POEMAS | Ismar Tirelli Neto 30/05/2022 - 16:01
Condição sine qua non
para que sejam admitidas
reticências
é que
sejam pérolas
incrustradas no harness ou
esmeraldas no elástico da sunga
tigrada e que se deixem
ouvir no corpo duro e reclinado
na gravação de “Olha o gás... olha o
gás” que cerca a casa
*
certa manhã obrigo-me a abril
onde foram missionar as minhas coisas?
pergunto
onde a mesa, meu marido, os dias lisíveis?
pergunto
onde as manhãs que meu cunhado tossia
onde havia a minha cadeira um calafrio
onde havia a inteireza de um corpo
pergunto
aos chamuscamentos pelos braços, às piras
onde queimei
minhas velhas camisetas do Morrissey
pergunto
onde se abancou tanta dança
onde o ininterrupto
o gaveteiro, o cardápio, a revista da tevê
pergunto
às mãos que os transitivavam
não é uma e mesma a unha que roemos?
pergunto
não é o mesmo palco sabugo que pisamos?
não será esse som
de Corcel que não pega
o real?
*
É no exato momento de sua retransmissão que a casa
cai
é em halitá-la que a casa
se
se despisse arrebite a arrebite
a ramada de fios
pela cômoda soasse
se ao menos
a casa
sobrevivesse ao bombardeio da retransmissão
da entoação
mas
rola o mais recôndito ribanceira abaixo
sabe você os quesitos do quarto?
sabe você o que é um quarto?
são as tripas da casa um casamento
uns filhos rápidos como
rubricas
(jogam a mãe no tanque
e fogem pelo armário)
um homem que recusa dois anos
um jardim de hortaliças
um apelo à discrição
um tanque
grunhidos de asas dentro de um muro
a canção descampada que é contorno de tudo
sabe você o que faz cada palha?
uma vez individuada
uma vez
uma vez que se procede à fixação de cada quarto
uma vez
cada quarto uma escâncara
cada mãe retirada numa pianola
se houvesse superfície sobre terrestre
se somenos
se houvesse alicerce
o irmão somenos
o irmão
que diz a casa a desmorona
Ismar Tirelli Neto é poeta, ficcionista, tradutor e roteirista. Em 2019, foi semifinalista do Prêmio Jabuti com o livro Os Postais Catastróficos (7Letras). Pela 34, acaba de publicar sua tradução de Autobiografia do Vermelho, de Anne Carson. Atualmente vive em São Paulo, onde ministra oficinas de escrita criativa.