POEMAS | Assionara Souza 30/03/2022 - 15:38

Leia poemas inéditos do livro Instruções para Morder a Palavra Pássaro, que sai em abril pela Telaranha Edições

 

Curitiba, esta ilha carnívora

Engole as pessoas

Masca por anos a fio

E regurgita o corpo

Insone, atordoado e tonto

Próximo a alguma linha de ônibus

Aqui há muitas, aos tubos

Cápsulas de espera

Pessoinhas agarradas a cell phones

Digitam, enérgicas, mensagens

Como papéis lançados ao vento

Se flutuassem, luminosas e frias

Lotariam os céus de carências

“A ceia vai ser na mãe ou na tia?”

“Ele não gosta de ti, fia. Larga mão”

“Foto do meu pequeno. Niver de três anos”

“Te amo!”

“Dscp não era pra vc!”

Curitiba, gorda e embebida em laquê

Os pés estouram nas sandálias

E os peidos embaixo dos panos

Esquentam por um momento as

Coxas brancas, orgulho fascista

Curitiba abriga vampiros longevos

Reticentes a flashes fotográficos

E conversa fiada dos repórteres literários

Capitalizaram as mais nobres causas

Pobre é a moeda corrente de sempre

Mas o poeta, o poeta anda enfermo

Delirante, largando versos pelos ares

O poeta quer se matar, mas tem um medo louco de altura

E inclina-se um pouco mais pra ver as cinzas caírem

A brisa desfaz os tufos moles antes que cheguem ao chão

O poeta é ingênuo e sofre uma dor egoísta

Quer sair de Curitiba. Curitiba não deixa

Curitiba o embriaga com suas doses de Dreyer

E as droguinhas que os moleques vendem na Trajano Reis

É preciso estar sóbrio e ter dinheiro no banco

Pra fugir do lirismo que entorpece

Mas a polaquinha sorriu

Capaz que ela aceite o programa

O batom vermelhoso e os cílios em riste

Dessas moças com um pau entre as coxas

O poeta segue abraçado trançando as pernas em dança

Descendo pela São Francisco

Até os sobrados sujos da Amintas

Onde as putas passam suas tardes

É dezembro, a noite está quente

O poeta medita sobre o ano que passou,

Sobre a vida que passou

A travesti sorri

Curitiba, sua linda! Vem! Me beija...

 

*

 

Encontro a poeta num café

Já sabendo da situação delicadíssima

Então fui preparada para dizer

Minhas melhores palavras

Eu que não passo de uma aspirante

A qualquer coisa que envolva signos

Por coincidência, ela estava sóbria

Notei uns pelos de gato em seu casaco

Um inverno improvisado em pleno verão

De súbito, ela me conta uma lembrança recorrente

Um dia da infância em que matou aula

E foi com a filha do pipoqueiro

[Isso mesmo, a filha do pipoqueiro]

A um subúrbio longe

As bicicletas deixando o asfalto

E ganhando um rastro de poeira

As casinhas abertas e os velhos

Sentados em seus tamboretes

Puxando e tragando fumo como quem medita

A casa, um caos de louça suja e roupa jogada nos cantos

Mas sobre a mesa, uma manga madura

A menina pega uma faca,

Corta a casca em tiras simétricas

Nesse momento, a luz é morna e vaporosa

As duas fartam-se da fruta

E sorriem em torno de um silêncio amarelo

Percebe aquilo sobre esculpir o tempo?

O cheiro do café, as mãos, a voz

A eternidade através

 

*

 

Das coisas que contêm brilho e mistério

Prefiro as nuvens

Embora não pretenda o extravio dos caminhos

Proveniente do hábito de esquecer

As urgências sólidas do chão

Extasiados de gozo, os amantes

Evadem-se do quarto escuro e buscam sozinhos

A claridade morna da tarde

Nas dobras mucosas da memória

Sensações metonímicas explodem

Entre o pensamento e a ação

Sentir-se assim entre indeciso e lógico

Água límpida a escorrer das horas

Querer e não haver por perto o que desperta o desejo

Mas trazê-lo todo inteiro junto ao coração

É privilégio de deuses suspensos na infância da eternidade

Quando as mãos se fazem árvores

De onde brotam frutos de palavras novas

Condizentes com o nome impronunciável do amor

 

*

 

Cercar o objeto de palavras

Até encontrar as que mais se aproximam

De sua exata forma, suas cores e texturas

O modo como o objeto sorri

Num dia claro de sol

O que vemos com nossos olhos

Jamais terá a substância animada

O sopro de espírito e matéria a quem

Foi entregue um nome, uma história

Sua suspensão etérea nos cordames do tempo

Tocamos somente a imagem refletida na

Superfície translúcida de algumas palavras