POEMAS | Luiza Mussnich 29/10/2021 - 13:17

sinais

 

o nervosismo mastiga as unhas

o frio eriça os pelos do braço

a vergonha tem bochechas vermelhas

o tesão faz despencarem cataratas, ergue monumentos

a fome devora o bom humor

a tristeza mingua

o prazer aperta os olhos

a sedução mordisca os lábios

a felicidade inventa dentes pelo rosto

a ansiedade umedece mãos

o sono escancara a boca

a raiva dói nos nós dos dedos

 

*

 

apocalipse

se o mundo acabar amanhã

sobram baratas

assentos do meio

jujubas laranjas

poemas

pizzas de aliche

tamanhos pp

carros brancos

milhares de galáxias intactas

o amo

 

*

 

rosto

se você fechar os olhos agora

talvez não se lembre da mulher

“bonita"

com quem cruzou na esquina

suas feições desapareceriam

no sono perdido da madrugada

por mais pesados que fossem os cabelos

por mais ritmado o balanço do corpo desafiando

a gravidade nos passos firmes

 

se você fechar os olhos agora

é mais provável que consiga lembrar

do motivo da risada, do arrepio, do toque, do entusiasmo das palavras, da conexão cerebral

esses atravessamentos

provocados por outra pessoa

a sensação é invisível e talvez por isso se fixe

para além

a imagem escapa como o cão amedrontado

a ideia não anotada

sobreposta por outra

o batom que extrapola os contornos da boca

quando se deveria prestar mais atenção

às palavras que profere

 

você não gostaria de colecionar álbuns

de sensações?

um arquivo de como determinadas pessoas te fizeram sentir

e voltar a elas de tempos em tempos

por mais que não possa

lembrar das listras na íris, da amplitude dos braços quando dançam, do abaulado na base do

pescoço por mais

que a memória não tenha rosto

 

*


pluma

 

escrevo esse poema no centésimo sexto dia sem te ver

começo a esquecer sua voz

a memória precisaria de fotografias

para recriar sua imagem

você já prestou atenção

que lembrar é de certa forma aproximar

do esquecimento?

lembrar é tornar algo cada vez mais

distante do real

 

depois de vividas

as lembranças vão para o lóbulo pré-frontal

depois para o hipocampo

uma área mais profunda do cérebro

mais longe de todos aqueles agoras

 

volto aos acontecimentos

como regatasse um náufrago

como se eu pudesse te salvar

estico os braços

quase te encosto apesar da distância

o desejo nos faria levitar

se essas coisas existissem

 

você me acorda de madrugada

não porque dorme ao lado

não sei sequer se dorme

se pensa em mim ao menos

ao mesmo tempo em que penso em você

isso poderia ser o diálogo de um filme

assim poderíamos desinventar esse pensamento

que não ocupa espaço algum

esse pensamento pluma

com força para erguer um monumento

um móbile do Calder orbitando sobre nossas cabeças

 

 

Luiza Mussnich é escritora e jornalista. Nasceu em 1991, no Rio de Janeiro. É autora dos livros Microscópio (2017), Lágrimas Não Caem no Espaço (2018) e o recém-lançado Tudo Coisa da Nossa Cabeça, todos editados pela 7Letras.