للاجئين السوريين
*
Sobre os calabouços mineiros
In memoriam aos rostos de Mariana e Brumadinho
Marrom é o lamaçal pelas paredes.
Imagino sem querer a minha serra,
a serra daquela mãe e da sua avó,
de todos os Andrades que passam
e passarão, na serra que não passa.
É estranho recompor a paisagem:
o arroz na panela, o trago na piteira,
o bebê no berço, o sal no pote,
o sofá e a cadela, o pote das moedas,
a borracha do chinelo, a água na chaleira,
o prato debaixo das mãos, a cadeira vaga,
no grito mais alto do mudo que vem dali,
mais alto que o sentimento do mundo.
Um cheiro de passado esvaído com os
defuntos escorados na avalanche, mas
a boca ainda se abre, a boca engole lama
nos olhos deles, são abelhas picando o ar,
os corpos mortos são estátuas à deriva
no museu nacional do esquecimento.
O tranco no peito é natural pelas boias
feitas de madeira, eles querem o socorro
rachando soltos nos sorrisos invisíveis.
Vermelho é o sangue que os circula,
mais tóxico que as lições esquecidas.
O tempo caindo, o mundo terroso são
bonecas grudadas pelo bueiro,
Irene no berço, Totó no sofá,
uma escova sem os seus dentes,
e o sal das lágrimas que o levou.
Um mísero pó de ferro, e este não passa.
*
Jenipapo Makuxi
In Memoriam Jaider Esbell
o direito à terra
na tinta natural
desliza apenas
no tecido devagar
por nadar temer
no meio os dentes
de caninos alinhados
conformou o rosto
teceu as imagens
na descida do pajé
neon é se arriscar
na serra do sol
a raposa espreita
véxoa o instante
adia os olhos quase
teme os toques ao
querer ser o encanto
volto à quando o
tempo avermelhava
pois a morte laranja
convoca por lâminas
à dança dos corpos
no calvário azulado
vazio e esverdeado
borrões às pressas
in natura de lágrimas
flutua no meio de
um novo jenipapo
ele sente a língua
adormecer com o
último respiro
do tecido afiado
arranca a tela
da pintura
final
pronto como
os ossos ao
afagar o toque das
narinas retoma ao
monte roraima sob as
tintas então diluídas:
venha... dorme.
*
Avivamento
Escuro e doce é que desce
o fogo-fátuo flutuador,
feito foice arde só depois
se você de pé resiste
sobre a quinta-coluna,
sobre essa chama fria.
berros elétricos da perda,
astronautas de ladainhas
uma declaração de amor
se aproxima vagarosa
sem a obsolescência
está a mil milhas
dos seus pés frágeis
de qualquer outro ar
para crescer e minguar
veja, os cheiros e cascatas
dominam nossos astros
no pouso dessa terra
não há quase gaiolas
veja bem, como você
voa aos cartões-postais
que não existem mais,
mas em Morse
já são uma realidade.
Mariana Basílio (Bauru, 1989) é escritora e professora. Autora dos livros de poesia Nepente (2015), Sombras & Luzes (2016), Tríptico Vital (2018), Mácula (2020), entre outros. Seus textos circulam em países como El Salvador, Espanha, México e Portugal. Em dezembro de 2020 recebeu o Prêmio Biblioteca Digital, da Biblioteca Pública do Paraná, pelos poemas de Pangeia: A Etimologia do Ser, impresso pela primeira vez em março de 2024 (Assírio & Alvim, São Paulo).